Por Roberto Malvezzi
Antes, uma digressão
O filósofo Heidegguer, em sua obra Ser e Tempo, faz uma análise do significado de “logos”, “a palavra”, no seu sentido original, do grego. Segundo ele, a expressão é polissêmica, portanto, com vários significados. Um deles é relação. Enfim, a palavra é relacional, comunica, conecta, anuncia, denuncia e tantos outros significados que apresenta (Heidegger, pg. 71).
Acontece que, para quem é cristão, a palavra é o próprio Deus, pessoa, encarnada, o verbo de Deus, Jesus de Nazaré. E Ele, o “logos de Deus” (Jo 1,1), nos fala da fome, e dos famintos, e das famintas e estabelece uma relação entre eles e elas com o Reino Deus: “tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber (Mat 25,35). Ou, o contrário, a negação, que gera exclusão: “tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber” (Mat 25,42). Esse ato, essa atitude é uma das chaves para pertencer ou ser excluído do seu Reino, Reino comparado a um grande banquete dos marginalizados, excluídos, descartados, jogados fora pela sociedade (Lucas 14, 15-24).
Hoje a fome não é mais exclusividade humana, mas também dos animais domésticos e selvagens. Os humanos invadem os habitats dos animais, os destroem, quebram a cadeia alimentar e, cada vez mais, os animais invadem os espaços urbanos em busca de comida. A fome é animal. A eles também devemos satisfações.
Então, o que os famintos e famintas nos falam, tanto os humanos como os demais animais, como eles nos incomodam, o que eles representam para nós na “fala” do próprio Deus? Essa é a chave de entendimento desse texto. Não é um texto técnico, embora precisemos das informações e dados colhidos no mundo técnico, mas como esse logos de Deus nos interpela, nos desafia, nos joga contra a parede e exige de nós uma resposta.
Fome tem nome e endereço: a fome é absoluta, não relativa!
A fome tem nome. Por detrás das estatísticas estão as pessoas, com seus corpos, suas necessidades, seu estado emocional. Por detrás das estatísticas tem mães, pais, avós, irmãos, preocupados, tantas vezes desesperados, por não conseguirem suprir as necessidades básicas de suas famílias no seu dia a dia. Por isso, “quem tem fome, tem pressa” (Betinho).
Por isso a fome é absoluta, não relativa. Os métodos estatísticos, que dizem que no Brasil há relativamente mais fome no campo que nas cidades, ou por região, precisam ser vistos de modo crítico e se há algum interesse por detrás desse tipo de raciocínio. Se há 11,74 milhões de famintos na rica região Sudeste e 12,12 no Nordeste (MADEIRO, 2022), é aí que está a maioria dos famintos, porque a relativização percentual não relativiza a fome real. Esses dados são de uma pesquisa nacional em reportagem de Carlos Madeiro publicada pela UOL, o Mapa da Fome.
A fome envolve uma dimensão também psicológica, emocional e de autoestima. Ninguém gosta de dizer que está passando fome, as pessoas se sentem envergonhadas. Também é uma vergonha para os que comem, ao ver um semelhante em tal estado de necessidade, uma necessidade primária que não deveria acontecer. A existência de pessoas com fome é um questionamento a todo um tipo de sociedade, como ela se organiza, como ela se estrutura, e que lugar social nós ocupamos nela.
E essas pessoas têm endereço. Elas estão mais concentradas nas periferias das grandes cidades, uma periferia geográfica, que também é social, que também é existencial. Mas elas podem estar nas ruas, mas tem aquela praça como referência, aquela ponte, aquele exaustor do metrô, aquele “mocó” debaixo de uma ponte. Ou então, estão isoladas no campo, longe de qualquer tipo de acompanhamento do Estado Brasileiro.
Essa é a segunda questão. Quem passa fome é pessoa humana, ou outro animal, que tem carne, osso e sentimentos. Não há como esconder a fome atrás de números impessoais que tantas vezes servem para neutralizar a gravidade da questão.
