“O desmonte dos dispositivos legislativos e administrativos, como o do PL 191/2020, ameaça os territórios e a vida dos povos indígenas e abre caminho para a sua destruição e deve ser rejeitado na íntegra, pelo conteúdo que fere os direitos coletivos dos povos indígenas no Brasil, reconhecidos e assegurados pela Constituição Federal de 1988”, afirma o documento publicado nessa segunda-feira (20/04) assinado pelos peritos e peritas, auditores e auditoras brasileiros convocados pelo papa Francisco para participarem do Sínodo para a Amazônia. Preocupados com o Projeto de Lei e frente as ameaças vividas pelas comunidades tradicionais nos territórios nesse tempo de Pandemia, os autores do texto cobram a rejeição da proposta pela Câmara e Senado.
De acordo com o documento, “este PL, que foi apresentado pelo poder executivo à Câmara dos Deputados, regulamenta a exploração em Terras Indígenas de recursos hídricos, orgânicos e minerais, como ouro e minério de ferro, e de hidrocarbonetos, como petróleo e gás natural”, afirma o manifesto que propõe a rejeição do Projeto de Lei pelas duas casas do legislativo brasileiro.
De acordo com a ecóloga e pesquisadora Ima Vieira, uma das peritas do Sínodo que assina o manifesto, o processo sinodal é algo dinâmico e não terminou. “Na verdade ele continua e nós estamos acolhendo com esse manifesto a Exortação Apostólica Pós-sinodal do papa Franscico e estamos compartilhando a nossa visão sobre a Querida Amazônia nesse momento difícil, nesse momento crucial para o destino dos povos indígenas brasileiros com esse PL 191/2020”, destaca Ima.
Os peritos e auditores iniciam o documento com uma memória da realidade amazônica e do processo de exploração. “A ganância pela terra “está na raiz dos conflitos que levam ao etnocídio, à criminalização dos movimentos sociais e ao assassinato de suas lideranças. Demarcar e proteger a terra é obrigação dos Estados nacionais e de seus respectivos governos”, destacam ao citar o Documento Final do Sínodo.
A também pesquisadora da Universidade Federal de Roraima e assessora da REPAM-Brasil, Márcia Oliveira, foi perita do Sínodo e contribuiu em todo o processo de construção dos documentos em preparação Assembleia Sinodal. De acordo com Márica, o manifesto é a primeira iniciativa do grupo que há muito tempo já atua na região e conhece bem os sofrimentos e clamores dos povos. “Demos voz a esses sofrimentos durante a assembleia sinodal e agora assumimos o compromisso de dar continuidade no processo pós-sinodal à iniciativas como essa do manifesto que denunciam o poder legislativo, ou seja, o poder de legislar sobre a Amazônia com propostas que vão contrárias àquilo que nós entendemos por defesa da vida na Amazônia.
De acordo com a assessora da REPAM-Brasil o Projeto de Lei 191/2020 representa uma grande ameaça à Amazônia. “Acreditamos que é um projeto que se for aprovado causará diversos danos irreversíveis à Amazônia e, por isso, tomamos a iniciativa de começar por esse manifesto, justamente porque diversas instituições têm interesse econômico na Amazônia e que vão contrários à nossa postura”, finalizou Márcia Oliveira.
O grupo que assina o texto, ao final do manifesto, recomenda aos presidentes do Senado e da Câmara Federal que rejeitem o projeto de lei que pode causar o extermínio das populações indígenas. Fazem recomendações também aos governadores dos estados presentes na Amazônia, investidores e empresários, políticos, especialistas e meios de comunicação e organizações da sociedade civil para somarem na defesa da Amazônia e rejeição ao Projeto de Lei.
A proposta do manifesto, de acordo com os peritos e auditores, é que ele seja também apoiado por outras lideranças e organizações que também acreditem que o PL precisa ser rejeitado pelo Congresso Nacional.
Para apoiar o manifesto dos auditores e peritos, clique aqui.
Leia o manifesto na íntegra ou clique aqui para baixar.
