Por Dom Erwin Kräutler | Artigo publicado no Instituto Humanitas Unisinos
“Continua muito grande o perigo de nossa Igreja voltar a ficar particularmente preocupada consigo mesma, especialmente depois do capítulo escandaloso e horrível dos abusos. O ‘Sínodo Sinodal’ certamente não pode saltar por cima da própria sombra. Mas retirar-se ‘do mundo maligno’ para sacristias com cheiro de incenso ou, então, tentar atrair as massas através de grandes eventos litúrgicos com muita pompa, musicata altissonante e paramentos suntuosos será definitivamente o caminho errado”, alerta Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, Altamira.
Segundo ele, o Instrumentum laboris é muito mais ad intra da Igreja do que ad extra.
Eis o artigo.
No dia 13 de junho, o Papa Francisco disse: “Espero que depois deste Sínodo, a sinodalidade permaneça como uma forma permanente de agir na Igreja em todos os níveis, penetrando no coração de todos, pastores e fiéis, até se tornar estilo comum na Igreja. Isso exige uma mudança que deve ocorrer em cada um de nós, uma verdadeira conversão” (Vatican News). Este é um desejo particularmente corajoso do nosso Papa Francisco! Ele sempre almejava de nós “propostas (ou sugestões) corajosas”: “Sean corajudos!” dizia aos bispos, a sacerdotes, a muitas mulheres e homens, aos indígenas e aos pobres. E esta “coragem”, repetidamente rogada, está muito próxima da “parrhesia” dos Atos dos Apóstolos.
Infelizmente, a experiência que tive no Sínodo para a Amazônia diminuiu um pouco as minhas expectativas. Naquele sínodo, bem mais de dois terços dos “padres sinodais” votavam no diaconato feminino e, para as regiões remotas da Amazônia e para os povos indígenas, insistiram no celibato opcional.
Na sua Exortação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia o Papa Francisco não se refere nem com uma única sílaba ao nosso desejo de finalmente restabelecer o diaconato feminino, ou de considerar uma dispensa do celibato para padres em certos ambientes e culturas, a fim de poderem em regiões de “penúria eucarística” celebrar a Eucaristia e ministrar os sacramentos.
O tema do atual Sínodo “Por uma Igreja sinodal: comunidade, participação e missão” parece transportar o chamado de João Batista para o nosso tempo: “Voz de quem clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas! Todo vale será aterrado, toda montanha e colina serão rebaixadas. As vias tortuosas serão endireitadas e os caminhos acidentados, aplainados. E todos verão a salvação que vem de Deus” (Lucas 3,4-6).
Algumas barreiras à sinodalidade em nossa Igreja:
Comunidade?
Como pode existir uma comunidade sinodal num sistema estritamente hierarquizado, com um Codex Iuris Canonici axiomático e categórico até nos mínimos detalhes, até o último ponto e vírgula? Como pode existir sinodalidade quando o pároco está canonicamente amparado para ter sempre a última palavra e ignorar qualquer decisão majoritária do Conselho Pastoral ou da comunidade paroquial sem sequer ter que declarar a razão de seu veto?
Como pode existir uma diocese sinodal onde “a competência decisória do Bispo (…) é inalienável, na medida em que está fundada na estrutura hierárquica da Igreja estabelecida por Cristo” (IL 2024, n. 70)? Com esta premissa, os organismos diocesanos, mesmo apelando-se para seu espírito de corresponsabilidade continuarão meros órgãos consultivos. Como pode uma diocese ser entendida como uma comunidade “sinodal”, se os bispos, num processo secreto, totalmente ignorado pelas lideranças diocesanas e sem qualquer consulta a representantes da Igreja Local, nem mesmo ao bispo anterior, simplesmente são determinados e nomeados para um Povo de Deus por eles desconhecido e antes nunca visitado? E este processo ainda é designado com o termo “eleição”!
Participação?
É direito de cada cristão “fazer parte” de sua Igreja, de assumir responsabilidades e ajudar a edificá-la. Este sentimento de pertença, e não apenas sentimento, mas também o direito de pertencer é crucial para uma comunidade sinodal.
Em nossa Igreja ainda é extremamente difícil fazer valer o sacerdócio comum de todos os fiéis (Lumen Gentium, 10). E ainda mais, em oposição às repetidas admoestações do Papa Francisco, se ergue ultimamente dos baús mofados de séculos passados, um neoclericalismo ferino. Há padres, e infelizmente também bispos, que consideram missão sua, restaurar a “velha disciplina”. A autoridade “de sempre” tem que ser devolvida aos antístites da igreja.
Com isso o sulco entre clérigos e leigos, se aprofunda ainda mais. Aos clérigos cabe a missão de “instruir”, de “doutrinar”, de “decidir e “definir”. Aos leigos é reservada a “bênção de obedecer”. Tal “disciplina” é perigosa e, sobretudo, antissinodal, porque contradiz o que Jesus disse: “Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós não seja assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda como quem está servindo” (Lucas 22,25-26). Nossa “autoridade” não nos eleva acima do povo! Vivemos “para” o povo e caminhamos “com” o Povo de Deus. Esta é sinodalidade como Jesus a pede!
A participação é a pedra de toque sobre a qual se mantém ou cai a orientação sinodal da nossa Igreja: a “participação” das mulheres, que são mais que a metade de todos os fiéis! E é muito surpreendente que o nosso Papa Francisco excluiu este tema do programa do Sínodo e o adiou aparentemente para o Dia de São Nunca. Duas comissões já vasculharam a história das primeiras comunidades cristãs e logicamente não encontraram nenhuma pista de uma ordenação diaconal no rito de hoje, por exemplo no caso de Febe (Rom 16,1). Certamente uma ordenação presbiteral naquela época também não foi celebrada no rito romano, adotado hoje nas nossas catedrais.