Números da fome no Brasil e no mundo
Os números da fome são flutuantes, tanto podem aumentar, como diminuir, a depender das políticas de combate e superação da fome. Apresentamos agora os dados da FAO sobre a fome no mundo e no Brasil, anunciadas num jornal televisivo (JORNAL NACIONAL, 2022). No mundo são 828 milhões de pessoas que passam fome. O Brasil de hoje apresenta, segundo a FAO, 61 milhões de pessoas com insegurança alimentar, isto é, podem comer hoje, mas não sabem se comerão amanhã. Desses, 15 milhões em estado de fome crônica, isto é, não tem os alimentos e nutrientes suficientes todos os dias para estarem alimentados. Pior, em 2015 o Brasil saiu do mapa da fome, segundo a FAO. Retorna a esse mapa em 2018, após o desmonte das políticas públicas de combate à fome do governo vigente. Hoje, segundo a FAO, 4,1% dos brasileiros passam fome (Jornal Nacional, 2022).
Essa é a situação desesperadora que se esconde por detrás dos números, onde pessoas reais têm que enfrentar o cotidiano de não poder satisfazer uma necessidade primária de sustentação da vida, base para qualquer outro avanço enquanto ser humano e seus direitos.
Agora, com a guerra entre Estados Unidos/Otam contra a Rússia, que acontece no território Ucraniano, a fome tende a aumentar no mundo. A razão é que Rússia e Ucrânia são grandes produtores de alimentos e a Rússia fornece os insumos para o agronegócio brasileiro, que também diz produzir alimentos, questão que vamos averiguar mais à fundo mais à frente.
A fome é crônica na humanidade. Um dos argumentos é que não faltam alimentos, mas renda para que as populações acessem os alimentos. Isso é verdade em parte, mas em parte é falso. O abastecimento alimentar pressupõe produção próxima, que respeite os hábitos alimentares regionais ou locais, baixo custo nos transportes e uma série de motivos que encarecem esses alimentos ou simplesmente inviabilizam o acesso a eles.
A fome é pessoal, social e política.
A fome é uma ausência de alimentos, portanto ela é pessoal, mas é também social quando atinge uma multidão de pessoas, e é política quando é fruto de decisões dos que controlam as políticas de produção de alimentos.
Portanto, a fome é uma expressão de poder, de um determinado tipo de poder. É uma escolha política promover ou superar a fome, tanto a humana quanto a animal.
É nesse sentido que se faz fundamental o item seguinte desse texto. Quem decide sobre promover ou superar a fome no Brasil? Por que em alguns governos anteriores caminhávamos para superar a fome, a miséria absoluta, ao ponto do Brasil sair do mapa da fome mundial, e qual o porquê de agora retornamos a essa tragédia de forma tão abissal?
Agronegócio x agricultura familiar x agroecologia
Então, vamos às razões estruturais da fome no Brasil. Esse país optou por um modelo de produção agrícola, de larga escala, que se autodenomina agronegócio. Essa expressão não é uma atribuição externa ao setor, mas uma autodenominação. E essa autodenominação se faz em oposição a uma atividade humana que tem aproximadamente dez mil anos, a agricultura. Porém, o marketing do agronegócio entende que é preciso se distinguir da agricultura, porque ela significa o atraso, enquanto o agronegócio significa a modernidade no campo. Por isso “o agro é tech, é pop, é tudo”, no que dizem de si mesmos.
A área cultivada no Brasil é de 64 milhões de hectares. Porém, a maior parte concentrada em grandes extensões pertencentes ao agronegócio. Ele precisa de grandes áreas, se baseia em monoculturas, particularmente aquelas apreçadas nas Bolsas de Mercadoria do agribusiness global. São poucos produtos, mas cotizados em dólar: soja, carne, milho, madeira etc. Mas, pode ocupar vastas áreas com cana para produzir etanol, com eucalipto para produzir madeira, com seringais para produzir borracha, assim por diante. O agronegócio, na sua própria origem, na sua alma, não precisa se dedicar à produção de alimentos. Mas, ocupa o espaço do campo para produzir suas comodities.