MANIFESTO EM DEFESA DE NOSSA “QUERIDA AMAZÔNIA” CONTRA O PL 191/2020
Dos Peritos e Auditores brasileiros convocados pelo papa Francisco para o Sínodo para a Amazônia
A grande floresta tropical da Pan-Amazônia abrigava sociedades complexas e uma população entre 8 e 10 milhões de habitantes antes da chegada dos colonizadores[1]. As diversas etnias indígenas e sua contribuição para o processo econômico que se instalara foram fundamentais, dado o seu conhecimento geográfico e ambiental dessa área. Foi o indígena quem “instruiu o homem branco nas singularidades da terra, nos segredos da floresta e das águas, ensinou a maneira prática de se explorar as riquezas naturais”, informações que fugiam ao conhecimento europeu[2].
A Amazônia tornou-se conhecida dos colonizadores muito lentamente, pois o processo de exploração e incorporação do imenso território à sociedade colonial, e depois nacional, demandou mais de quatro séculos e, na verdade, ainda não terminou. A ganância pela terra “está na raiz dos conflitos que levam ao etnocídio, à criminalização dos movimentos sociais e ao assassinato de suas lideranças. Demarcar e proteger a terra é obrigação dos Estados nacionais e de seus respectivos governos. No entanto, boa parte dos territórios indígenas está desprotegida e os já demarcados estão sendo invadidos por frentes extrativistas para mineração e exploração madeireira, por grandes projetos de infraestrutura, por cultivos ilícitos e por grandes propriedades que promovem a monocultura e a pecuária extensiva”[3].
Os registros oficiais somam entre 2 e 2,5 milhões de indígenas vivendo na região Pan-Amazônica atualmente, sendo que 190 povos indígenas estão parcialmente ou totalmente dentro dos limites da Amazônia Legal brasileira[4]. São povos nas mais diversas situações de relação e contato com as sociedades não indígenas, incluindo 114 registros reconhecidos e 28 confirmados de povos isolados, que não têm contato algum com as sociedades nacionais, direito garantido pela Constituição Federal de 1988.
O Sínodo da Amazônia reconhece que deve haver “o respeito pela sua autodeterminação e pela sua livre escolha sobre o tipo de relações que querem estabelecer com outros grupos, que deve ser sempre garantido. Isso exigirá que todo o povo de Deus, e especialmente as populações vizinhas aos territórios dos Povos indígenas em isolamento voluntário (PIAV) ou Povos indígenas em isolamento ou contato inicial (PIACI) sejam conscientizadas do respeito a esses povos e da importância da inviolabilidade de seus territórios”[5].
Movimentos em prol dos direitos territoriais dos povos indígenas e demais grupos tradicionais, a partir da década de 1980, coadunaram esforços com a luta da conservação ambiental, criando um novo paradigma que hoje é conhecido por socioambientalismo. Nele, estão presentes as preocupações com o bem-viver, com a qualidade de vida digna, com a defesa dos povos tradicionais e de seus territórios. Esses povos têm condições de auxiliar na conservação ambiental, como eles já o fazem, a partir de sua espiritualidade e de suas formas tradicionais de vida.
Os povos indígenas, com profundo respeito a todas as formas de vida, manejam seu território a partir de modos de vida integrados ao bioma, considerados de baixo impacto ambiental e geralmente compostos por sistemas produtivos sazonais, baseados na caça, na pesca, na coleta e na agricultura. [6]As Terras Indígenas abrigam rica, vasta e abundante biodiversidade, um precioso legado dos povos indígenas para toda a humanidade.
O Sínodo da Amazônia reconhece que “na floresta, não só a vegetação se entrelaça, uma espécie apoiando a outra, mas também os povos se relacionam entre si em uma rede de alianças que beneficiam a todos. A floresta vive de inter-relações e interdependências e isso acontece em todas as áreas da vida. Graças a isso, o frágil equilíbrio da Amazônia foi mantido durante séculos”[7].
Um estudo inédito da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG)[8] comprova que as Terras Indígenas são essenciais para a manutenção dos estoques de carbono, que impedem que o aquecimento global seja ainda mais intenso. De fato, as florestas tropicais são importantes agentes responsáveis pela regulação do clima e os povos indígenas são seus principais guardiões.