Não se trata de detectar o que era praxe ou não dois mil anos atrás, mas sim o que é necessário hoje como resposta aos desafios do nosso tempo. Se mulheres há décadas são lideranças na grande maioria das comunidades da Amazônia, nas cidades e no campo, dirigem o culto dominical, explicam a Palavra de Deus, são autorizadas a batizar crianças ou assistir matrimônios, são catequistas, são professoras de religião nas escolas, e se é, graças aos seus esforços, que a Igreja na Amazônia realmente “vive”, como então a “igualdade de gênero” ainda não é acatada em nossa igreja! E por quê se nega às mulheres a graça da ordenação, simplesmente pelo fato “de serem mulheres”? A argumentação de que Jesus escolheu só “homens” – isto é, portadores de cromossomos XY – hoje não dá mais para ser sustentada.
A hipótese de os princípios “petrino” e “mariano” aparecerem separadamente na Igreja é tendenciosa! Afirmar que as mulheres são “marianas” e os homens “petrinos” é um disparate psicológico! Haverá sempre mulheres petrinas, como também homens marianos. E vice-versa! Ou, para ser mais claro: em cada mulher existem qualidades petrinas, assim como em cada homem existem qualidades marianas. “E Deus viu tudo quanto havia feito, e era muito bom” (Gen 1,31). Somos sempre petrinos e marianos, petrinas e marianas! Graças a Deus!
Missão?
A Igreja é “enviada por Cristo a manifestar e a comunicar o amor de Deus a todas as pessoas e povos” (Ad Gentes, 10). Esta palavra do Decreto do Concílio Vaticano II. “sobre a atividade missionária da Igreja” indica a orientação para a missão de cada cristão, de cada cristã.
Estou convencido de que Jorge Mario Bergoglio foi eleito Papa porque no pré-conclave defendeu uma Igreja em saída que se aventura na periferia, não só a geográfica, mas a existencial, ou seja, que se dirige às pessoas à margem da sociedade, exatamente onde vivem, com todas as suas misérias e esperanças, as amarguras de exclusão e as suas expectativas. Ele escolheu o nome “Francisco”: prova como quer levar a sério uma Igreja que já o Papa João XXIII em 1962, pouco antes da abertura do Concílio Vaticano II., chamou de “a Igreja dos e para os pobres”. Na sua primeira audiência com jornalistas, em 16 de março de 2013, o Papa Francisco disse: “Oh, como eu quero uma Igreja pobre e uma Igreja dos pobres!”
Francisco foi a Lampedusa, a Lesbos, visitou prisões, lavou os pés dos encarcerados, incluindo mulheres muçulmanas, pediu desculpas aos povos indígenas no Canadá, ficou profundamente comovido com o grito dos povos indígenas em Puerto Maldonado, poucos meses antes do Sínodo da Amazônia, e assim por diante. Não faltam exemplos papais. E certamente há hoje na Igreja muitas pessoas e instituições que cuidam dos marginalizados e explorados. Mesmo assim continua muito grande o perigo de nossa Igreja voltar a ficar particularmente preocupada consigo mesma, especialmente depois do capítulo escandaloso e horrível dos abusos. O “Sínodo Sinodal” certamente não pode saltar por cima da própria sombra. Mas retirar-se “do mundo maligno” para sacristias com cheiro de incenso ou, então, tentar atrair as massas através de grandes eventos litúrgicos com muita pompa, musicata altissonante e paramentos suntuosos será definitivamente o caminho errado.
Para Francisco de Assis, o encontro com os leprosos foi um encontro concreto com o Senhor Jesus sofredor. Foi a experiência chave para compreendermos Francisco de Assis, homônimo do nosso Papa. Quem são e onde estão os “leprosos” do nosso tempo e mundo? Como e por que as pessoas vivem “nas periferias”, em bairros pobres e favelas, debaixo de pontes e amontoadas em barracas imundas? Por que é negado aos indígenas o direito à sua identidade? Por que continuam sendo expulsos de suas terras ancestrais? Por que as pessoas morrem “antes do tempo” por que não têm o suficiente para comer? Por que as crianças não chegam à idade adulta? Por que, pelo amor de Deus, há novamente guerras que atingem os pobres ainda mais duramente? Esta horrível ladainha não para por aí! Qual é a missão da Igreja? “Proclamar e comunicar o amor de Deus a todas as pessoas e povos”! Como isso poderá acontecer de modo bem concreto e profundamente sinodal?
O Instrumentum laboris, divulgado ontem, refere-se aos “pobres” apenas de modo marginal, periférico. Espelha a realidade em que os pobres vivem: na margem, na periferia. Encontrei a palavra “pobre(s)” apenas sete vezes em 112 artigos e em uma nota de rodapé. Na Parte III “Lugares” falta lamentavelmente um capítulo específico sobre os pobres e excluídos do “banquete da vida, para o qual todos os homens e mulheres são igualmente convidados por Deus” (João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis, n. 39). O documento reclama de um “mundo em que os poderosos ignoram os pobres, os marginalizados e as minorias” (IL 2024,n. 29). Será que só os poderosos do “mundo” ignoram os pobres? Aconselha o texto: “Um ponto particularmente significativo neste âmbito é a escuta das pessoas que vivenciam vários tipos de pobreza e marginalidade” (IL 2024, n. 54). O Instrumentum laboris é muito mais ad intra da Igreja do que ad extra!
Estas são apenas algumas preocupações ou questões a que a Segunda Parte do Sínodo “Uma Igreja Sinodal: Comunidade, Participação, Missão” terá que responder.