Esse tipo de atividade precisa de muito espaço e não sabe conviver com outras formas de vida. Então, para existir, precisa suprimir as florestas, a vegetação nativa, precisa expulsar as comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas, tradicionais, assim por diante. Ao suprimir as florestas, elimina os espaços dos animais selvagens, rompe a cadeia alimentar, elimina a biodiversidade, erode os solos, contamina as águas e solos com seus venenos e alcança a produção que objetiva em seus métodos. Ao eliminar o habitat dos animais, promove a fome dos animais. Ao ocupar o espaço de produção alimentar, produz a fome humana. Tanto é que, nesse momento, com toda produção que o agronegócio diz ter, temos os números assombrosos de 61 milhões de pessoas em insegurança alimentar, grande parte em fome crônica. Quanto mais avança o agronegócio, mais avança a fome! É um fato!
Uma das afirmações do agronegócio, uma de suas justificativas para avançar sobre os territórios das comunidades tradicionais, é que produz alimentos, que índios e outros tradicionais ocupam muitas terras e nada produzem, enquanto o agronegócio fica aprisionado em poucas terras para alimentar o povo brasileiro e o mundo.
A verdade é que, se a agricultura ocupa cerca de 64 milhões de hectares no Brasil, o gado ocupa 180 milhões de hectares para um rebanho de 210 milhões de cabeças. E a pecuária é parte integrante do agronegócio. Então, somados, pecuária e áreas agrícolas, a ocupação de 260 milhões de hectares pelo agronegócio significa a ocupação de 1/4 do território brasileiro. Essa é uma área gigantesca em qualquer país do mundo.
O agronegócio é um produtor e exportador de comodities agrícolas, mas não é um produtor de alimentos. Claro que há vinculações entre ambas, por ambas atuarem na terra, mas é a agricultura familiar que abastece a mesa dos brasileiros com cerca de 70% dos alimentos produzidos, principalmente os hortifrutigranjeiros. Mesmo quando se trata da produção da carne confinada, principalmente frangos e suínos, é a agricultura familiar que está como unidade na base produtiva. As grandes empresas compram a produção dos pequenos, a beneficia e depois lhe dá o nome dos grandes conglomerados da carne. São os chamados “integrados”, porque tem que obedecer a padrões impostos pelas empresas, com muito trabalho na produção e ganhos controlados. As grandes empresas levam a parte do leão.
Agora, com a guerra na Ucrânia, fica óbvio que é uma atividade com dependências internacionais, inclusive dos insumos básicos para o solo, importados principalmente da Rússia. Portanto, um tipo de atividade no campo que pode ser suprimida a depender das conveniências desses fornecedores. O custo da guerra se transferiu para o custo dos insumos e desses para os preços dos produtos do agronegócio.
Por outro lado, a agricultura familiar, às vezes de cunho legitimamente camponês, está por detrás de uma produção pouco valorizada e pouco estimulada. Os investimentos governamentais na agropecuária em 2022-2023 estão estimados em R$ 340,8 bilhões, sendo que destes, R$ 53,61 bilhões estariam sendo destinados ao PRONAF (GOV.BR, 2022). Um estudo a partir do Censo Agropecuária destaca que, “em termos de número de estabelecimentos agrícolas, a maior parte continua sendo da agricultura familiar cerca de 77%. Agora, ao se analisar pela extensão, a maioria das terras está nas mãos do agronegócio, cerca de 77%” (REPÓRTER BRASI, 2019). Além do mais, o agronegócio ocupa o espaço agrícola para plantar cana para etanol, eucalipto, seringueiras etc., enquanto a agricultura familiar ocupa pouco para produzir 70% dos alimentos básicos dos brasileiros. Fica óbvio que, com um pouco mais de investimento, teríamos maior abundância de alimentos, o que desoneraria o preço no mercado, facilitando o acesso da população brasileira aos alimentos mais sadios inclusive nas cidades. Aí está clara uma das razões da fome no Brasil e está claro também um caminho estruturante de superação da fome.
