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Artigo produzido por:

Waldecir Gonzaga – diretor e professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Maria Irene Lopes dos Santos – Mestranda em Teologia Sistemático-Pastoral, junto ao PPGTeo da PUC-Rio.
Licenciatura em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte.
Atualmente é Assessora da Comissão Episcopal para a Amazônia (CNBB) e Secretária
Executiva da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil)

Resumo – O presente estudo analisa a temática das redes eclesiais à luz da perícope de 1Pd 1,3-5, considerando-as como sinais de esperança para a Igreja da América Latina. A 1Pedro foi escrita para uma rede de comunidade da Ásia Menor (1Pd 1,1-2). Neste sentido pode alimentar e muito a fé das comunidades espalhadas pela Amazônia, especialmente em um trabalho de rede e de rede de redes. Ser rede é organizar-se e atuar de forma coletiva. As redes, assim como qualquer relação social, estão sempre impregnadas pelo poder e pelo conflito, bem como pelas possibilidades de solidariedade, reciprocidade e compartilhamento. O importante é saber como se dá o equilíbrio entre essas tendências antagônicas do social e como possibilitam ou não a autonomia dos sujeitos sociais, especialmente os mais excluídos e muitas vezes denominados “populações-alvo”. Internamente, é necessário superar a fragmentação e as disputas. O diálogo é uma necessidade para quem quer construir redes. Cada entidade que compõe uma rede deve aprender a conviver com as diferenças, mantendo-se permanentemente atenta para preservar sua identidade, valores e princípios. Uma entidade não deve se anular e nem se sobrepor às demais. Superar posturas hierárquicas, autoritárias e cultivar práticas circulares no exercício do poder é fundamental. A autoridade tem que ser vivida na perspectiva do serviço ao bem comum. Assim, este estudo apresenta o texto grego, sua tradução própria e interpretação; analisa desafios, direitos e valores comuns nas redes; e apresenta a construção de relações de apoio, solidariedade e unidade nas comunidades eclesiais.

As redes eclesiais como sinais de esperança para a Igreja na América Latina à luz de 1Pd 1,3-5

Ecclesiastical networks as signs of hope for the Church in Latin

America in the light of 1Pet 1,3-5

Las redes eclesiásticas como signos de esperanza para la Iglesia

en América Latina a la luz de

1Ped 1,3-5

Waldecir Gonzaga1 Maria Irene Lopes dos Santos 2

Resumo

O presente estudo analisa a temática das redes eclesiais à luz da perícope de 1Pd 1,3-5, considerando-as como sinais de esperança para a Igreja da América Latina. A 1Pedro foi escrita para uma rede de comunidade da Ásia Menor (1Pd 1,1-2). Neste sentido pode alimentar e muito a fé das comunidades espalhadas pela Amazônia, especialmente em um trabalho de rede e de rede de redes. Ser rede é organizar-se e atuar de forma coletiva. As redes, assim como qualquer relação social, estão sempre

1 Doutor e Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, Itália). Possui um Pós-Doutorado pela FAJE (Belo Horizonte, Brasil) e está realizando um segundo Pós-Doutorado junto ao PPGTeo PUC-RS (Porto Alegre, Brasil). Atualmente é diretor e professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da PUC-Rio. É criador e líder do Grupo de Pesquisa Análise Retórica Bíblica Semítica, credenciado junto ao CNPq (http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/369991). E-mail:

<waldecir@hotmail.com>, Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9171678019364477 e ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-5929-382X

2 Mestranda em Teologia Sistemático-Pastoral, junto ao PPGTeo da PUC-Rio. Licenciatura em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte. Atualmente é Assessora da Comissão Episcopal para a Amazônia (CNBB) e Secretária Executiva da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil). E- mail:irenelopes48@hotmail.com, Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0955209289997822 Orcid: https://orcid.org/0009-0009-3142- 3771X

impregnadas pelo poder e pelo conflito, bem como pelas possibilidades de solidariedade, reciprocidade e compartilhamento. O importante é saber como se dá o equilíbrio entre essas tendências antagônicas do social e como possibilitam ou não a autonomia dos sujeitos sociais, especialmente os mais excluídos e muitas vezes denominados “populações-alvo”. Internamente, é necessário superar a fragmentação e as disputas. O diálogo é uma necessidade para quem quer construir redes. Cada entidade que compõe uma rede deve aprender a conviver com as diferenças, mantendo-se permanentemente atenta para preservar sua identidade, valores e princípios. Uma entidade não deve se anular e nem se sobrepor às demais. Superar posturas hierárquicas, autoritárias e cultivar práticas circulares no exercício do poder é fundamental. A autoridade tem que ser vivida na perspectiva do serviço ao bem comum. Assim, este estudo apresenta o texto grego, sua tradução própria e interpretação; analisa desafios, direitos e valores comuns nas redes; e apresenta a construção de relações de apoio, solidariedade e unidade nas comunidades eclesiais.

Palavras-chave: 1Pedro, Rede, Identidade, Poder, Conflito, Diálogo, Esperança.

Abstract

This study analyzes the theme of ecclesial networks in the light of the pericope of 1Pet 1,3-5, considering them as signs of hope for the Church in Latin America. 1Peter was written for a network of communities in Asia Minor (1Pet 1,1-2). In this sense, it can greatly nourish the faith of the communities spread throughout the Amazon, especially in a network and network of networks. To be a network is to organize and act collectively. Networks, like any social relationship, are always impregnated with power and conflict, as well as the possibilities of solidarity, reciprocity and sharing. The important thing is to know how the balance is struck between these antagonistic social tendencies and whether or not they enable the autonomy of social subjects, especially the most excluded and often referred to as “target populations”. Internally, it is necessary to overcome fragmentation and disputes. Dialogue is a necessity for anyone who wants to build networks. Each entity that makes up a network must learn to live with differences, while remaining constantly vigilant to preserve its identity, values and principles. One organization must not cancel itself out or take precedence

over the others. Overcoming hierarchical, authoritarian attitudes and cultivating circular practices in the exercise of power is fundamental. Authority must be lived from the perspective of service to the common good. Thus, this study presents the Greek text, its own translation and interpretation; analyzes challenges, rights and common values in networks; and presents the construction of supportive relationships, solidarity and unity in ecclesial communities.

Keywords: 1Peter, Network, Identity, Power, Conflict, Dialogue, Hope.

Resumen

Este estudio analiza el tema de las redes eclesiales a la luz de la perícopa de 1Pe 1,3-5, considerándolas como signos de esperanza para la Iglesia en América Latina. 1Pedro fue escrita para una red de comunidades de Asia Menor (1Pe 1,1-2). En este sentido, puede alimentar mucho la fe de las comunidades esparcidas por la Amazonia, especialmente en red y en red de redes. Ser una red es organizarse y actuar colectivamente. Las redes, como cualquier relación social, están siempre impregnadas de poder y conflicto, así como de posibilidades de solidaridad, reciprocidad y reparto. Lo importante es saber cómo se equilibran estas tendencias sociales antagónicas y si permiten o no la autonomía de los sujetos sociales, especialmente los más excluidos y a menudo denominados

«poblaciones diana». Internamente, es necesario superar la fragmentación y las disputas. El diálogo es una necesidad para cualquiera que quiera construir redes. Cada organización que compone una red debe aprender a convivir con las diferencias, sin dejar de velar por preservar su identidad, sus valores y sus principios. Una organización no debe anularse ni primar sobre las demás. Es fundamental superar las actitudes jerárquicas y autoritarias y cultivar prácticas circulares en el ejercicio del poder. La autoridad debe vivirse desde la perspectiva del servicio al bien común. Así, este estudio presenta el texto griego, su propia traducción e interpretación; analiza los desafíos, derechos y valores comunes en las redes; y presenta la construcción de relaciones de apoyo, solidaridad y unidad en las comunidades eclesiales.

Palabras claves: 1Pedro, Red, Identidad, Poder, Conflicto, Diálogo, Esperanza.

Introdução

A perícope da carta 1Pd 1,3-5, extraída de uma das sete cartas do corpus católico no NT3, apresenta uma mensagem profundamente relevante para os dias de hoje, especialmente no contexto de um mundo em profundas crises sociais, políticas, socioambientais e espirituais. Nessa passagem, o apóstolo Pedro fala sobre a esperança viva, que nasce da Ressurreição de Jesus Cristo e aponta para uma herança incorruptível, reservada nos céus para os crentes. Entre a Ressureição de Cristo e a sua manifestação final no último tempo (eschaton), o crente pode ter certeza do acompanhamento constante de Deus, mesmo que, às vezes, torne-se desafiador reconhecê-lo concretamente.

