Nascido na aldeia Onça-Igarapé, no Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, Justino Rezende é o primeiro padre indígena da etnia Tuyuka e membro do povo Utãpinopona. Padre salesiano e defensor do diálogo intercultural, ele atua na evangelização e no fortalecimento das tradições indígenas, incluindo práticas culturais e medicinais. Em conversa exclusiva para REPAM-Brasil, Justino reflete sobre a relação entre os conhecimentos indígenas e a ciência ocidental, ressaltando como essa interação pode ser uma ferramenta essencial para a preservação da Amazônia e para o enfrentamento dos desafios globais. Na entrevista a seguir, ele compartilha uma visão provocante, mas esperançosa, sobre a complementaridade entre essas formas de saber, destacando a espiritualidade indígena como ciência e a conexão entre todas as formas de vida.
*Por Camila Del Nero
Como o senhor vê a contribuição do conhecimento indígena para complementar a ciência ocidental na proteção da Amazônia?
Padre Justino Rezende: Essa é uma discussão que temos feito sobre a relação dos conhecimentos indígenas com a ciência ocidental. A nossa visão, baseada no trabalho do nosso grupo de pesquisa, é que os conhecimentos indígenas, por serem milenares, são anteriores ao contato com a colonização. São conhecimentos robustos, profundamente enraizados, que já revelaram sua eficácia ao longo dos séculos, mas que também se atualizam conforme as dinâmicas culturais e territoriais de cada povo, são conhecimentos que dão sustentabilidade à existência dos povos.
Por isso, são conhecimentos já bastante robustos, enraizados, que já deram seus frutos, mas, ao mesmo tempo, são conhecimentos que se atualizam também. Conforme a dinâmica de cada povo que vai passando de um território para outro, a adequação de conhecimentos para cada tipo de bioma da Amazônia, para cada tipo de rio, com seus peixes, com seus frutos, com seus pássaros. Nossos conhecedores transitam por diferentes patamares — as águas, a terra e o ar — utilizando técnicas que incluem cerimônias, músicas e discursos, sempre em diálogo com os seres que habitam esses espaços. Por isso, acreditamos que a ciência ocidental precisa abrir brechas para um encontro de conhecimento. Para se tornar mais forte e abrangente, ela deve integrar saberes ancestrais, confirmando-os como complementares.
Então, se a ciência ocidental quer ser mais robusta, mais forte, ela precisa também contar com os conhecimentos dos indígenas para a nossa visão. Então, deve haver esse diálogo de diferentes conhecimentos para buscar novas soluções para os novos problemas do mundo.
Quais exemplos práticos mostram como a sabedoria ancestral pode oferecer soluções para os desafios ambientais e globais?
Padre Justino: Os povos indígenas seguem ciclos culturais profundamente conectados à natureza — ciclos de frutas, peixes, pássaros e até mesmo eventos como nascimento e rituais de passagem. Esses ciclos revelam o diálogo constante com o ambiente e com os seres que consideramos gentes. Para nós, essas entidades — sejam árvores, rios ou animais — têm sentimentos e reagem conforme o respeito que recebem.
Se não se dialoga com esses seres cósmicos, o ser humano se isola. Então, por isso que existe também a ausência de respeito por parte de outros seres, esses seres que nós chamamos de outras gentes, porque na compreensão indígena, eles também são gentes, eles têm sentimentos, têm conhecimentos, eles se revoltam também, eles ficam com raiva, eles ficam satisfeitos também quando nós conseguimos respeitá-los.
Hoje, vemos práticas indígenas sendo formalizadas, como o manejo territorial por programas nacionais e a criação de centros como BAHSERIKOWI – Casa de Medicina Indígena, em Manaus, que também é medicina indígena ao cuidado de saúde. Além disso, iniciativas como escolas indígenas e casas de comida típica reforçam que há outras formas de viver em equilíbrio com o ambiente. Esses pequenos passos são sinais visíveis de que há caminhos alternativos para a sustentabilidade.
Há possibilidade de nossa contribuição, com nossos conhecimentos das medicinas, das plantas, medicinas dos sábios, de proteger as pessoas de várias doenças, curar várias doenças. Eu penso que a perspectiva hoje é justamente multiplicar essas iniciativas, por menores que sejam, mas são sinais visíveis para a sociedade que desconhece o conhecimento das ciências indígenas.