Um dado importante nas causas estruturais da fome no Brasil é diminuição do espaço ocupado para plantar alimentos em detrimento da soja ou outra monocultura. Um caso exemplar é o feijão:
“Nos 44 anos que separam a safra 1976/77 da de 2020/21, a área plantada de feijão encolheu 35% no Brasil, de 4,9 milhões de hectares para 2,9 milhões de hectares, conforme a série histórica da Companhia Nacional de Abastecimento -CONAB… Em paralelo, a área plantada de soja cresceu mais de 5 vezes, ou 460%, de 6,9 milhões de hectares para 38,9 milhões de hectares. A de milho quase dobrou, passando de 11,7 milhões de hectares para 19,9 milhões” (BBC, 2021).
O mesmo se deu com o arroz:
“…o Brasil perdeu na última década mais de 1,1 milhão de hectares da área plantada. Hoje, o Brasil tem 1,665 milhão hectares. Essa redução da área plantada de arroz, de 2011 para cá, equivale a 60% da área plantada de arroz na última safra” (BRASIL DE FATO, 2022).
Ainda mais, se considerarmos as especificidades regionais no Brasil, caso se deseje implantar políticas estruturantes de superação da fome, uma política de incentivo de produção de alimentos teria que considerar a produção de açaí no Norte; de feijão de corda, milho, mandioca e caprinos no Nordeste; do peixe na região Amazônica; da carne na região sul e sudeste, além dos hortifrutigranjeiros em todo o território nacional. Essa não é uma atitude secundária, é o respeito pelas culinárias e hábitos alimentares regionais de todo o país. Essa produção local, além de satisfazer o hábito, de produzir alimentos, torna-o mais próximo de seus consumidores, barateando custos de transporte e de conservação.
A importância dos territórios
Fundamental na segurança e na soberania alimentar são os territórios das comunidades tradicionais, como as indígenas, quilombolas, fundos e fechos de pasto na Bahia, e outras. O território é um espaço de vida, não só de produção. Ali estão as habitações, as pessoas, os cemitérios, as tradições, a cultura, com sua religião e também o espaço de produção e reprodução da vida. É também o espaço de liberdade das comunidades. Elas são soberanas em seus territórios.
Acontece que a soberania territorial das comunidades é sempre agredida pelos interesses do capital, com sua propriedade privada de tipo capitalista, que mira a terra como espaço exclusivo de produção e lucro, quando não de mera reserva financeira. As mentes dominadas pela lógica capitalista não têm elasticidade para compreender, e respeitar, a concepção de mundo dessas outras comunidades, sua matriz cultural e civilizacional, seu respeito e conexão direta com a natureza. Os espaços comunitários, de produção e reprodução da vida, não cabem na mentalidade fechada e individualista da sociedade ocidental. Por isso, para essa mentalidade, essas comunidades representam o atraso, o obstáculo a ser derrotado para implantarem seus projetos monoculturais e predadores.
Esses territórios que produzem alimentos, clima, biodiversidade, chuvas, culturalidades, peixes, alimentos, extrativismo de sustento da vida, precisam ser protegidos e incentivados. Nem sempre é produzir, muitas vezes é extrair. Ainda mais, certas atividades extrativistas pressupõem a floresta em pé, a Caatinga em pé, o Cerrado em pé, a Amazônia em pé etc. Assim, são também preservadores do meio ambiente, são guardiães ambientais, que prestam serviços a toda sociedade humana e à natureza, ajudando preservar o ciclo das águas, do carbono, a amenidade do clima e a biodiversidade específica de cada bioma. A agricultura camponesa pressupõe a aliança com a natureza, o agronegócio pressupõe a guerra contra a natureza. Por isso uma preserva, a outra destrói, ainda que o discurso seja sempre de atividades ambientalmente sustentáveis de ambas.