Este poder, contudo, não é autoritário e ditador, ao contrário do que muitas vezes ocorre com o poder exercido por homens. Deus espera, da parte das pessoas, o exercício da fé de maneira ativa e comprometida. Pela referência à fé, tão próxima à referência ao poder de Deus, há aqui uma revelação do aparente paradoxo da vida cristã no mundo: a fé e o poder divino. Parece que, concretamente, tanto Deus como o homem têm a sua parcela de iniciativa no processo. É certo que a iniciativa primeira procede de Deus, mas ela pede a resposta do homem4 para continuar a conexão. Diante disso, procura-se explorar nesta perícope a relação entre a esperança e as redes eclesiais na Igreja da América Latina.

As redes têm sido expressões concretas da comunhão e da solidariedade cristã, conectando diferentes comunidades, movimentos

3 GONZAGA, W., As Cartas Católicas no Cânon do Novo Testamento, p. 421-444; GONZAGA, W., Compêndio do Cânon Bíblico, 408-409.

4 MUELLER, E., I Pedro, p. 80.

eclesiais e organismos da Igreja em torno de uma missão comum: promover a justiça, a dignidade humana e a defesa dos mais vulneráveis e fragilizados. Ao se refletir sobre esta perícope, encontra-se uma profunda ressonância com essa realidade, pois o apóstolo Pedro exorta os cristãos a viverem ancorados na “viva esperança” que surge da Ressurreição de Cristo e na herança incorruptível prometida aos fiéis. Essa esperança transcendente, que aponta para a salvação futura, também é uma força que impulsiona a ação concreta como caminho para a sinodalidade.

O presente estudo visa analisar o conceito de rede como sinal de esperança cristã ancorada na Ressurreição de Cristo. Assim como os primeiros cristãos encontraram consolo e coragem ao saber que a morte e o sofrimento não tinham a última palavra, os cristãos de hoje podem ver a ressurreição como um sinal de que Deus é o Senhor da história, mesmo em tempos de grandes tribulações. Essas redes atuam como canais de transformação, tanto espiritual quanto social, promovendo o cuidado com os marginalizados e a proteção da “Casa Comum”, como ressaltado na Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco:

O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa Casa Comum5.

5 LS, 13.

À luz das crises atuais, as redes eclesiais se tornam expressão viva da esperança cristã, em resposta aos desafios globais e locais, reafirmando o compromisso da Igreja com a promoção da vida plena para todos.

A caminhada nestes 15 anos de trabalho missionário na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e desde 2014 na Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil), somada às diversas experiências pastorais acumuladas nas últimas décadas6 despertaram nosso interesse em realizar e publicar este estudo na perspectiva das Redes Eclesiais como sinal de Esperança para a Igreja na América Latina à luz de 1Pd 1,3-5.

  1. Definição de rede

A palavra rede deriva do latim rete7. Segundo o dicionário Michaelis, significa “tecido de malha com aberturas regulares; é feita pelo entrelaçamento de fibras que são ligadas por nós ou entrelaçadas nos pontos de cruzamento. As redes podem ser feitas de algodão, raiom, náilon ou outras fibras”8. Menezes9 sugere que essas fibras ou linhas podem representar as diferentes organizações; entrelaçadas, elas formam

6 Após um período de 10 anos (1998 a 2008), como Diretora de um Colégio da Congregação das Irmãs Carmelitas Missionárias da Santa Teresa do Menino Jesus em Paracatu MG, assumi como Assessora da CNBB a Comissão Episcopal Especial para a Amazônia num trabalho para a Amazônia brasileira até a data atual. Em 2014 com a criação da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), assumi como secretária executiva a rede no Brasil até o presente momento.

7 MENEZES, D. H. L., CEBS, Redes de Comunidades, p. 35

8 MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da língua portuguesa.

9 MENEZES, D. H. L., CEBS, Redes de Comunidades, p. 35

a rede. Os nós ou pontos de interseção correspondem à coordenação ou pontos de apoio. O crescimento da rede acontece horizontalmente. Esta agrega novos nós e entrelaçamentos dando maior consistência e ampliando a malha. Rede serve para armadilha, caça, como instrumento amortecedor, proteção, sustentação, divisória de espaço, descanso.

Manuel Castelles10 afirma que vivemos em uma sociedade intensificada pelas crises e conflitos que caracterizam a primeira década do século XXI. Crise financeira global, mudanças drásticas nos mercados de negócios e no mercado de trabalho, exclusão social e cultural de grande parcela da população mundial das redes globais que acumulam conhecimento, riqueza e poder, e a crise ambiental, simbolizada pela mudança climática, são questões desafiantes para os tempos de hoje. Castelles, depois de observar duas décadas do século passado, atribuiu significado aos fenômenos usando procedimentos padrão das ciências sociais. E o resultado foi a descoberta de uma nova estrutura social que estava se formando, que conceituou como a sociedade em rede11 por ser constituída por redes em todas as dimensões fundamentais da organização e da prática social. Além disso, as redes são uma antiga forma de organização. As redes não param nas fronteiras do Estado-Nação. A sociedade em rede se constitui como sistema global,

10 Manuel Castells (Hellín, 1942) é sociólogo espanhol. Lecionou nas universidades de Paris (1967-1979), Berkeley na Califórnia (1979-2001), Universidade aberta da Catalunha em Barcelona (2001-2003) e Califórnia do Sul a partir de 2003. Atualmente reside em Barcelona. Sua área de pesquisa concentrou-se em dois campos: sociologia urbana Marxista e novas tecnologias da informação e comunicação.

11 CASTELLS, M., A sociedade em rede, p.11-12.

prenunciando a nova forma de globalização característica do nosso tempo.

Francisco Whitaker12 participou, na França, de 1975 a 1981, de uma experiência desse tipo, chamada Jornadas Internacionais por uma Sociedade Superando as dominações, projeto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que reuniu participantes de mais de 90 países. Foi a época em que essa proposta organizativa começou a se espalhar pela Europa e Estados Unidos. No Brasil, Whitaker viveu uma nova experiência importante de rede, em 1985, com o Plenário Pró- Participação Popular na Constituinte, em que a sociedade civil se articulava na luta por uma Constituinte: mais de 12 milhões de assinaturas chegaram a Brasília, nas Emendas Populares. Esse processo continuou na elaboração das constituições Estaduais e das Leis Orgânicas Municipais. Atualmente várias outras redes vem se implantando entre os brasileiros e brasileiras.

Uma rede pode interligar tanto unicamente pessoas, como apenas entidades. As pessoas e/ou entidades interligadas numa rede podem ser do mesmo tipo ou inteiramente heterogêneas. Tudo depende dos objetivos a que a rede se propõe alcançar. Elas podem ser também de diferentes tamanhos – desde uma equipe que trabalhe em rede colaborativa a uma rede de bairro ou de sala de aula que são comunitárias, chegando  a uma rede internacional. Podem existir

12 Francisco Whitaker Ferreira (São Paulo, 1931) é arquiteto, político e ativista social brasileiro, recebeu o “ Prêmio Nobel Alternativo” da Right Livewood Award, conferido pelo Parlamento Sueco, em 2006.

igualmente redes de redes. E dentro de uma rede podem se formar sub- redes, com objetivos específicos.

A interligação em rede, de pessoas e/ou entidades, estabelece-se a partir da identificação de objetivos comuns e/ou complementares cuja melhor realização se assegurará com a formação da rede. Os objetivos podem ser: a circulação de informações, base comum do funcionamento de todo e qualquer tipo de rede; a formação de seus membros; a criação de laços de solidariedade entre os membros; a realização de ações em conjunto. Quando se propõe, numa rede, uma ação conjunta, esta não precisa ser necessariamente assumida por todos os seus integrantes, mas por aqueles que, livre e espontaneamente, decidirem participar. Numa rede ninguém pode ser massa de manobra de ninguém.