Vê que existem outros caminhos possíveis para o cuidado das vidas humanas, da saúde, do bem-estar das pessoas. Também como escolas indígenas, onde estudam os conhecimentos, as práticas culturais. São iniciativas, hoje também, vamos dizer, indígenas nas universidades.
São espaços onde os indígenas que chegam às universidades trazem os conhecimentos da ancestralidade. Só que muitos têm medo, pensam que isso é perda de qualidade, de ensino. Pelo contrário, é um ganho para as universidades, quando os indígenas entram nas universidades, porque eles vêm trazendo conhecimentos da ancestralidade, dos povos, dos territórios. Por isso, tem várias iniciativas possíveis que devem multiplicar, com certeza.
Como a visão indígena de que todas as vidas estão conectadas pode ser integrada na abordagem científica ocidental?
Padre Justino: Esse é um grande desafio. A ciência ocidental separa a humanidade da natureza, vendo-a apenas como recurso. Mas, para nós, seres invisíveis e visíveis estão interligados. Os biomas, a diversidade de plantas, os pássaros, os seres invisíveis, que estão presentes nas cachoeiras, nos lagos, nas praias, nas montanhas, nos rios, as constelações, os trovões, são os humanos que interagem conosco e nos antecederam.
A perspectiva de garantir uma vida mais equilibrada para o mundo é justamente relacionarmo-nos com respeito com todos esses seres, para que eles também respeitem a nossa identidade humana. Nós pensamos que somente nós que vivemos nesse mundo, pelo contrário, esses seres já são antecedentes, são anteriores a gente. Antes que nós chegássemos às Américas, antes que existíssemos, essas florestas, esses rios já estavam aqui.
Essa conexão implica reciprocidade. Nas tradições indígenas, as cerimônias pedem permissão para caçar, pescar ou ocupar territórios, e devolvemos benefícios à natureza em respeito. Essa perspectiva poderia transformar a ciência ocidental, incorporando o respeito aos seres cósmicos e registrando que eles influenciam nosso bem-estar.
O senhor acredita que a espiritualidade indígena pode ajudar a ciência a enxergar a Amazônia como um organismo vivo, e não apenas um recurso?
Padre Justino: A espiritualidade indígena é frequentemente vista com desconfiança, como algo alheio à ciência. Mas, para nós, ela é parte essencial do que chamamos de ciência indígena. Ela sustenta a vida, interage com forças imateriais e permite um manejo equilibrado das realidades que nos cercam. Segundo a compreensão deles, a espiritualidade não é ciência, é outra coisa, vamos dizer. Mas para nós, a invisibilidade, a imaterialidade, faz parte também das ciências indígenas.
A nossa corporalidade, ela esconde outro ser dentro da gente. Assim também os pássaros, eles são pássaros, na forma deles são pássaros, mas eles são também gente, não é? Por isso que muitos povos têm nome de pássaro, nome de peixe, nome de cobra, nome de árvores, nome de frutas. Então são as roupagens, são assim visto como se fosse matéria, pássaro, animal, não sei o quê.
Por exemplo, cerimônias de cura utilizam técnicas que vão além da matéria, cerimônia de Macaé, que é cura, proteção, tudo é caso da imaterialidade, as forças que a pessoa vai receber, vai pelo sopro, pela força do ar, que vai restabelecer a saúde dela, vai tranquilizar o seu bem-estar, vai fazer com que o trabalho produza bons resultados. Então são ciências, são técnicas, não são espiritualidade no sentido religioso, mas para nós são técnicas.
Esses conhecimentos são ciência, não religião. Eles mostram que é possível espiritualizar a ciência ocidental, levando-a a considerar que a força vai além da matéria e que há complementaridade entre diferentes formas de saber. Porque penso que a ciência também é uma força que vai além da matéria, além da forma.
Quais são as principais barreiras para que o conhecimento indígena seja reconhecido e valorizado pela ciência ocidental?