Então, como diz o mundo capitalista, por que essas comunidades são tão pobres? Aí depende mais uma vez da leitura de mundo. Sônia Guajajara, ao criticar um discurso preconceituoso de uma senadora, lhe disse: “nós somos assim porque queremos ser assim. Nós queremos estar na terra” (GUAJAJARA, 2022). Em outras palavras, o jeito de entender a vida e vive-la é de outra ordem cultural e civilizacional e as mentes dominadas pela unicidade cultural não tem como compreender e respeitar esses povos.
A vida simples, integrada à natureza, dos que “mamam na terra” (KRENAK, pg. 22) quer seu lugar em pleno século XXI. Não são o passado, mas um outro modo de entender e viver a vida. Crescem as vozes desses povos, a reivindicação de seu lugar ao sol, o resguardar suas diferenças culturais e civilizacionais. Eles não querem nosso mundo, mas querem conviver conosco guardando seu próprio lugar histórico, cultural e civilizacional. A simplicidade não significa miséria, falta de comida, alimentação cotidiana. Eles sabem prover sua própria alimentação, desde que seus territórios sejam respeitados.
Água de comer: insegurança hídrica e alimentar – fome
Assim como o ser humano – e os animais – precisam de segurança alimentar, assim também precisam de segurança hídrica, inclusive os vegetais. A água, o ciclo da água em cada ser vivo, é fundamental para a preservação da vida.
Entende-se segurança alimentar como ter alimentos em quantidade, qualidade e ritmo contínuo. Se não há alimentos em quantidade, qualidade e regularidade, instala-se a insegurança alimentar. Se não atingir entre 1800 a 2500 calorias por dia, instala-se a fome crônica!
Assim também podemos falar da segurança hídrica. É preciso ter água em qualidade, quantidade e regularidade para não se instalar a sede. Se as pessoas não ingerirem pelo menos 2 litros de água ao dia (um pouco variável conforme as circunstâncias), 7 litros para usos como beber e cozinhar, 50 litros por dia para todos os usos domésticos, 1 mil m3/ano para todos os usos, inclusive os agrícolas e industriais, instala-se a insegurança hídrica. Se essa água não tem qualidade, quantidade e regularidade, instala-se a insegurança hídrica.
Acontece que a demanda de água dos nossos corpos humanos é sempre urgente. No máximo dois dias sem água, no terceiro os órgãos começam entrar em colapso. Já a ausência de alimentos em nossos corpos pode suportar por mais dias, o que também é variável conforme cada organismo e conforme as circunstâncias. Jesus teria feito um jejum de 40 dias no deserto e dizem que São Francisco fazia três jejuns desse por ano. E sobreviviam.
Então, toda luta pela água, tanto para humanos como para os animais, assim como também para as plantas, faz parte do combate à fome e à sede, ou seja, a água de comer. Esse é o trabalho hercúleo da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) que conseguiu construir 1 milhão de cisternas para abastecimento humano e 200 mil replicações de tecnologias sociais para oferecer água para a produção de alimentos ou dessedentação dos animais. No Nordeste de 30 anos atrás ainda se morria mais de sede que de fome, embora se morresse de ambas. Hoje, com essa rede de microtecnologias implantadas no pé da casa, o fenômeno social das migrações, da fome, da sede, da miséria, das frentes de emergência, da mortalidade infantil, dos saques, é página virada da história (MALVEZZI, 2007).