Os indígenas, “quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuidam » (LS 146), desde que não se deixem enredar pelos cantos das sereias e pelas ofertas interesseiras de grupos de poder”[9]. Mas os territórios indígenas estão sendo ameaçados, em suas formas tradicionais de vida, no uso e manejo do meio ambiente. Em suma, os indígenas buscam o ideal de bem-viver que “significa compreender a centralidade do caráter relacional transcendente dos seres humanos e da Criação, e implica um “bem fazer”. “Este aspecto integral expressa-se em sua maneira única de se organizar, que parte da família e da comunidade e que abraça o uso responsável de todos os bens da criação”[10].
Ocorre que há uma intensa pressão de empresas e do governo sobre seus territórios, sob a forma de projetos agropecuários, madeireiros, mega obras de infraestrutura e de grandes empreendimentos extrativistas (petróleo e mineração). A presente década “marca o que parece ser o fechamento final do cerco aos povos indígenas da maior floresta tropical do mundo, agora transformada na “última fronteira” da acumulação primitiva do capital e em hot spot da devastação ambiental”[11].
O Projeto de Lei 191/2020[12] é uma dessas ameaças aos povos indígenas e ao socioambientalismo na Amazônia. Este PL, que foi apresentado pelo poder executivo à Câmara dos Deputados, regulamenta a exploração em Terras Indígenas de recursos hídricos, orgânicos e minerais, como ouro e minério de ferro, e de hidrocarbonetos, como petróleo e gás natural. De acordo, porém, com a Constituição Federal, essas atividades só podem ser realizadas nessas áreas com prévia autorização do Congresso Nacional, por meio de decreto legislativo, e mediante consulta às comunidades afetadas, às quais é assegurada a participação nos resultados.
O Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração e a Associação Brasileira de Antropologia, em notas públicas, afirmam que este PL coloca em riscos a maioria dos povos indígenas em nosso país. Destacam que o primeiro compromisso do Governo Federal, para se cumprir a Constituição, deveria ser a demarcação das Terras Indígenas. O artigo 231 da Carta Magna garante aos povos indígenas o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam e à diversidade étnica e cultural, bem como a posse permanente, o usufruto exclusivo e a proibição de remoção de suas terras.
Em resposta aos consistentes protestos dos povos indígenas contra este Projeto de Lei e às manifestações críticas de diversos setores da sociedade civil, o Presidente da Câmara dos Deputados, o presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, afirmou no dia 18 de fevereiro que não colocará em votação o PL 191/2020. A perspectiva, de toda maneira, é que este Projeto permaneça em suspenso por um tempo, com o perigo de que volte ao debate no Congresso quando diminuírem as pressões.
O desmonte dos dispositivos legislativos e administrativos, como o do PL 191/2020, ameaça os territórios e a vida dos povos indígenas e abre caminho para a sua destruição e deve ser rejeitado na íntegra, pelo conteúdo que fere os direitos coletivos dos povos indígenas no Brasil, reconhecidos e assegurados pela Constituição Federal de 1988.
Para a Igreja Católica, a defesa da vida, da comunidade, da terra e dos direitos dos povos indígenas é um dever evangélico, ligado à defesa da dignidade humana: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
Na Exortação Apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia”, o Papa Francisco nos remete a uma Amazônia como um local de diálogo social, especialmente entre os diferentes povos nativos, para encontrar formas de comunhão e luta conjunta.