Uma rede constituída para a circulação de informações ou para a formação de seus membros pode propiciar o aparecimento de ações de solidariedade ou de ações conjuntas não previstas em seus objetivos iniciais. As ações conjuntas, por sua vez, podem comportar a conjugação ou a articulação de atividades de tipos diferentes, que se apoiem e se complementem, a partir das possibilidades específicas de cada um de seus integrantes. As ações políticas que combinem planejadamente diferentes tipos de ação podem ter uma força muito maior do que aquelas desenvolvidas através de um único tipo de atuação13.

13 Definição de rede, segundo Francisco Whitaker, encontra-se no artigo “Rede – Uma estrutura alternativa de organização”. O presente artigo foi divulgado pela primeira vez em abril de 1993, com a introdução aqui apresentada, como no 14 da série “PROCURANDO ENTENDER – TEXTOS PARA DISCUSSÃO” – publicação do

Gabinete do Vereador Chico Whitaker, da Câmara Municipal de São Paulo, autor do artigo. Ele foi reproduzido posteriormente em outras publicações, como a revista

  1. Contexto histórico de Rede Eclesial

De acordo com Menezes14, a Rede eclesial é um conceito relativamente recente no cenário da Igreja Católica, que envolve a articulação de pessoas, grupos e instituições com o objetivo de enfrentar desafios pastorais, sociais e ambientais de maneira integrada e colaborativa. As redes eclesiais surgiram como resposta a novas demandas sociais e eclesiais, ocorridas na Igreja ao longo do século XX, com o Concílio Vaticano II e as Conferências Episcopais Latino- americanas.

No entanto, com o Concílio Vaticano II (1962-1965), a Igreja passou por uma profunda transformação em sua visão pastoral e missionária. O Concílio promoveu uma imagem de Igreja mais participativa, aberta ao diálogo e ao serviço ao mundo, especialmente aos pobres e marginalizados. Isso incentivou a criação de redes de colaboração entre diferentes setores da Igreja e movimentos sociais15.

Após o Concílio Vaticano II, a Conferência de Medellín (1968)16, que marcou a recepção do Concílio na América Latina, fortaleceu o chamado à missão de uma Igreja “pobre e para os pobres”, como tem insistido o Papa Francisco17, levando a um compromisso mais forte com a justiça social e a defesa dos direitos humanos. Foi nesse contexto que

MUTAÇÕES SOCIAIS, publicação trimestral do CEDAC, do Rio de Janeiro, Ano 2/nº 3/ março/abril/maio de 1993.

14 MENEZES, D. H. L., CEBS, Redes de Comunidades, p. 16.

15 MENEZES, D. H. L., CEBS, Redes de Comunidades, p. 16.

16 MENEZES, D. H. L., CEBS, Redes de Comunidades, p. 16.

17 GONZAGA, W., Os pobres como “Critério-Chave de autenticidade” Eclesial (EG 19), p. 75-95; GONZAGA. W., Os pobres, o amor ao próximo e a prática do bem em Gálatas 2,10; 5,14 e 6,9, p. 207-228.

começaram a surgir formas mais horizontais e cooperativas de organização dentro da Igreja, que com o tempo evoluiriam para as redes eclesiais.

A partir dos anos 1960 e 1970, na América Latina, começou o surgimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), e foi uma das primeiras manifestações de redes eclesiais que temos conhecimento. As CEBs são pequenas comunidades cristãs que se organizam de maneira “autônoma”, mas ligadas à hierarquia da Igreja, com o objetivo de promover a vivência do Evangelho a partir da realidade concreta dos pobres. Embora não fossem redes no sentido formal, essas comunidades compartilhavam informações, espiritualidades e estratégias de ação, criando uma dinâmica de rede antes mesmo que o termo fosse amplamente utilizado.

Posteriormente, o conceito de rede eclesial se consolidou como uma maneira de enfrentar desafios específicos, como as questões sociais, ecológicas e culturais, envolvendo múltiplos atores da Igreja: congregações religiosas, pastorais, leigos e leigas, movimentos sociais, e até mesmo parcerias com organizações não-governamentais. Isso foi especialmente evidente na Amazônia, com a criação da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM)18, onde a Igreja, presente na região, identificou a necessidade de uma resposta articulada e integrada na defesa da Amazônia e de seus povos originários como apresentado no documento “Memória do Encontro Fundacional”19 da REPAM.

18 REPAM. Somos a REPAM-BRASIL, uma rede à serviço da vida na Amazônia.

19 REPAM. Memória do Encontro Fundacional p. 11.

Com a crescente consciência dos problemas ambientais e a importância da defesa dos direitos humanos no século XXI, as redes eclesiais se tornaram mais formalizadas. Por exemplo, isso foi o que aconteceu com a REPAM, fundada em 2014, que reúne dioceses, prelazias, congregações religiosas e organizações leigas em defesa da vida na Amazônia, articulando ações de incidência e conscientização. Essas redes atuam de forma integrada com outras redes eclesiais, como a Rede Clamor, Rede Um Grito pela Vida, Caritas Internacional e outras, formando um movimento global para a proteção da “Casa Comum”, em sintonia com a encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, que ressalta a importância dessas redes em colaboração para enfrentar os desafios globais. A ideia de redes aparece em vários momentos no documento, especialmente da necessidade de articulação entre diferentes setores da sociedade para promover a justiça social e ambiental. Um dos trechos da encíclica mais diretos é o parágrafo 219, que destaca as redes comunitárias:

A solidariedade pressupõe a consciência de que estamos todos responsáveis por todos. Quando alguém reconhece o apelo divino de que todos somos corresponsáveis pela vida comum, as redes comunitárias, o compromisso social e as formas de participação comunitária tornam-se instrumentos fundamentais para construir uma cultura ecológica20.

20 LS, 129.

Fazendo uma conexão entre a fundamentação da perícope de 1Pd 1,3-5 e a Laudato Si’, este elo está na esperança ativa e no chamado à conversão. Enquanto Pedro se concentra na promessa de uma herança espiritual através da fé em Cristo, a Laudato Si’ amplia essa visão para incluir toda a criação, chamando os cristãos a serem protagonistas na sua proteção e cuidado, e na busca de uma relação harmônica com a terra, como parte do plano de salvação divina. Ambas as mensagens desafiam os fiéis a viverem com esperança expressando-a, através de ações concretas de cuidado, seja com o próximo ou com o mundo criado por Deus.

  1. Desafios, impactos e oportunidades
  1. Desafios

A América Latina é uma das regiões mais desiguais do mundo, onde muitas comunidades sofrem com a pobreza extrema, exclusão social e violência. As redes enfrentam o desafio de atuar em contextos marcados por falta de recursos e políticas públicas ineficazes. Além disso, a criminalidade e a violência afetam diretamente muitas regiões, limitando as ações pastorais e de justiça social.

Junto com toda essa realidade, ainda há a crise ecológica, nos biomas, um cenário de crescente devastação da floresta, impulsionada por atividades ilegais como o desmatamento, mineração, grilagem de terras e construção de rodovias. A defesa dos direitos dos povos

originários e o cuidado com a “Casa Comum” são tarefas que exigem grande esforço frente a interesses econômicos e políticos no Brasil.

  1. Impactos

As redes na Igreja da América Latina têm sido protagonistas na luta pela justiça social. Elas mobilizam esforços para reduzir a pobreza, melhorar o acesso à educação e à saúde, e promover os direitos humanos. Redes como: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Movimento de Educação de Base (MEB) e Teia dos Povos21, são exemplos de como as redes da Igreja geram impactos profundos na vida de muitas pessoas. O trabalho dessas redes é fundamental para dar visibilidade nacional e internacional às questões ambientais e à situação dos povos tradicionais, na maioria das vezes esquecidos e explorados.

Elas também impactam num profundo fortalecimento da fé e da solidariedade entre os membros das diversas comunidades. Ao unirem forças para enfrentar problemas locais, elas criam uma cultura de apoio mútuo e responsabilidade compartilhada, que reflete os valores do Evangelho. Essa atuação amplia o senso de pertencimento e compromisso, tanto em níveis locais, regionais, nacionais e internacionais.

21 A Teia dos Povos é uma articulação de comunidades, territórios, povos e organizações políticas, rurais e urbanas, extrativistas, ribeirinhos, povos originários, quilombolas, periféricos, sem-terra, sem-teto e pequenos agricultores que se juntam, enquanto núcleos de base e elos, nessa composição com o objetivo de formular os caminhos da emancipação coletiva.