Padre Justino: A barreira principal está nos espaços de construção do saber. Porque a ciência ocidental acredita que a ciência é construída, elaborada, experimentada, comprovada através do tempo, do espaço, das existências, dos seus resultados esperados. Isso é ciência. E eles olham para nós como se nós não tivéssemos também esses tempos de prática comprovada, com resultados eficientes, de cuidado da vida, cuidado de outros aspectos da nossa convivência, dos nossos espaços, dos nossos territórios.
Por isso, temos que abrir as portas para dialogar com especialistas indígenas, ou pelo menos com quem intermedia essa ciência. Nós não somos especialistas grandes como são nossos avós. Nós não somos esses especialistas, são esses grandes mestres das nossas origens, dos nossos povos.
Estamos tentando fazer com que a ciência ocidental, os especialistas ocidentais possam entender que existem outras maneiras de entender a ciência. Então, por isso, essa abertura, com certeza, esse artigo vai abrir essa discussão também, vai provocar tensões, conflitos. Isso é bom, porque vai provocar discussões.
É que a nossa ciência, indígena, precisa ser escutada. Precisa dar espaço para ela falar da sua ciência. Por isso, se fala que enquanto nossos conhecimentos forem regionalizados, ou somente localizados, eles serão sempre desconhecidos.
E nossos conhecimentos, de forma estratégica, precisam chegar também nos espaços de discussão da ciência ocidental, ou oriental, vamos dizer, nas universidades ou nos laboratórios, e que os cientistas da ocidentalidade venham às comunidades, participar das sessões científicas, cerimoniais, para comprovar que isso realmente funciona. Eu digo que é a maneira como se pode encontrar o outro diferente, mas que não é o contrário, mas ele também pode ser um grande aliado da ciência ocidental. De outra forma, de outro modo, também é muito bom, porque a ciência ocidental também pode ajudar muito a ciência indígena. Então, ajudando o outro que pode ter uma nova perspectiva mundial.
Como os povos indígenas podem participar ativamente na formulação de políticas públicas ambientais em parceria com cientistas?
Padre Justino Rezende : Os movimentos indígenas, nossas associações, nossos conselhos têm participado, reivindicam para estar lá. Então, está aberto esses espaços, mas falta ainda para nos qualificar com pesquisas, com propostas de incidência na política. Eu sei que hoje em dia tem vários indígenas na enfermagem, vamos dizer.
Espero que eles estejam levando esses conhecimentos da nossa ancestralidade. Quem se torna médico, levar esses conhecimentos também, nossos cerimoniais, para incidir na política da saúde. Então, essas discussões existem.
Muitas vezes nos falta como é que nós vamos fazer isso. Talvez aqui falta avançar ainda como nós vamos criar currículos formativos, como nós vamos fazer pessoas que vão também estar na formação desses profissionais da política, também na política partidária, como que nosso modo de cuidar dos territórios, defender, preservar, não é o contrário, mas usar os territórios de forma equilibrada, vai incidir na política partidária, porque a política partidária parece que vê os indígenas como inimigos do progresso, não é assim? O que se quer é que tenha o equilíbrio no manejo do mundo. Então, eu penso que a ciência indígena tem perspectivas boas.
Precisamos sentar juntos com cientistas ocidentais da ecologia, da biologia, para ver como é que nós podemos nos ajudar, ajudar o mundo também com nossos conhecimentos.
Essa interação pode transformar a relação entre os saberes. O conhecimento indígena não é contrário à ciência ocidental, mas pode ser um grande aliado. Essa troca traz uma nova perspectiva mundial e fortalece os dois lados.
Quais ensinamentos da cultura indígena o senhor considera essenciais para a preservação da floresta e das comunidades?
Padre Justino: O principal ensinamento é usar os territórios de forma respeitosa, evitando exploração excessiva e destruição. Antigamente, nossas práticas incluíam um manejo rotativo: quando um ciclo de frutas ou animais terminava em um lugar, nos deslocamos para outro. Isso permitiu a recomposição natural da floresta.
Hoje, com a monocultura e as limitações de nossos territórios, essa dinâmica foi interrompida, o que impacta as qualidades da fertilidade do solo, a biodiversidade e os ciclos naturais. Os indígenas, especialmente na Amazônia, continuam resistindo, lutando e defendendo seus territórios, não apenas por si mesmos, mas também em benefício de outras nações e povos.