Porém, para realizar esse conjunto gigantesco de micro obras, foi necessário o aporte financeiro do Estado brasileiro, tanto em nível federal como estadual. O que, no início, era uma iniciativa de igrejas e organizações da sociedade civil, baseada na cooperação mútua, ou com financiamentos do exterior, ganhou escala com os governos Lula e Dilma. Quando veio o golpe de Estado, a partir do governo Temer, seguido pelo governo Bolsonaro, os programas de construção dessas micro obras hídricas foi desativado, em prejuízo de milhões de pessoas que ainda esperam por elas.
Com essas obras hídricas, ofertando água tanto para o consumo humano como para a produção, a sede (água de comer) e a fome diminuíram significativamente no Semiárido Brasileiro.
Claro que essas não foram as únicas medidas governamentais que ajudaram a superar os índices desumanos de fome e sede na região. Junto veio o salário-mínimo dos aposentados rurais com a Constituição de 1988, o Posto de Saúde da Família, o Bolsa Família, a internet, a telefonia, a energia elétrica, a melhoria no transporte, nas estradas, programas habitacionais, enfim, uma lista de iniciativas governamentais que chegou dentro da casa das famílias mais vulneráveis e elevou efetivamente sua qualidade de vida.
Movimentos Sociais-MST e seus Assentamentos de Reforma Agrária
Os movimentos sociais que lutam pela Reforma Agrária no Brasil, caso especial do MST, têm se dedicado ostensivamente à produção de alimentos sadios. O MST se tornou o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Porém, esse tem sido um longo caminho de lutas e de muita aprendizagem.
No início o lema era “ocupar, resistir, produzir”. A ideia de ocupar era em função de propriedades de terra improdutivas nesse país, tidas apenas como reserva de valor. Então, o MST as ocupa para que elas possam cumprir sua função social, além de assentar famílias sem-terra em terras imobilizadas.
O resistir vinha da sabida reação de seus pretensos donos que, mesmo sem produzir, fazem questão de garantir essas terras como patrimônio familiar ou empresarial.
Finalmente, o produzir, como tantas vezes os dirigentes têm dito, é em primeiro lugar para saciar as necessidades básicas alimentares das famílias – tantas vezes a fome – e depois, produzindo excedentes, ir para o mercado. O MST criou uma rede de cooperativas e agora de espaços de comercialização de seus produtos. Dessa forma, além de alocar as famílias, de produzir para seu sustento, tornou-se efetivamente uma forma de ganhar a vida a partir de uma agricultura saudável. Os assentamentos do MST nos dizem que uma agricultura baseada na produção familiar e coletiva é possível, com alimentos sadios, sem utilização intensiva de agrotóxicos e outros insumos danosos ao meio ambiente e à saúde humana.
Porém, o MST avançou na sua leitura de mundo. Além de produzir, incorporou o cuidado com terra, com as águas, com a biodiversidade, entrando por uma produção agroecológica e cooperativista. Ultimamente o movimento vem desenvolvendo um projeto de plantar 100 milhões de árvores. O recado é claro, enquanto o agronegócio precisa suprimir a vegetação nativa para implantar seus projetos monoculturais, o MST planta árvores, com isso planta água, planta clima, planta biodiversidade, enfim, a agricultura do movimento sabe conviver com o ambiente diverso. Junto com MPA, MAB e outros movimentos da Via Campesina, o MST exemplifica que é possível uma outra agricultura que não seja um agronegócio. Com sua produção reduz a fome de seus membros e ajuda combater a fome do povo brasileiro. Durante a pandemia, o MST distribuiu gratuitamente 6 mil toneladas de alimentos e cerca de 1.150.000 marmitas, compostas de produtos oriundos de seus assentamentos (FURTADO, 2022). Não é só uma questão de produção, mas de solidariedade e distribuição.
Não basta produzir alimentos, eles precisam ser saudáveis!