  1. Oportunidades

Ao unir forças com outras organizações da sociedade civil, as redes podem ampliar o impacto de suas iniciativas e aumentar sua influência nas políticas públicas. Com reconhecimento de seu papel, elas têm a oportunidade única de exercer maior incidência política, na defesa dos direitos dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores, extrativistas, quebradeiras de coco e outros. A experiência da REPAM em fóruns internacionais como a ONU, o Sínodo Especial para a Amazônia, que aconteceu em 2019 em Roma, com tema “Amazônia: ‘Novos Caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral’”, demonstra que essas redes podem ser vozes influentes que atingem muitas pessoas em nossa sociedade.

Outra oportunidade importante é de formar novas lideranças locais, especialmente entre os jovens. Em um contexto que exige renovação e continuidade do trabalho da Igreja, o investimento na formação de lideranças capazes de lidar com as realidades sociais e ambientais na América Latina é uma grande oportunidade. Isso garante a sustentabilidade das ações da Igreja e a continuidade do compromisso com as causas que defendemos.

  1. Algumas das principais redes eclesiais da Igreja na América Latina
  1. Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (CELAM)

O Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) é uma organização de bispos católicos que reúne as Conferências Episcopais de toda a América Latina e do Caribe. Fundado em 1955, o CELAM tem desempenhado um papel central na vida da Igreja Católica nas regiões, promovendo a coordenação pastoral e a evangelização, além de responder aos desafios sociais, políticos e econômicos que afetam o continente.

  1. Contexto histórico

A criação do CELAM22 se deu em um período de grande transformação na América Latina, marcado pelo Pós-Guerra, movimentos de independência e uma crescente necessidade de coordenação pastoral entre as diferentes Conferências Episcopais. Em resposta a essa realidade, a Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, realizou-se no Rio de Janeiro, em 2 de novembro de 1955, quando se erigiu oficialmente o CELAM. A conferência foi convocada pelo Papa Pio XII, e, desde então, o CELAM tem funcionado como um órgão de articulação da Igreja na região, visando adaptar a evangelização às realidades latino-americanas.

Durante 1960 e 1970, a Igreja Católica na América Latina passou por um período de intensas reflexões teológicas e pastorais, marcado pela Teologia da Libertação e pelo envolvimento da Igreja nas questões sociais e políticas que afligiam as regiões, como a pobreza, a desigualdade e as ditaduras militares. Nesse contexto, o CELAM teve

22 CELAM. Quiénes somos.

um papel crucial, especialmente na Conferência de Medellín (1968)23, que é amplamente reconhecida como um marco na opção preferencial pelos pobres, inspirada pelo Concílio Vaticano II.

  1. Missão do CELAM

O CELAM tem como missão coordenar e promover a comunhão entre as 22 Conferências Episcopais da América Latina, oferecendo orientações pastorais e teológicas em consonância com as necessidades de cada região. Isso inclui o fortalecimento da evangelização, a formação de lideranças pastorais, o apoio às iniciativas sociais da Igreja e a promoção da justiça e da paz. Além disso, o CELAM se envolve ativamente no diálogo com as autoridades civis e organizações internacionais, atuando em defesa dos direitos humanos, da justiça social, especialmente em contextos de desigualdade e violência, que ainda afetam muitos países latino-americanos.

  1. Conferências e impacto

O CELAM é conhecido por organizar Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano24, que são momentos fundamentais de reflexão e planejamento pastoral para a Igreja nas regiões. Entre as conferências mais significativas estão:

Medellín (1968): Marcada pela recepção do Concílio Vaticano II na América Latina e no Caribe, a conferência foi um marco na adoção

23 CELAM. Conferencias Generales del Episcopado Latinoamericano y Caribeño.

24 CELAM. Conferencias Generales del Episcopado Latinoamericano y Caribeño

da opção preferencial pelos pobres, reafirmando o papel da Igreja na luta por justiça social e direitos humanos.

Puebla (1979): Consolidou as reflexões iniciadas em Medellín e aprofundou o compromisso da Igreja com a promoção da justiça e o combate à pobreza.

Santo Domingo (1992): Voltada para a evangelização no contexto da celebração dos 500 anos da chegada do cristianismo à América.

Aparecida (2007): Presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI), a conferência destacou a missão continental da Igreja e a urgência da evangelização em tempos de secularização crescente. Esse encontro produziu o Documento de Aparecida, que teve um impacto significativo, especialmente no pontificado do Papa Francisco, que foi um de seus redatores.

Sob a liderança de Francisco, o CELAM tem reforçado sua missão de ser uma “Igreja em saída”, que acompanha os mais vulneráveis e se compromete com a transformação das realidades sociais. A presença do CELAM também se faz sentir em eventos globais da Igreja, como o Sínodo Especial para a Amazônia (2019) e o Sínodo da Sinodalidade (2023/2024) no qual o CELAM cumpriu um papel importante nas discussões referentes às questões ambientais, de justiça social e dos direitos dos povos.

O Conselho Episcopal tem se adaptado aos novos tempos, promovendo maior participação dos leigos, especialmente das mulheres, e buscando novas formas de evangelização, utilizando as tecnologias digitais e a comunicação moderna para alcançar um público mais amplo.

Neste mundo em constante transformação, o CELAM25 é reconhecido como uma instância profética para a unidade dos povos latino- americanos e caribenhos, e tem demonstrado a viabilidade de sua cooperação e solidariedade a partir da comunhão eclesial.

  1. A CLAR

A Confederação Latino-americana e Caribenha de Religiosos e Religiosas (CLAR)26 é uma organização que representa e articula as diferentes congregações e ordens religiosas da Igreja Católica na América Latina e no Caribe. Fundada em Bogotá, Colômbia, em 1959, ela tem como objetivo promover a comunhão e a cooperação entre religiosos e religiosas, atuando como uma voz unificada para enfrentar os desafios sociais, pastorais e culturais que afetam cada região onde está presente a Vida Religiosa Consagrada.

  1. Missão da CLAR

A missão da CLAR é ser um espaço de comunhão e reflexão para as ordens religiosas, incentivando a renovação espiritual, pastoral e social da vida consagrada e a participação ativa na missão evangelizadora da Igreja. Compromete-se com os princípios do Evangelho, em consonância com as opções preferenciais pelos pobres feitas na Conferência de Medellín (1968) e Puebla (1979). A CLAR está envolvida em várias frentes de ação, dentre elas:

25 DAp, 544.

26 DAp, 223.

Formação e renovação da Vida Consagrada: Oferece programas de formação contínua para religiosos e religiosas, incentivando uma espiritualidade profunda e um compromisso renovado com a missão e os desafios do mundo contemporâneo.

Justiça e Paz: Posiciona-se firmemente em questões sociais, como a defesa dos direitos humanos, a justiça social, a ecologia integral, o combate à pobreza e à exclusão social.

Espiritualidade e Mística: A Confederação incentiva a busca por uma espiritualidade profunda e uma vivência mística que inspire a missão e o trabalho pastoral dos religiosos/as.

Incidência Política e Pastoral Social: Trabalha em conjunto com outras entidades da Igreja e da sociedade civil, como a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), em iniciativas de incidência política em prol da justiça social e da ecologia integral, especialmente no contexto da proteção da Amazônia e dos direitos dos povos originários.

  1. Desafios atuais da CLAR

A vida consagrada enfrenta desafios significativos no contexto latino-americano atual. Entre os principais desafios está o declínio das vocações religiosas, a secularização crescente e as injustiças sociais que afetam diretamente as comunidades vulneráveis. A CLAR se vê desafiada a reinventar suas formas de ação para responder com fidelidade e criatividade aos apelos do Evangelho, sem perder o foco na missão profética.

A situação da crescente crise ambiental a nível mundial e os impactos das políticas econômicas neoliberais que exacerbam a pobreza e a exclusão social de nossos povos também são grandes preocupações para a CLAR. Neste contexto, a vida consagrada é chamada a ser uma voz de resistência e esperança diante dos desvios e degradação da vida humana.

  1. Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM)

Na Querida Amazônia, o Papa Francisco diz: “Encorajo o aprofundamento do serviço conjunto que se realiza através da REPAM e outras associações com o objetivo de consolidar o que solicitava Aparecida”27.

