Cárcere privado, controle de alimentação, ameaças de morte e submissão a atividades sexuais reiteradas numa mesma noite fazem parte do cotidiano de várias adolescentes mantidas ilegalmente em garimpos
Por Camila Del Nero – REPAM-Brasil via Diplomatique Brasil
Nos últimos cinco anos, o garimpo ilegal se intensificou no Brasil. A explosão da atividade ilegal se concentrou principalmente na Amazônia, que, em 2022, abrigava quase a totalidade (92%) da área garimpada no país. Os impactos da expansão do garimpo ilegal na região amazônica são inúmeros – contaminação pelo mercúrio, desmatamento, grilagem de terras e o aumento da violência, e são sentidos, sobretudo, pelas crianças e adolescentes, vítimas de abuso e exploração sexual.
Cárcere privado, controle de alimentação, ameaças de morte e submissão a atividades sexuais reiteradas numa mesma noite fazem parte do cotidiano de várias adolescentes mantidas ilegalmente em garimpos pelos rincões da Amazônia.
Em 2023, em meio à crise de saúde pública no território Yanomami, uma adolescente de 15 anos foi encontrada numa embarcação no rio Mucajaí, em um garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, onde era explorada sexualmente.
Lamentavelmente, esse não é um caso isolado. Ele se soma a outros exemplos que expõem os impactos devastadores do garimpo ilegal, como neste relato coletado pelo Grupo de Estudos sobre Fronteiras (GEIFRON) da Universidade Federal de Roraima (UFRR), que é coordenado pela professora e assessora da REPAM-Brasil, Marcia Maria de Oliveira. Leia abaixo:
No garimpo somos muitas Marias, Conceições, Fátimas. Somos mulheres de nome fácil. Garimpeiro não gosta de nome difícil. Para eles todo mundo é Maria. É a sina das Marias.
Nasci praticamente em um garimpo e me criei em muitos outros. Sou a terceira geração de uma família que começou em garimpo. O que mais escutei da minha mãe e da minha avó é história de garimpo.
Meu avô era maranhense e quando era ainda muito jovem foi para o garimpão da Serra Pelada no início da década de 1980. Acho que minha avó morava numa currutela, local de prostituição nos arredores do garimpo.
Minha avó ficou embuchada da minha mãe quando tinha 15 anos. Ela conta que meu avô morreu pouco tempo depois com apenas 23 anos, embaixo de barranco. Minha mãe foi criada em meio ao garimpo por mãos de muitas mulheres porque minha avó ficou muito doente, com aquelas doenças da vida (doenças contraídas sexualmente no exercício da prostituição sem proteção), logo depois que minha mãe nasceu. Minha mãe conta que se tornou mulher com 10 anos (por abuso sexual) e que precisava fazer aquilo para ter o que comer. Com 13 anos ela ficou embuchada de um soldado que andava na currutela.
Quando eu nasci ela tinha acabado de completar 14 anos. No meu registro, consta apenas o nome da minha mãe. Do pai nada sei.
Minha mãe conta que a vida ficou muito difícil com o fechamento do garimpo. Então, ela se mudou comigo para Marabá, onde estava minha avó e minha madrinha que era esposa de um policial. Foi esse policial que falou para minha mãe vir para Roraima. Ele dizia que aqui estava tudo começando.
Minha avó morreu pouco tempo depois com menos de 40 anos, mas, parecia muito mais velha. Ela costumava me contar muitas histórias do garimpo. Dizia que viu muito ouro na vida, mas, nunca pegou nenhum. Dizia que terra de garimpo era lugar de maldição. E chorava muito com dores nos ossos. Seu corpo era bem magrinho mesmo. E todo encurvado como se o tempo fosse um peso nas suas costas. Minha avó tinha um olhar muito triste e meio perdido. Parecia que estava sempre recordando coisas tristes.
Em Marabá minha mãe realizava trabalhos domésticos para manter nossa sobrevivência. Depois que minha avó morreu, eu passava os dias com a madrinha para minha mãe poder trabalhar. Tinha um quartinho no quintal da madrinha onde a gente morava. Um dia a madrinha saiu logo cedo e quando acordei, o marido dela estava passando as mãos nas minhas partes. Quando percebi fiquei sem ação. Só lembro que ele falou assim: “neta e filha de puta é putinha”. Eu não entendia nada do que ele estava falando. Eu tinha acabado de completar sete anos e estava feliz porque ia começar a ir para a escola. Aquilo me entristeceu muito. Mas, eu não contei para minha mãe. Comecei ir para escola e ficava feliz com as outras crianças.
Minha mãe saía muito cedo para ir trabalhar e eu ficava sozinha aos cuidados da madrinha que me preparava para ir para escola na parte da tarde. Ela me dava almoço todos os dias. E aconteceu de novo. Outro dia, logo depois que minha mãe saiu para trabalhar, eu ouvi os passos dele entrando no quartinho e depois vi ele pelado ao lado da rede. Ele falava bem baixinho e pedia para eu não falar nada. E assim eu fiquei calada enquanto ele fazia aquelas coisas comigo.
Eu não entendia o que era aquilo. Só sentia muito nojo. Eu tinha medo dele. Quando estava na casa da madrinha e ele chegava eu me mijava de tanto medo. Um dia a madrinha contou para minha mãe, que me perguntou o que estava acontecendo e eu contei que era por medo dele. Ela perguntou por que eu tinha medo. Então eu contei para ela o que estava acontecendo. Ela pediu para ver minhas partes e eu mostrei. Me lembro das lágrimas caindo dos seus olhos e me dizendo que aquilo era um segredo que a madrinha nunca poderia saber.
No mesmo dia ela falou para a madrinha que a gente iria embora para Roraima. Minha mãe tinha um pouco de dinheiro só para as passagens de ônibus e de barco. Tinha muita gente indo para Roraima.
Eu fiquei muito triste porque deixei a escola e as outras crianças, mas me sentia aliviada porque não tinha mais que ver aquele homem. Fomos morar nos arredores da cidade num barraco coberto de lona. Não tinha escola nem parentes. Foi um tempo muito difícil. Passamos muitas necessidades até que minha mãe conheceu um homem que levou ela para trabalhar num garimpo na Terra Indígena Yanomami.
Era garimpo proibido, mas tinha muita gente puxando (um levando o outro). E ela me levava junto com ela. Minha mãe fazia de tudo no garimpo: cozinhava durante o dia, lavava e consertava roupas com uma máquina de costura que ela conseguiu levar. Eu sempre ajudava em tudo que ela fazia. Graças a Deus e à minha mãe, eu nunca precisei me prostituir no garimpo. Acho que essa sina eu consegui interromper. Sempre me recordo daquela fala daquele homem asqueroso “neta e filha de puta é putinha” quando ele perfurou meu útero ainda em formação. Eu era uma criança.