Alimentar-se, do ponto de vista nutricional, não significa empanturrar-se de comida. Consumir o chamado lixo alimentar gera obesidade e outras doenças. Por consequência, há muito se fala na segurança alimentar e nutricional.
O lixo alimentar provém, sobretudo, dos alimentos industrializados. São principalmente os embutidos, mas também todo alimento que contém sódio, açúcar, gordura trans e conservantes em sua composição. Daí a dificuldade não apenas de acessar os alimentos, mas de acessar alimentos de qualidade.
A dieta brasileira básica sempre foi considerada ótima do ponto de vista nutricional. A composição do tradicional feijão-com-arroz, acompanhado de um pedaço de carne e uma salada contém praticamente todos os nutrientes necessários a um corpo humano sadio todos os dias. E já tivemos os pomares e as hortas nos quintais das casas para complementar essa alimentação sadia, uma tradição que praticamente deixou de existir com a mercantilização de todos os alimentos, mas que volta de uma forma consciente por quem busca uma alimentação sadia.
Há ainda tendências alimentares como os vegetarianos e os veganos. O hábito de abandonar o consumo de carnes é justificado em defesa da saúde e do respeito aos animais. Os veganos desenvolvem uma filosofia ainda mais profunda, ao rejeitar o uso de todos os derivados animais, como o couro, ovos e leites. A argumentação é em torno do sofrimento dos animais e o respeito por essas formas de vida. Inclusive, a justificativa atual de cuidado com o meio ambiente.
Entretanto, não há unanimidade nessas filosofias alimentares. Os povos indígenas, inclusive, argumentam que a cadeia alimentar natural inclui o consumo de um animal por outro animal carnívoro e que, portanto, o equilíbrio ambiental se dá na cadeia alimentar, e não fora dela.
Em todo caso, são tendências postas, que tem algum alcance mundial e nos fazem pensar, enquanto sociedade humana, nos nossos hábitos alimentares e, ao contrário da total industrialização dos alimentos, como a ração dos pets, é possível sustentar a humanidade com alimentos naturais e sadios.
Agrotóxicos
Finalmente, um estudo realizado pela UNIOESTE e pela Universidade Americana de Harvard, conseguiu estabelecer o nexo causal entre o consumo de água contaminada por agrotóxicos e grande quantidade de câncer em pessoas que consumiram essa água. O estabelecimento do nexo causal sempre foi um grande gargalo para denunciar, impedir e responsabilizar as empresas produtoras desses venenos pelo impacto cancerígeno em pessoas humanas. Agora essa prova científica existe. Segundo o estudo, 542 casos de câncer estão associados ao uso de agrotóxicos na região.
O caso coloca em evidência o desafio de produzir alimentos saudáveis em um ambiente saudável. Ao preço da contaminação da água, dos casos de câncer e das mortes, qualquer dirigente público responsável encaminharia uma solução diferenciada para uma questão tão grave. Precisamos de alimentos e águas sadios para podermos ter saúde (FSP.UOL, 2022).
Perspectivas da fome e sua superação.
A questão não é só constatar a fome, mas superá-la. Essa luta é árdua, contínua, sem trégua. A fome sempre foi parte da dominação política e consequência das injustiças estruturais de uma sociedade, mais ainda, de um modelo político-econômico-socioambiental.
Já citamos acima várias iniciativas de ordem estrutural necessárias no Brasil para superar a fome: acesso à terra (Reforma Agrária), garantia dos territórios das comunidades tradicionais, agroecologia adequada à cada bioma, agricultura familiar-camponesa, respeito aos hábitos alimentares de cada região, produção próxima aos consumidores, assim por diante.
Como exemplo concreto temos os assentamentos de reforma agrária, particularmente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, os maiores produtores de arroz orgânico da América Latina. Portanto, produção com qualidade e com respeito ao ambiente.
No Nordeste a Articulação no Semiáriado Brasileiro (ASA) organizou os programas Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) que colocou água de “comer” para mais de 1 milhão de famílias e água para produzir para mais 200 mil famílias através da replicação de inúmeras tecnologias de captação de água de chuva.