A REPAM é uma rede eclesial a serviço da vida dos territórios da Pan-Amazônia, objetivando cultivar, cuidar e fortalecer processos de visibilidade, articulação e cuidado com os povos, organizações eclesiais da Amazônia e de outros territórios. Constitui-se como uma plataforma de articulação para compartilhar experiências e serviços, com a finalidade de responder às necessidades dos 8 países e 1 território ultramarino da Pan-Amazônia: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela e Guiana Francesa, como é apresentado no livro “Memória do Encontro Fundacional”28.

Uma das grandes inspirações da Rede é dar seguimento e assumir as orientações da V Conferência Geral do CELAM, realizada em

27 QA, 97.

28 REPAM. Memória do Encontro Fundacional p. 36.

Aparecida em 2007, quando os bispos latino-americanos e caribenhos definiram linhas de atuação considerando a importância central e urgente da Amazônia para o mundo e para a Igreja. No documento final está sublinhado que é tarefa da Igreja:

criar consciência nas Américas sobre a importância da Amazônia para toda a humanidade. Estabelecer entre as Igrejas locais de diversos países sul- americanos que estão na bacia amazônica uma pastoral de conjunto com prioridades diferenciadas para criar um modelo de desenvolvimento que privilegie os pobres e sirva ao bem comum29.

Desse modo, em 2013 tiveram início as articulações para a criação da REPAM, tendo como referência três encontros principais ocorridos no mesmo ano: de 22 a 24 de abril, em Puyo, Equador; dias 18 e 19 de julho, em Lima, Peru; e de 28 a 31 de outubro, em Manaus, Brasil.

Em 12 de setembro de 2014, em encontro realizado em Brasília, a REPAM foi oficialmente constituída por suas entidades fundadoras: o Conselho Episcopal para a América Latina e o Caribe (CELAM), a Confederação Latino-Americana de Religiosos (CLAR), o Secretariado Latino-americano e Caribenho da Caritas (SELACC) e a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), por meio da Comissão Episcopal para a Amazônia. O encontro fundacional contou com a participação e o apoio de muitas pessoas que, desde os territórios, articulam e coordenam ações

29 DAp, 475.

de trabalho em rede com o apoio das Igrejas locais e organizações internacionais30.

A criação da REPAM coincidiu com o início do pontificado do Papa Francisco. Meses após a fundação da Rede, o Papa publicou a Encíclica Laudato Si’ sobre o Cuidado da Casa Comum, na qual expressou a importância da Amazônia para o equilíbrio da vida no planeta Terra.

No processo de construção e fortalecimento da REPAM, a Laudato Si’ foi assumida como base, caminho metodológico e horizonte: Base para inspirar sua prática a partir do Magistério da Igreja, com o olhar sensível do Papa Francisco para as questões socioambientais; Caminho metodológico porque incorpora indicações práticas da Encíclica no cotidiano da ação socio-eclesial, na relação com os povos e com todo o bioma; e horizonte porque estão indicados caminhos concretos para a atuação pastoral, incluindo a presença em espaços políticos para promoção de incidência, desde a identidade eclesial, testemunhando o Evangelho da Criação.

  1. Identidade: Ser rede a serviço dos povos

A REPAM é uma Rede porque cultiva, cuida e fortalece processos de visibilidade, articulação e cuidado com os povos, organizações eclesiais da Amazônia e de outros territórios. Tem a consciência das dinâmicas próprias de ser Rede encarnada no cotidiano dos povos, promovendo ações com outras esferas de sensibilização e incidência.

30 REPAM. Memória do Encontro Fundacional, p. 126.

É uma Rede Eclesial porque assume o anúncio e construção do Reino da Vida, a partir do Evangelho e da espiritualidade da Criação. Para isso, fortalece o que realiza a Igreja no território amazônico, com relação à vida dos povos e à Ecologia Integral, mobilizando esforços de diversas organizações, pastorais, movimentos, congregações e outros atores eclesiais para essa finalidade.

É uma Rede Eclesial Pan-Amazônica porque a Pan-Amazônia é um território onde a vida pulsa com muita beleza e muitas ameaças. Lugar onde diferentes povos constroem e realizam seus projetos de vida profundamente ligados ao seu entorno. Esse território é também o conjunto das Igrejas particulares, congregações religiosas, projetos institucionais e interinstitucionais. Por isso, a REPAM assume esse lugar como território de sua ação pastoral em favor do Reino da Vida.

  1. Visão, missão e princípios

Visão31: Ser fonte de vida na Pan-Amazônia e em favor de toda a região, em busca de novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. “Ao serviço da Pan-Amazônia, em defesa da vida”32 que é um dom divino.

Missão33: Promover o Reino da Vida, no cuidado com os povos, territórios e ecossistemas amazônicos, e no incremento da consciência da importância da Amazônia para toda a humanidade, por meio de uma atuação socio-eclesial articulada em rede.

31 REPAM. Memória do Encontro Fundacional, p. 118.

32 OREPEZA, M. L., La Red Eclesial Panamazónica – REPAM, p 101

33 REPAM. Memória do Encontro Fundacional, p. 118.

Princípios: 1) Opção preferencial pelos empobrecidos e empobrecidas e pela Mãe Terra.

  1. Opções pastorais para promover a dignidade humana e os direitos humanos e da natureza desses sujeitos e territórios, tendo como exigência ética a promoção do bem comum.
  2. Protagonismo dos povos: Respeitar profundamente as culturas, tradições, costumes, crenças e organizações tradicionais dos povos e comunidades, acolhendo-os em todos seus processos de formação, articulação, comunicação e outros serviços da REPAM.
  3. Subsidiariedade: Oferecer articulações, ações e serviços para as comunidades e grupos da Amazônia, principalmente as que estão em situação de exclusão e vulnerabilidade, sem suplantar as suas próprias iniciativas ou as obrigações dos Estados ou governos.
  4. Cuidado integral com a “Casa Comum”: Estar comprometida com a defesa da “Casa Comum” a nível local e global, no fortalecimento de experiências que promovam novas economias, outras relações entre povos e natureza que reconheçam a floresta, as águas, a terra e todo o bioma como sujeito de direitos34 “tudo está interligado”, o cuidado é uma questão de proteção da vida humana e seus ecossistemas.
  5. Direitos Humanos, Coletivos e da Natureza: Buscar caminhos de promoção e formação política, sistematizando e documentando situações de injustiças, vulnerabilidades e violações de direitos junto ao território, para participar de espaços locais, regionais e internacionais de denúncias e transformação dessas realidades.

34 QA, 11.

  1. Caminhada Sinodal: Ser um espaço de convergência para organizações eclesiais e não eclesiais do território e de outras regiões comprometidas com a defesa da vida e do bioma amazônico.
  2. Solidariedade e cooperação: Pautar conhecimentos, metodologias, práticas, projetos e recursos para promover a vida dos povos na Amazônia, através de cooperação fraterna e comprometida de agências irmãs da Igreja que são parceiras estratégicas para a realização de sua missão.

A atuação da REPAM-Brasil abrange os nove Estados que compõem a Amazônia Legal brasileira. De acordo com a Lei n° 1.806, de 6 de janeiro de 1953, o conceito de Amazônia Legal é delimitado pela área que engloba estados brasileiros da região Norte, além de partes do Mato Grosso e do Maranhão. Ela foi instituída para promover o desenvolvimento econômico e social da região, considerando suas especificidades ecológicas e sociais. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)35, a Amazônia Legal corresponde a 59% do território brasileiro e engloba nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Estado do Maranhão, ocupando uma área de 5.217.423 km².

  1. Rede Clamor

Outra rede a ser apresentada é a Rede Eclesial Latino-Americana e Caribenha de Migração, Deslocamento, Refúgio e Tráfico de Pessoas

35 GUIMARÃES, C. A., IBGE atualiza limites de municípios no mapa da Amazônia Legal.

(Rede CLAMOR)36. Essa articulação da Igreja Católica tem como objetivo a defesa dos direitos dos migrantes, refugiados, deslocados internos e vítimas de tráfico humano na América Latina e no Caribe. Criada em 2017 pela Conferência Latino-Americana e Caribenha de Religiosos (CLAR), com o apoio do Conselho Episcopal Latino- Americano (CELAM), a rede surge como uma resposta concreta da Igreja aos desafios humanitários impostos pelas migrações forçadas, um fenômeno crescente nas regiões.