Como o conhecimento indígena e a ciência ocidental podem trabalhar juntos para impactar a vida nas cidades, especialmente em relação ao clima e à saúde?
Padre Justino: Essa aliança tem um potencial enorme, mas é necessário que a ciência ocidental dê espaço para os conhecimentos indígenas. Esses saberes refletem uma visão integrada dos biomas, considerando todos os seres vivos — animais, plantas, águas — como partes de um grande corpo vivo.
Os indígenas entendem a floresta, a terra, o espaço, os indígenas são mais biólogos do que quem faz curso de biologia, são mais ecólogos do que quem faz curso de ecologia, porque eles sabem o que é entender a floresta como um ser vivo, o corpo, a terra como um corpo, o espaço aéreo como um corpo que interage conosco, que fala conosco, o espaço subterrâneo que fala conosco. Então é importante que esses conhecimentos sejam reconhecidos e visibilizados também. Esse conhecimento pode enriquecer as perspectivas ocidentais e promover cuidados mais eficazes para as pessoas e o planeta.
Qual mensagem o senhor gostaria de transmitir à comunidade científica e aos tomadores de decisão sobre a importância de aprender com os povos indígenas?
Padre Justino: Escutar os conhecimentos indígenas é adquirir novas perspectivas. No entanto, os indígenas também querem perder os seus conhecimentos para quem é de fora. nem nós que estudamos não sabemos expressar direito o que nossos conhecimentos estão dizendo. Então seria fazer um trabalho bem lento de compreensão do outro, da tradução das línguas para a compreensão dos conceitos.
Então é um trabalho vagaroso. Precisa dar esse tempo de escutar. A abertura da ciência para ciências indígenas é um bom começo para poder estabelecer novas relações científicas também.
Eu penso que, não digo que as ciências indígenas vão solucionar os problemas do mundo, como também a ciência ocidental nos está solucionando, mas podemos melhorar o cuidado do mundo.
Como os jovens indígenas podem liderar essa ponte entre o conhecimento ancestral e o mundo científico?
Padre Justino O jovem é aquele que está mais aberto para poder apropriar-se desse conhecimento. Mas os jovens indígenas, eles precisam ganhar também espaço, é crucial que tenham acesso a escolas indígenas que valorizem seus temas culturais, músicas, cerimônias e práticas de manejo.
O incentivo aos jovens pesquisadores é fundamental, pois são eles que irão aperfeiçoar o que falamos. Eu já tenho 63 anos, não sei quanto tempo vou viver, mais cinco décadas, com certeza não. Mas os jovens ainda estão nessa fase de aprendizagem, de busca, então eles precisam encontrar indígenas também nas universidades que apoiem, incentivem, tenham cursos específicos adequados nas universidades brasileiras ou mundiais, e participem desses espaços de discussão pública, acadêmicas. Eu vejo que muitos estão fazendo isso, eu vejo aqui no Amazonas essa capacidade imensa dos jovens trazerem conhecimentos para a academia. Isso vai tomando corpo, viabilizando os conhecimentos indígenas na academia e para regiões onde estão presentes
A mensagem que eu posso dizer é que deve haver mais esse diálogo, um diálogo maduro, respeitoso, provocante também, mas perseverante ao mesmo tempo. Quando a gente enfrenta a discussão com a ciência ocidental, às vezes, dá vontade de desistir, mas é preciso ter força individual e coletiva para seguir em frente. Só assim conseguiremos avançar nessa discussão e construir um futuro mais equilibrado e colaborativo da ciência ocidental e ciência indígena.
A visão de Padre Justino Rezende convida a uma reflexão profunda sobre a necessidade de um diálogo respeitoso e maduro entre os saberes ancestrais e a ciência moderna. Seu chamado por complementaridade não é apenas uma proposta técnica, mas também um gesto de esperança por um mundo mais equilibrado, em harmonia com todas as formas de vida e com os ciclos naturais que sustentam a existência. Ele nos lembra que a verdadeira inovação surge da capacidade de ouvir, aprender e unir perspectivas aparentemente distintas em prol de um bem comum. Essa troca de conhecimentos não apenas enriquece a ciência, mas também fortalece os laços humanos e a responsabilidade compartilhada de cuidar do planeta.