Sessão foi encerrada nesta quinta (31) após votos dos ministros André Mendonça, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso. Julgamento será retomado no dia 20 de setembro
Por Assessoria de Comunicação do Cimi
O Supremo Tribunal Federal (STF) interrompeu o julgamento sobre os direitos constitucionais indígenas, na última quinta-feira (31), com um placar favorável aos povos indígenas. Com os votos proferidos por Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso, o placar parcial agora é de quatro votos a dois contra a tese do marco temporal – e, portanto, a favor dos povos originários.
Os votos de Zanin e Barroso foram comemorados pelos cerca de 500 indígenas que acompanhavam a sessão por meio de um telão instalado do lado de fora da Suprema Corte, em Brasília (DF). Cerca de 70 lideranças acompanharam o julgamento direto do plenário.
Como possui repercussão geral, a decisão tomada neste caso terá efeito vinculante sobre outros processos judiciais e consequências para todos os povos e terras indígenas no país, ao fixar o entendimento da Suprema Corte acerca dos direitos territoriais garantidos aos povos indígenas pela Constituição Federal de 1988.
Um dos pontos centrais em discussão é sobre a constitucionalidade da tese do marco temporal, que busca restringir o direito constitucional dos povos indígenas à demarcação de suas terras. Segundo esta tese, também conhecida como “teoria do fato indígena”, os povos originários só teriam direito à demarcação das terras que estivessem comprovadamente em sua posse no dia 5 de outubro de 1988.
Até agora, votaram para afastar esta tese os ministros Edson Fachin, relator do caso, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso.
Os ministros Kássio Nunes Marques e André Mendonça, que concluiu seu longo voto na quinta (31), posicionaram-se a favor da tese – defendendo, na prática, uma anistia aos crimes praticados antes de 1988 para expulsar os povos indígenas de suas terras.
“O reconhecimento de posse e domínio sobre as terras ocupadas por comunidades indígenas ocorreu pela primeira vez com o Alvará Régio de 1680 […]. Estabeleceu-se, assim, as origens do indigenato, estatuto jurídico que proclama o direito originário dos indígenas sobre as suas terras”
Tradição do indigenato
Após o voto de Mendonça, foi a vez do ministro Cristiano Zanin, o mais novo da Corte, emitir seu posicionamento. Seguindo o relator Edson Fachin, Zanin apontou que as demarcações de terras indígenas são um “ato meramente declaratório”, que apenas reconhece um direito de posse que é preexistente ao Estado.
“O processo de demarcação de terras indígenas não possui natureza constitutiva, mas meramente declaratória, com a finalidade de delimitar especialmente os referidos territórios”, afirmou o ministro.
Esta é, em síntese, a chamada teoria do “indigenato” – uma interpretação diametralmente oposta à tese do marco temporal. Em seu voto, o ministro traçou um histórico da aplicação desta teoria na história constitucional e legal do Brasil, apontando que a Constituição de 1988, na verdade, apenas seguiu esta tradição.
“O reconhecimento de posse e domínio sobre as terras ocupadas por comunidades indígenas ocorreu pela primeira vez com o Alvará Régio de 1680, ratificado posteriormente pela lei de 6 de junho de 1755. Estabeleceu-se, assim, as origens do indigenato, estatuto jurídico que proclama o direito originário dos indígenas sobre as suas terras”, afirmou Zanin.
Ele afirmou que esta perspectiva foi incorporada nas constituições brasileiras desde, pelo menos, a Constituição Federal de 1934.
“Dispositivos semelhantes foram consolidados nos textos constitucionais seguintes, incluindo aqueles outorgados pelos regimes autoritários”, apontou o ministro. “Todos acabaram por reconhecer a ocupação tradicional indígena e a necessária fonte de proteção primária”.
Tanto Zanin quanto Barroso citaram a adequação desta perspectiva a documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Os ministros também mencionaram, como um exemplo desta convergência, o julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos em que o Estado brasileiro foi condenado pelos danos causados ao povo Xukuru em decorrência da morosidade em garantir seus direitos territoriais.
Indenizações
Em seu voto proferido em junho, o ministro Alexandre de Moraes defendeu que o marco temporal não pode ser usado como critério para as demarcações de terras indígenas, mas abriu uma divergência parcial com Fachin ao propor que elas fossem condicionadas à indenização prévia de eventuais ocupantes não indígenas de boa fé pelo valor da terra nua.
O artigo 231 da Constituição já garante a indenização pelo valor das benfeitorias – como construções e plantações, por exemplo – a esses proprietários, mas diz explicitamente que os títulos particulares incidentes sobre terras indígenas são “nulos e extintos” e não geram, por isso, direito à indenização.
Cristiano Zanin, em seu voto, decidiu acompanhar o voto do relator, Edson Fachin, e fazer uma proposta alternativa à do ministro Moraes. Ele ponderou que, como os títulos sobre terras indígenas são nulos, a eventual indenização de proprietários, quando couber, não pode ser pela terra – apenas pelo ato danoso praticado pelo Estado.
Nesses casos, “a indenização é devida não porque se demarcou a terra indígena mas porque o Estado praticou um ato ilícito, vendendo o que não era dele”, afirmou o ministro Barroso, que acompanhou o voto do relator, Edson Fachin, e endossou o adendo proposto por Zanin.
“Se a indenização não for por ato ilícito, ela não pode existir, porque a Constituição proíbe”, prosseguiu Barroso, apoiando a proposta feita por Cristiano Zanin.