  1. Missão da Rede Clamor

A missão central da Rede é proteger e promover os direitos e a dignidade das pessoas em situação de mobilidade humana, atuando especialmente nos contextos de vulnerabilidade que afetam milhões de migrantes e refugiados. O nome CLAMOR é um acrônimo que reflete essa missão: Cuidados, Liberdade, Acolhida, Mobilidade, Orientação e Respeito. A rede busca oferecer não apenas ajuda material e jurídica, mas também acompanhamento pastoral e espiritual às pessoas deslocadas, conectando as diferentes realidades regionais e promovendo uma solidariedade ativa entre as comunidades católicas.

  1. Contexto e desafios

A América Latina e o Caribe vivem uma das mais intensas crises migratórias do mundo, impulsionada por diversos fatores, como a violência, a pobreza extrema, a instabilidade política e os desastres

36 RED CLAMOR. Somos la Red Clamor.

naturais. Nos últimos anos, milhões de pessoas foram forçadas a deixar seus países em busca de segurança e melhores condições de vida, muitas vezes enfrentando graves violações de direitos humanos, xenofobia, tráfico humano e condições precárias em países de destino.

A crise migratória na Venezuela, com o deslocamento forçado na América Central (especialmente no Triângulo Norte, composto por El Salvador, Guatemala e Honduras), e o tráfico de pessoas são alguns dos desafios enfrentados pela Rede CLAMOR. Em muitos desses contextos, migrantes e refugiados vivem em condições desumanas, sujeitos à exploração, violência sexual e discriminação. A Rede busca agir como um instrumento de voz para essas populações, conectando paróquias, dioceses, organizações e movimentos sociais para garantir que os direitos fundamentais dessas pessoas sejam respeitados.

  1. A Rede trabalha em várias frentes:
  1. Casas de Acolhida e Centros de Apoio: Apoia a criação e o fortalecimento de casas de acolhida que fornecem abrigo temporário, alimentação, assistência psicológica e orientação jurídica para migrantes e refugiados. Esses espaços são fundamentais para oferecer dignidade e segurança para aqueles que estão em trânsito ou foram forçados a abandonar seus lares.
  2. Acompanhamento Espiritual e Pastoral: Além do apoio material, a Rede busca oferecer um acompanhamento pastoral e espiritual às pessoas em situação de mobilidade. Essa assistência espiritual é um elemento central, pois reforça o valor intrínseco da

dignidade humana, acolhendo o migrante não apenas como um indivíduo, mas como um irmão na fé.

  1. Incidência: A rede promove o diálogo com governos, organizações internacionais e instituições religiosas, com o objetivo de influenciar políticas públicas que garantam a proteção e o respeito aos direitos dos migrantes e refugiados. Nesse sentido, ela desempenha um papel importante no acompanhamento de legislações migratórias e na promoção de um discurso de acolhimento, justiça e solidariedade.

A Rede CLAMOR é um exemplo concreto do compromisso da Igreja Católica em promover a justiça, a dignidade e os direitos dos migrantes e refugiados na América Latina e no Caribe. Atuando em um cenário de crise humanitária, a rede oferece um sinal de esperança, acolhimento e solidariedade em um contexto de extrema vulnerabilidade. Seu trabalho em favor dos mais pobres e marginalizados continua a ser uma expressão viva do Evangelho, promovendo a paz e a justiça em meio às dificuldades.

  1. Rede Um Grito pela Vida (CRB)

Esta rede é uma articulação da Conferência dos Religiosos do Brasil37 (CRB), que atua em nível nacional no combate ao tráfico de pessoas e à exploração humana. Fundada em 2007, ela é composta por religiosos/as e leigos/as comprometidos com a defesa da vida e da dignidade, especialmente das mulheres, crianças e adolescentes vítimas de tráfico humano.

37 CRB. Sobre nós.

  1. Missão

A Rede “Um Grito pela Vida” tem como missão principal promover ações de conscientização, prevenção e denúncia da grave violação de direitos humanos, que afeta milhões de pessoas ao redor do mundo, enfrentar o tráfico de pessoas, uma das formas mais cruéis de exploração no mundo contemporâneo.

  1. A rede se compromete a:
  1. Prevenir o tráfico de pessoas através de campanhas educativas e de conscientização nas comunidades.
  2. Promover a formação de agentes e lideranças comunitárias para identificar sinais de tráfico e atuar na proteção das vítimas.
  3. Acompanhar e proteger vítimas de tráfico, oferecendo apoio psicológico, jurídico e espiritual.
  4. Incidir politicamente em favor de políticas públicas que combatam o tráfico de pessoas e protejam os mais vulneráveis, promovendo mudanças estruturais na legislação e nas práticas governamentais.

A inspiração vem do Projeto de Jesus Cristo, dos Carismas das Congregações, da indignação profética e da compaixão Samaritana. Há uma defesa dos direitos humanos e uma crença firme e forte que um mundo melhor é possível. A Rede está organizada em 32 Núcleos distribuídos em 22 estados do Brasil, demonstrando ampla e ativa presença em diversas regiões do país.

  1. Texto grego e tradução de 1Pd 1,3-5

A passagem de 1Pd 1,3-5 contém uma rica expressão de esperança e gratidão, sendo um louvor a Deus que renasce no contexto da fé cristã. No grego, as expressões ἐλπίδα ζῶσαν (elpidan zosan, “esperança viva”)38 e κληρονομίαν ἄφθαρτον (kleronomian aphtharton, “herança incorruptível”)39 destacam o caráter perene e incorruptível das promessas divinas.

Esse texto introduz o conceito de uma herança eterna, simbolizada por uma esperança que permanece viva, independentemente das circunstâncias, como uma garantia pela ressurreição de Cristo. A “herança incorruptível” refere-se à vida eterna reservada no céu, uma promessa que transcende as limitações humanas. Exalta a ideia de uma fé que é guardada e protegida por Deus, evocando a segurança e a preservação do fiel até o último dia. Em uma época de perseguição, como no contexto original da carta, essa mensagem serviu para consolar e fortalecer as comunidades cristãs, ajudando-as a perseverar com alegria e fé.

Dentro dessa perspectiva apostólica, a mensagem de 1Pd 1,3-5 também ressoa em diversos documentos do Papa Francisco. Embora a passagem não seja citada de forma direta, seus temas fundamentais – como esperança, resiliência e dignidade humana – estão frequentemente presentes nas reflexões do Pontífice. Vejamos alguns exemplos:

38 MUELLER, E., I Pedro, p 77

39 MUELLER, E., I Pedro, p 77

  1. Na Laudato Sí’, voltada ao cuidado com o meio ambiente, o Papa Francisco aborda a esperança e a responsabilidade de cuidar da “casa comum” para as gerações futuras, especialmente em contextos de crise ecológica e social40. Isso conecta-se ao tema de uma esperança duradoura e um futuro promissor.
  2. Na Evangelii Gaudium, o Papa Francisco recorda como a esperança do Evangelho é central para a missão da Igreja, especialmente em contexto de comunidades em dificuldades41. Ele enfatiza a alegria e a esperança do discipulado que dá vida nova, alinhada à mensagem da 1Pedro sobre uma “herança incorruptível”.
  3. Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco sublinha a fraternidade e a amizade social como caminhos para enfrentar a crise social e espiritual da humanidade42. Essa visão de fraternidade e solidariedade é semelhante ao chamado de 1Pedro para viver com uma esperança duradoura e um compromisso coletivo.
  4. Na exortação apostólica Gaudete et Exsultate, o Papa Francisco não faz uma citação direta de 1Pd 1,3-5, mas muitos dos temas abordados na exortação ecoam o conceito de uma “esperança viva”, como é expresso na carta de Pedro. O Papa destaca que a verdadeira santidade se concretiza no cotidiano, enfatizando a “esperança que não decepciona” ao nos convidar a viver o chamado à santidade, mesmo diante  dos  desafios  do  mundo  atual43,  vivendo  esse  chamado

40 LS, 138-162.

41 EG, 50-109.

42 FT, 198-224.

43 GE, 1-63.

especialmente dentro da rede eclesial, em comunhão com os irmãos na fé.