É neste contexto que nós, auditores/as e peritos/as brasileiros, convocados/as pelo Papa Francisco para participar da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica – Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral, convidamos toda a Igreja a defender e apoiar os povos indígenas, como fizeram os missionários que nos antecederam, na garantia e reivindicação de seus direitos. Como prioridade urgente, recomendamos também algumas ações aos membros do legislativo, judiciário e à sociedade brasileira, como forma de apoio aos povos indígenas:
– Que o presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, rejeitem o projeto de lei que pode causar o extermínio das populações indígenas;
– Que os governadores da Amazônia Legal, principalmente dos estados que mais seriam afetados, manifestem-se contrários ao PL e arguam a inconstitucionalidade da proposta junto ao Supremo Tribunal Federal, caso ele seja aprovado;
– Que investidores e empresários comprometidos com o Meio Ambiente, e os católicos em geral, junto com os demais cristãos e pessoas de boa vontade, se articulem contra o PL, pois ele abre uma fronteira incalculável de devastação;
– Que os políticos conscientes e responsáveis escolham a vida e o conjunto da Criação, a preservação da Natureza, em vez de cálculos pragmáticos de cunho eleitoral, engajando-se na oposição ao PL;
– Que os especialistas nessa área sistematizem demonstrativos de como um modelo semelhante contribuiu para a dizimação dos povos indígenas americanos, já que é o referencial do PL;
– Que os jornais e portais sensíveis ao tema deem destaque às ameaças envolvidas no PL para se ampliar o debate na sociedade;
– Que todas as organizações da sociedade civil procurem os ministros do Supremo Tribunal Federal, os deputados e senadores em seus estados para esclarecerem o assunto e cobrarem compromisso com a rejeição do PL.
Brasília/DF, 20 de fevereiro de 2020.
Assinamos este documento, nós, os/as auditores/as e peritos/as brasileiros convocados/as pelo Papa Francisco para participar da Assembleia Sinodal, realizada em outubro de 2019.
Dorismeire Almeida de Vasconcelos – auditora do Sínodo para a Amazônia
Felício de Araújo Pontes Júnior – auditor do Sínodo para a Amazônia
Joaquim Alberto Andrade Silva – perito do Sínodo para a Amazônia
Márcia Maria de Oliveira – perita do Sínodo para a Amazônia
Maria Petronila – auditora do Sínodo para a Amazônia
Moema Miranda – auditora do Sínodo para a Amazônia
Ima Célia Guimarães Vieira – perita do Sínodo para a Amazônia
Ir. Arizete Miranda Dinelly – auditora do Sínodo para a Amazônia
Ir. Gervis Monteiro – auditora do Sínodo para a Amazônia
Ir. João Gutemberg Sampaio – auditor do Sínodo para a Amazônia
Ir. Maria Carmelita de Lima Conceição – auditora do Sínodo para a Amazônia
Ir. Maria Irene Lopes – auditora do Sínodo para a Amazônia
Ir. Raimunda Nonata de Aguiar Bezerra – auditora do Sínodo para a Amazônia
Ir. Roselei Bertoldo – auditora do Sínodo para a Amazônia
Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante – auditora do Sínodo para a Amazônia
Pe. Dário Giuliano Bossi – padre sinodal
Pe. Guilhermo Antônio Cardona Grisales – auditor do Sínodo para a Amazônia
Pe. José Oscar Beozzo – CentroEcumênico de Serviços àEvangelização e EducaçãoPopular/CESEEP
Pe. José Boeing – padre sinodal
Pe. Paulo Suess – perito do Sínodo para a Amazônia
Pe. Raimundo Vanthuy Neto – auditor do Sínodo para a Amazônia
Roberto Malvezzi – perito do Sínodo para a Amazônia
[1] Souza, J. G. et al. Pre-Columbian earth-builders settled along the entire southern rim of the Amazon. Nature Communications. 27 mar. 2018.
[2] Tocantins, L.. Amazônia: natureza, homem e tempo. Uma planificação ecológica. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
[3] Documento final Sínodo Amazônico 45
[4] Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. Joly C.A. et al. (eds.). Editora Cubo, São Carlos pp.351. 2019.
[5] Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. Joly C.A. et al. (eds.). Editora Cubo, São Carlos pp.351. 2019.
[6] Lima, D. & Pozzobon, J.. Amazônia socioambiental: sustentabilidade ecológica e diversidade social. Estudos Avançados, vol.19, n.54, pp.45-76. 2005.
[7] Documento final sínodo para a Amazônia 43
[8] Disponível em https://www.amazoniasocioambiental.org/pt-br/radar/novo-estudo-faz-balanco-geral-do-estoque-de-carbono-na-amazonia/
[9] Querida Amazônia 42
[10] Documento final Sínodo para a Amazônia 9
[11] Eduardo Viveiro de Castro, O Globo, 16/2/2020
[12] Regulamenta o § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição para estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236765