“A única forma que você teria de indenizar um agricultor que perderia a propriedade porque comprou de quem não era dono é dizer que foi um ato ilícito da União, porque pela demarcação de terra indígena não cabe indenização”, afirmou o ministro, defendendo que a análise desses possíveis atos ilícitos seja feita caso a caso.
Proposta semelhante vinha sendo defendida pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e por outras organizações indígenas e indigenistas, que apontaram a inconstitucionalidade e o risco de aumento dos conflitos, caso se decida condicionar as demarcações de terras indígenas a uma indenização prévia pela terra nua.
Apesar de mencionar diversas violações contra os povos ao longo da história do país, André Mendonça decidiu pela aplicação do marco temporal e da “teoria do fato indígena”, optando por anistiar, em sua posição, as violências que longamente enumerou
Relatórios e demarcações
O julgamento havia sido interrompido, em junho, com o pedido de vista do ministro André Mendonça. O ministro ocupou praticamente toda a sessão de quarta-feira (30) e a primeira parte da sessão de quinta (31) com seu voto, que iniciou com um extenso histórico das violências e do esbulho praticado contra os povos indígenas no Brasil, remontando ao século XVI.
Apesar de mencionar diversas violações contra os povos ao longo da história do país, o ministro decidiu pela aplicação do marco temporal e da “teoria do fato indígena”, optando por anistiar, em sua posição, as violências que longamente enumerou.
Mendonça também dedicou parte de seu voto a desqualificar e questionar o trabalho técnico realizado pelos grupos multidisciplinares responsáveis pelos estudos de identificação e delimitação das terras indígenas, compostos por profissionais de diversas áreas – como etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e fundiária – e coordenados por profissionais habilitados na área da Antropologia, como dispõe o Decreto 1.775/1996.
Trata-se de uma estratégia frequentemente utilizada por ruralistas para atacar as demarcações de terras indígenas. Mendonça caracterizou os estudos como “subjetivos” e propôs, em seu voto, que estes estudos deveriam ter “participação obrigatória de especialistas indicados pelos entes federativos envolvidos”.
“Se deve ter deferência ao trabalho técnico realizado pelos antropólogos”, contrapôs Barroso em seu voto. “Como se trata de compreender práticas e comportamentos à luz de outra cultura, o vínculo tradicional deve ser aferido a partir de estudo antropológico voltado a tal fim, em virtude da alta expertise de tal estudo e em atenção à limitada capacidade do poder Judiciário no tema”.
“Nós não concordamos com esse marco temporal. Estamos aqui somando força com todos pela demarcação, pela vida, pelo nosso território, pelos nossos direitos ancestrais”
Falas preconceituosas
Embora seja, na ordem da votação, apenas o penúltimo a se pronunciar, o ministro Gilmar Mendes interrompeu por cerca de meia hora o já extenso voto de André Mendonça, que levou praticamente uma sessão e meia para concluir sua leitura. As falas do ministro causaram profunda indignação entre os indígenas que acompanhavam a votação do lado de fora da Suprema Corte.
Referindo-se a “índios” e “tribos”, Mendes afirmou que as comunidades da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, homologada em 2005 com 1,7 milhão de hectares, teriam expandido “seus domínios para 10 milhões de hectares”.
“Se forem dez milhões de hectares, são 100 mil quilômetros quadrados, só Raposa Serra do Sol”, prosseguiu o ministro, que também repetiu a falsa afirmação de que muitos indígenas do território “foram catar lixo lá em Boa Vista”.
“Ele não conhece a nossa realidade da TI Raposa Serra do Sol”, criticou Ernestina Macuxi, liderança do território. “[A TI] Raposa Serra do Sol foi consolidada em 2009, com 1 milhão e 700 mil hectares para mais de 30 mil indígenas. É mentira quando ele fala que nós indígenas estamos morrendo de fome, catando lixo no lixão. Estamos recuperando a nossa Mãe Terra que foi poluída, que foi destruída pelos fazendeiros, pelos arrozeiros, pelos garimpeiros”, afirmou.
“Nós não concordamos com esse marco temporal. Estamos aqui somando força com todos pela demarcação, pela vida, pelo nosso território, pelos nossos direitos ancestrais”, disse Ernestina.
Entre outros comentários que causaram indignação entre as lideranças indígenas, o ministro também questionou a identidade étnica do cacique Babau Tupinambá, do sul da Bahia, afirmando que ouviu da população local que “havia um líder um indígena, que aparentemente não era indígena, um líder negro, de nome cacique Babau, que causava horror”.
Em nota publicada nas redes sociais, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirmou repudiar “de forma veemente, com a força de todos os povos e dos nossos ancestrais, as falas racistas, injustas e preconceituosas do ministro”.
“Estamos aqui muito otimistas, muito ansiosos, continuando com os nossos cantos, com as nossas rezas, com toda a força da luta do movimento indígena, dos povos indígenas, as delegações que vão permanecer aqui em Brasília para continuar essa luta contra o marco temporal”
Sequência do julgamento
A sessão foi encerrada ao fim do dia e o julgamento foi marcado para continuar no dia 20 de setembro. Os próximos ministros a votar são Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e a presidente do STF, Rosa Weber, que se aposenta em outubro.
Os povos indígenas seguem mobilizados, na expectativa de ver seus direitos constitucionais reafirmados e a tese inconstitucional do marco temporal definitivamente derrotada.
“Estamos aqui muito otimistas, muito ansiosos, continuando com os nossos cantos, com as nossas rezas, com toda a força da luta do movimento indígena, dos povos indígenas, as delegações que vão permanecer aqui em Brasília para continuar essa luta contra o marco temporal”, afirmou Kleber Karipuna, da coordenação da Apib.