Portanto, a mensagem de 1Pd 1,3-5 não apenas sustenta a fé das primeiras comunidades cristãs, mas continua a ser uma fonte de inspiração para a Igreja nos dias hoje. Mais ainda, essa passagem nos convida a viver com uma esperança viva, fundamentada na ressurreição de Cristo. Sendo assim, as encíclicas do Papa Francisco, com seus chamados particulares, são uma continuidade dessa mensagem apostólica de gratidão e transmissão da herança incorruptível, como se vê igualmente no texto bíblico a seguir, seja no grego, seja na tradução portuguesa, com uma beleza muito grande sobre as graças e as bênçãos que Deus derrama sobre seus filhos e filhas, com grande misericórdia e dando a todos uma “herança incorruptível” (v.2-3)

Texto grego de 1Pd 1,3-5(NA28)Tradução portuguesa
3 Εὐλογητὸς ὁ θεὸς καὶ πατὴρ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ ὁ κατὰ τὸ πολὺ αὐτοῦ ἔλεος ἀναγεννήσας ἡμᾶς εἰς ἐλπίδα ζῶσαν δι᾽ ἀναστάσεως Ἰησοῦ Χριστοῦ ἐκ νεκρῶν,Bendito (seja) o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, (que) segundo a sua grande misericórdia, tendo nos gerado para uma esperança viva, por meio da ressurreição de Jesus Cristo, dentreos mortos.
4 εἰς κληρονομίαν ἄφθαρτον καὶ ἀμίαντον καὶ ἀμάραντον τετηρημένην ἐν οὐρανοῖς εἰςὑμᾶςPara uma herança incorruptível e sem mancha e imarcescível, tendo sido guardada nos céus para vós.
5 τοὺς ἐν δυνάμει θεοῦ φρουρουμένους διὰ πίστεως εἰς σωτηρίαν ἑτοίμην ἀποκαλυφθῆναι   ἐν   καιρῷἐσχάτῳNo poder de Deus, sois guardados através da fidelidade, para a salvação, preparada (para ser) revelada no tempo último.

Fonte: Texto grego da NA28; tradução e tabela dos autores

Jobes44, em sua análise lexical sobre a perícope de 1Pd, 1,3-5, indica alguns termos importante para a inteira passagem, a saber: εὐλογητὸς (eulogetos), que é um adjetivo que significa “bendito” ou “digno de louvor”, o qual é usado para exaltar a Deus, destacando a sua dignidade e glória; ἔλεος (eleos), um substantivo que significa “misericórdia” ou “compaixão”, o qual se refere ao favor de Deus em um sentido amplo, especialmente no contexto da redenção e salvação; ἀναγεννήσας (anagennēsas), uma forma de particípio aoristo do verbo ἀναγεννάω, que significa “regenerar” ou “dar nova vida”, que indica o ato de renovação espiritual realizado por Deus; a expressão ἐλπίδα ζῶσαν (elpida zōsan), “esperança viva”: ἐλπίδα significa “esperança” e ζῶσαν” é o particípio presente do verbo “ζάω/viver” que se refere a uma esperança dinâmica e contínua, que é sustentada pela ressurreição de

44 JOBES, K. H. 1 Peter p. 105-117.

Cristo; ἀφθαρτον (aphtharton), um adjetivo que significa “incorruptível” ou “imperecível”, usado para descrever algo que não pode ser destruído ou deteriorado; ἀμίαντον (amianton), um adjetivo que significa “incontaminável” ou “puro”, o qual denota algo sem mácula, imaculado; ἀμάραντον (amaranton), um adjetivo que significa “imarcescível” ou “que não se desvanece” que remete a algo que mantém sua beleza ou valor sem nunca murchar; ετηρημένην (ētērēmenēn), um particípio perfeito passivo de τηρέω, “guardar” ou “preservar’, que sugere algo que foi mantido com cuidado e segurança; φρουρουμένους (phrouroumenous), um particípio presente passivo do verbo φρουρέω, que significa “guardar” ou “proteger, o qual indica a ação contínua de proteção divina; e σωτηρίαν (sōtērian), um substantivo que significa “salvação”, o que se refere à libertação final e completa proporcionada por Deus.

  1. Contextualização e significado45

Na passagem 1Pd 1,3-5, o apóstolo Pedro escreve aos cristãos sobre a grandeza da nova vida que eles receberam por meio da ressurreição de Cristo. Os termos gregos sublinham a certeza e a durabilidade da promessa de Deus, uma esperança que não perece e uma herança divina que é incorruptível, incontaminada e imarcescível. O texto enfatiza que a proteção de Deus acompanha os que creem por meio da fé, até a revelação da salvação no final dos tempos.

45 GONZAGA, W. As Cartas Católicas no Cânon do Novo Testamento p. 421- 444.

Suas nuances lexicais mostram a riqueza do texto bíblico e como cada palavra contribui para a profundidade da mensagem de esperança e segurança eterna na fé cristã. Neste sentido, a passagem de 1Pd 1,3-5 correlaciona-se, sem dúvida, com a ideia de esperança e a edificação das comunidades e redes eclesiais. Ela fala sobre uma “viva esperança” que é ancorada na ressurreição de Jesus Cristo e na promessa de uma herança incorruptível. Essa esperança não é apenas individual, mas coletiva, e pode ser vista como um fundamento para a organização e o fortalecimento das redes eclesiais46. As comunidades às quais Pedro se dirige (1Pd 1,1-2) são descritas como dispersas, enfrentando provações e desafios, mas unidas por uma fé comum que transcende as dificuldades. As redes eclesiais são, em sua essência, um reflexo da “esperança viva” mencionada em 1Pd 1,3. Elas se organizam para atuar de forma coletiva, superando desafios como exclusão e fragmentação, exatamente como as comunidades primitivas faziam47. Assim como a carta 1Pedro encoraja os fiéis a manterem-se firmes e unidos na fé, as redes eclesiais promovem a solidariedade, a reciprocidade e a unidade, construindo

relações que transcendem o isolamento e promovem o apoio mútuo.

Sabe-se igualmente que as redes estão sujeitas a conflitos e dinâmicas de poder. Esse ponto encontra eco em 1Pedro, no qual os cristãos são chamados a serem “guardados pelo poder de Deus mediante a fé” (1Pd 1,5), lembrando que é possível superar conflitos e desafios por meio da fé e do serviço comum. A abordagem de uma autoridade como

46 EG, 29.

47 EG, 28.

serviço mencionada no texto é uma prática que ressoa com o espírito de 1Pedro, em que o serviço ao bem comum é central, superando desafios como exclusão e fragmentação, exatamente como as comunidades primitivas faziam. Assim como a carta de Pedro encoraja os fiéis a manterem-se firmes e unidos na fé, as redes eclesiais promovem a solidariedade, a reciprocidade e a unidade, construindo relações que transcendem o isolamento e promovem o apoio mútuo48.

Vê-se assim que 1Pd 1,3-5 oferece uma base teológica para a esperança e a perseverança das redes eclesiais. A carta 1Pedro, escrita para comunidades dispersas que enfrentavam dificuldades (1Pd 1,1-2), ressoa com o contexto das redes eclesiais na América Latina, especialmente na Amazônia, onde o trabalho coletivo é necessário para superar desafios sociais e religiosos. Essa perspectiva amplia a compreensão de que ser “rede” é mais do que organização; é vivenciar a esperança que transcende conflitos e promove a construção de uma comunidade sólida e cheia de vida.

  1. Inspiração de 1Pd 1,3-5 como sinal de esperança para as redes eclesiais

A Primeira Carta de Pedro foi dirigida as comunidades do norte da Ásia Menor, especialmente em um contexto marcado pela diáspora dos judeus. Em sua carta, Pedro exorta os fiéis a se reconhecerem como um novo povo e uma nova casa de Deus; a serem sustentados pelo amor fraterno, fé e esperança, pilares para a vida comunitária. Esses princípios

48 EG, 87.

que a carta apresenta ajudam a iluminar o papel da rede eclesial, promovendo a união e a fraternidade em busca do bem comum e no cuidado da “Casa Comum”. Dessa maneira, a passagem de 1Pd 1,3-5 oferece uma profunda mensagem de esperança e encorajamento para as redes eclesiais, especialmente as que enfrentam desafios e perseguições. Retomando, o texto diz:

Bendito (seja) o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, (que) segundo a sua grande misericórdia, tendo nos gerado para uma esperança viva, por meio da ressurreição de Jesus Cristo, dentre os mortos. Para uma herança incorruptível e sem mancha e imarcescível, tendo sido guardada nos céus para vós. No poder de Deus, sois guardados através da fidelidade, para a salvação, preparada (para ser) revelada no tempo último. (1Pd 1,3-5)

Vale a pena analisar a perícope apresentada, em suas partes. Inicia- se com o v.1: “Bendito seja o Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua grande misericórdia, pela ressureição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo para uma esperança viva […]”. Percebe-se, de imediato, um tom de gratidão e agradecimento. Segundo Mueller49, essa expressão de bênção vem das tradições judaicas e destaca a importância da gratidão na vida comunitária.