Junto com a agroecologia adaptada a ASA incentivou e replicou o trabalho com frutas nativas da Caatinga, como o umbu, maracujá do mato, fazendo geleias, compotas, doces, cervejas, vendidas no Brasil e no exterior.
Nos territórios de comunidades tradicionais estão implantando projetos desafiadores de recaatingamento, saneamento rural, quintais produtivos, apicultura, manejo de animais de pequeno porte como cabras, ovelhas, galinhas etc.
Para enriquecer alimentação dos animais se faz o adensamento da Caatinga, com intervenção direta, plantando e cuidando das áreas em processo de desertificação. Também para superação da fome e desnutrição animal os técnicos multiplicam as capacitações em fenagem, silagem, armazenamento de água e alimentos nos tempos chuvosos para os tempos normalmente sem chuva. Esse é um dos pontos básicos do Paradigma da Convivência com o Semiárido.
Ao mesmo tempo a ASA desenvolve através de mais de 3 mil entidades-membro, a educação contextualizada, para que o povo tenha uma visão mais científica do bioma Caatinga, seu regime de chuvas, seus solos, sua biodiversidade, assim por diante. Dessa forma, desenvolve uma adequação melhor do ser humano ao seu meio ambiente, além de despertar a paixão, o gosto, o prazer de pertencer a esse bioma.
Políticas Públicas e a Luta Emergencial
As medidas mais estruturais, até infraestruturais, são de médio e longo prazo. Empoderado com saberes dialogados, com tecnologias sociais que dominam, o povo tende a superar a fome por conta própria, produzindo seus próprios alimentos e ajudando a alimentar as comunidades com suas feiras de alimentos orgânicos e solidárias. Nesse sentido são importantes a Economia Solidária e agora a Economia de Clara e Francisco.
Quando a fome é imediata – quem tem fome, tem pressa (Betinho) – então surgem as paróquias, ONGs, Movimentos Sociais, Igrejas etc., que promovem a distribuição de cestas básicas, de distribuição de refeições nas ruas, da solidariedade nas favelas (NITAHARA, 2020), de toda forma solidária e emergencial. Esse é um recurso último e extremo, quando não há outra solução, mas que se faz necessário em tantos momentos da história.
Finalmente, a necessidade das políticas públicas. O Bolsa Família, que tenha efetivamente uma Renda Mínima, ou Renda Básica, é necessário e imprescindível numa sociedade capitalista que visa o lucro e não a satisfação das necessidades básicas das pessoas.
A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) definiu assim as principais políticas públicas para a superação da fome:
“Dentre os exemplos nesse sentido a serem resgatados e aperfeiçoados, cabe destacar a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER), o Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC), o Programa Uma Terra, Duas Águas (P1+2), o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa ECOFORTE de apoio a redes territoriais de agroecologia e as políticas de produção e distribuição de cestas básicas com alimentos de base agroecológica. O compromisso com o aperfeiçoamento dos mecanismos de participação social implica também a plena efetivação do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que aperfeiçoa e regula as relações de cooperação entre o Estado e a sociedade civil organizada, notadamente no que tange à transferência e o uso dos recursos públicos” (ANA, 2022).
Os Restaurantes Populares nos centros urbanos são muito importantes para as pessoas que não tem praticamente renda para se alimentar todos os dias. Eles precisariam ser multiplicados e permanentemente abertos para beneficiar as populações necessitadas. É emergencial e é estruturante.
Também a política pública de um salário-mínimo digno para todos os trabalhadores e trabalhadoras, como dos aposentados e aposentadas, de todos os benefícios conquistados na Previdência Social Pública.
Em último caso, até a ajuda pessoal a um necessitado, ou a uma família necessitada, ajuda na hora extrema da fome.
A fome e a sede têm soluções.