O papel da Rede Eclesial, nesse contexto, torna-se central, servindo como um canal de gratidão e bênção para aqueles que são beneficiados em suas missões. A rede não apenas promove o suporte

49 MUELLER, E., I Pedro, p. 74

mútuo, mas também reflete a misericórdia divina ao proporcionar esperança e gratidão àqueles que já não conseguem enxergar tal feito.

Para Mueller50, a ênfase na grande misericórdia de Deus e na ressurreição de Cristo é um lembrete constante de que a esperança cristã não é baseada em circunstâncias imediatas, mas em uma promessa eterna. Para as comunidades eclesiais, essa esperança viva fundamentada na ressurreição de Cristo oferece a certeza de que, mesmo diante de perseguições, dificuldades ou injustiças, a vitória final pertence a Deus e é acessível a todos os que se mantêm firmes na fé. Essa mensagem ressoa especialmente nas comunidades que vivem em contextos de vulnerabilidade e marginalização, onde a resiliência e a confiança na providência divina são cruciais para continuar a caminhada.

Os v.2-3, continuam o louvor de bênçãos e afirmam: “para uma herança que não se desfaz, não se estraga nem murcha, e que é reservada para vós nos céus. Graças à fé, e pelo poder de Deus, estais guardados para a salvação que deve revelar-se nos últimos tempos”. A carta fala de uma “herança incorruptível”51, um símbolo da recompensa eterna reservada no céu para os que permaneceram firmes na fé. A ideia de que essa herança é incorruptível e incontaminada reafirma a convicção de que as bênçãos espirituais e a comunhão com Deus são seguras e indestrutíveis, independente das circunstâncias terrenas.

O texto dessa passagem proporciona uma identidade espiritual forte para as comunidades cristãs, lembrando-lhes do chamado a viverem

50 MUELLER, E., I Pedro, p. 75-76

51 MUELLER, E., I Pedro, p. 77-78

como povo de esperança. A esperança cristã não é uma expectativa passiva, mas uma força ativa que move as comunidades a testemunharem o Evangelho de forma corajosa, mesmo em meio às dificuldades. Assim, a passagem de 1Pd 1,3-5 se torna um sinal de esperança ao afirmar que o sofrimento presente não define o futuro dos fiéis, visto que a ressurreição de Cristo garante uma nova vida e uma herança que transcende qualquer aflição terrena.

Para as comunidades eclesiais contemporâneas, essa mensagem é uma fonte de encorajamento e renovação, especialmente em tempos de crise. Ela reafirma a confiança de que Deus está presente e agindo na história, guiando seu povo para uma esperança viva, que se concretiza em ações de fé, justiça e amor.

  1. Redes eclesiais como protagonistas de esperança em meio às dificuldades

A solidariedade pressupõe a consciência de que somos todos responsáveis por todos. Quando alguém reconhece o apelo divino de que todos somos corresponsáveis pela vida comum, as redes com compromisso social e as formas de participação comunitária tornam-se instrumentos fundamentais para construir uma cultura ecológica. Neste sentido, indica-se a seguir, algumas das maneiras de como as redes podem ser sinais de esperança:

  1. Defesa dos Direitos Humanos e Sociais: As redes eclesiais são importantes na defesa dos direitos humanos, especialmente dos grupos mais vulneráveis, como os povos indígenas, comunidades rurais e

migrantes. Em países marcados por desigualdades extremas, violência e exploração, essas redes levantam a voz contra as injustiças e promovem ações de solidariedade e acolhimento.

  1. Cuidado da Criação e Justiça Socioambiental: No contexto das crises ambientais, como o desmatamento e a exploração descontrolada dos recursos naturais, as redes desempenham um papel crucial na promoção de uma ecologia integral.
  2. Articulação Intercultural e Inter-religiosa: As redes eclesiais na América Latina têm a capacidade de articular diferentes culturas, povos e religiões. Elas constroem pontes entre comunidades e culturas, promovendo um diálogo que valoriza a diversidade cultural e religiosa. Esse espírito de colaboração é uma fonte de esperança em um mundo fragmentado, onde as diferenças frequentemente se tornam motivo de divisão.
  3. Protagonismo das Comunidades Locais: Outro aspecto relevante das redes eclesiais é o protagonismo das comunidades locais. Elas são formadas pela base, pelas próprias pessoas que vivem e enfrentam os problemas no seu dia a dia. Isso garante que as ações e projetos promovidos por essas redes estejam em sintonia com as necessidades reais das populações. A voz das comunidades é colocada no centro, e isso gera um sentido profundo de empoderamento e esperança concreta.
  4. Espiritualidade Profética: As redes também são movidas por uma espiritualidade profética que oferece não apenas um espaço de reflexão, mas também um chamado à ação transformadora. Inspiradas

pelo Evangelho e pela tradição da Doutrina Social da Igreja, elas denunciam as injustiças estruturais e promovem a esperança cristã, baseada na promessa de vida plena e dignidade para todos.

  1. Resiliência em Meio às Crises: Apesar de enfrentarem desafios gigantescos desde a pobreza e violência até a crise climática e os interesses econômicos que prejudicam as populações locais, as redes demonstram uma resiliência notável. A sua capacidade de reorganizar- se e adaptar-se às novas realidades é um testemunho de sua força. Essa flexibilidade alimenta a esperança em tempos de crise, mostrando que a fé vivida em comunidade pode ser um instrumento de resistência e renovação.
  2. Incidência Política e Social: As redes eclesiais têm como protagonismo a incidência política, influenciando decisões e políticas públicas em defesa dos direitos humanos, da justiça socioambiental e da dignidade dos povos. Elas colaboram com governos, organizações internacionais e a sociedade civil para que suas vozes sejam ouvidas nos espaços de poder e decisão.

Conclusão

A luz que provém da perícope de 1Pd 1,3-5 traz um verdadeiro sinal de esperança para as comunidades cristãs na América Latina e em todo o mundo. A partir da ressurreição de Cristo, que renova a esperança em uma herança incorruptível, as redes apresentadas neste estudo têm a capacidade de se unir à Igreja em torno de causas comuns, mesmo diante de adversidades. Assim como os primeiros cristãos encontravam

conforto e fortalecimento na promessa de uma vida nova em Deus, as redes eclesiais contemporâneas também renovam a fé e o compromisso com a justiça, a paz e a integridade da criação.

Essas redes são instrumentos poderosos de solidariedade e de ação pastoral, especialmente em contextos de crise social, ambiental e espiritual. Elas não só oferecem apoio espiritual às comunidades, mas também promovem iniciativas práticas que refletem os valores do Evangelho, a Boa Nova de Cristo, ajudando a transformar as realidades de exclusão e sofrimento em sinais do Reino de Deus. Ao conectar comunidades, congregações e líderes pastorais, as redes eclesiais tornam-se um espaço de resistência e testemunho da fé, afirmando que a esperança cristã não é passiva, mas ativa e transformadora, promotora da vida dos filhos e das filhas de Deus, especialmente dos mais empobrecidos e marginalizados.

Portanto, as redes eclesiais, inspiradas pela mensagem de esperança da 1Pedro, não apenas revitalizam o espírito das comunidades de fé, mas também mostram que, mesmo em tempos de provação, a Igreja pode ser uma fonte de vida, renovação e ação profética no mundo. Elas revelam o poder de uma esperança que, longe de ser um ideal abstrato, é vivida concretamente em atos de amor, justiça e serviço. E o autor da 1Pedro soube pensar e trabalhar pensando na realidade das igrejas espalhadas pela Ásia, mas conectadas pela fé no Ressuscitado e nos ideias do Reino de Deus, como Cristo transmitiu a seus apóstolos.

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