Márcia Oliveira | Foto: reprodução/REPAM-Brasil

Por Márcia Maria de Oliveira (UFRR/REPAM)

Nesta manhã, a frente do Palácio do Governo de Roraima amanheceu coberta com cruzes num protesto da sociedade civil cobrando do governo um plano de enfrentamento ao avanço imensurável da pandemia do coronavírus no Estado. Uma cruz em destaque chamou logo a atenção. Pintada de branco, com letras pretas a frase “vidas indígenas importam” chama a atenção de quem passa pela praça. Uma alusão à campanha internacional “vidas negras importam”, contra o racismo e o extermínio da população negra.

A imagem desta cruz e a frase impactante me fez pensar nos meus quase 30 anos de vida na Amazônia. Neste tempo todo, aprendi muitas lições e reaprendi muitos conceitos nas andanças com os povos indígenas. Atuando por muito anos na formação de professores/as indígenas, me lembro de uma aula da disciplina de Sociologia da Educação numa turma de Licenciatura em Sociologia na cidade de São Gabriel da Cachoeira, a cidade mais indígena do Brasil.  Era julho de 2013 num curso de formação em módulos concentrados nas férias destes professores/as. Eram 60 estudantes das etinias Arapaso, Baniwa, Barasana, Baré, Desana, Hupda, Karapanã, Kubeo, Kuripako, Makuna, Miriti-tapuya, Nadob, Piratapuya, Siriano, Tariano, Tukano, Tuyuka, Wanana, Werekena e Yanomami. Uma riqueza sociocultural incrível e uma troca de saberes de valor imensurável.

 As aulas eram bem descontraídas e sempre começavam com um ensinamento dos ancestrais para relacionar com o conteúdo teórico que era traduzido para o contexto indígena. Apresentavam o ensinamento nas línguas Nheengatu, Tukano, Baniwa ou Yanomami e depois explicavam em português. Numa das aulas da disciplina Sociologia da Educação, discutiu-se o conceito de civilização. Depois de passar por diversos teóricos vinculados ao conhecimento ocidental, com alguns textos lidos e debatidos em pequenos grupos, apresentaram o haviam entendido sobre o que significava civilização. Depois de algum tempo de silêncio, que era de praxe na turma, o professor Luiz me apresentou aquilo que seria o conceito mais carregado de sentido do que seria civilização no entendimento dos povos indígenas.

De acordo com o professor Luiz, da etnia Arapaso, que vivia e trabalhava com a educação indígena na região do Rio Uaupés a civilização se explica pela atenção que um ser humano tem para com outro ser humano respeitando seus direitos, deveres e suas necessidades individuais e coletivas. E explicou: “quando eu venho para a cidade fazer o curso, eu fico quase dois meses fora da minha comunidade. Eu fico tranquilo estudando aqui porque eu sei que na minha comunidade todos os parentes se unem para atender a minha família enquanto eu estou longe. Eles cuidam para não faltar nada para minha família. Cuidam da alimentação, da diversão, da educação dos meus filhos, da espiritualidade, de tudo mesmo. Em troca, eu estou aqui estudando para ser melhor professor para toda a comunidade. Isso é civilização. É uma troca intermediada pelo cuidado que a gente tem pelas outras pessoas, pelos rios, pela terra, pelos animais e pela floresta que em troca nos dá alimentação. É o cuidado que temos com os seres espirituais que em troca nos dão proteção. É quando a gente cuida da gente e do mundo inteiro com amor. E sabe de uma coisa? Eu acho que nós vivemos a civilização muito antes do que falam estes teóricos que lemos aqui. Muito antes da chegada dos colonizadores ao nosso território. Eles disseram que eram civilizados e a gente era selvagem. Será?” Concluiu o professor Luiz. Aquele conceito de civilização me acompanha desde então. Nunca mais me esqueci deste ensinamento.

Em outra aula desta mesma disciplina que aprofundava os processos de aprendizagem, perguntei como eles ensinavam as crianças a falar. Todos me olharam assustados. Percebi que havia falado alguma besteira. Então, muito gentilmente a professora Mara do povo Kubeo que vivia na fronteira com a Colômbia, explicou o seguinte: “nosso povo, professora, não ensina criança falar. A gente ensina criança escutar. Se ela aprende escutar, ela aprende brincar, refletir e entender os seres que habitam os céus, as águas, a floresta e o centro da terra. Ela escuta o vento, o silêncio, o canto dos pássaros, dos sapos, das cigarras, dos grilos e aprende a diferenciar cada coisa que escuta. Ela escuta os pais, os irmãos, os avós e começa saber quem é cada pessoa da comunidade pela voz, pelo barulho dos passos ao redor da casa.  Primeiro ela escuta o vento, depois ela sente o vento e por último ela fala o que é o vento. Nós sabemos que se ela não aprender escutar, não será capaz de pescar nem caçar porque isso exige escuta, concentração e meditação. Se ela não aprender escutar quando adulta não saberá discernir nem tomar decisões e essas coisas são fundamentais para quem é índio. Por isso, quando as nossas crianças falam, elas já sabem o que significa a palavra que está pronunciando. Diferente das crianças de vocês que aprendem falar antes de aprender escutar e sentir. Aprendem repetindo como papagaio. Isso deve ser muito triste e muito sofrido para elas. Deve ser por isso que vocês falam tanto e escutam tão pouco”.

Este ensinamento da professora Mara Kubeo mudou completamente o meu entendimento sobre os processos de aprendizagem. E muitos outros saberes que aprendi com estes professores indígenas nessas trocas de saberes que fizemos no Alto Rio Negro e em outras regiões da Amazônia.

Esta semana, soube com pesar que estes professores brilhantes sucumbiram à Covid-19. Ela e muitos outros professores/as daquela turma e dos demais cursos de formação superior de São Gabriel da Cachoeira. O município, com 96% da população indígena, é um dos mais afetados pelo vírus na Pan-Amazônia e está no ranking proporcional de diagnósticos de Covid-19. Em 21 dias (de 18 de maio a 8 de junho) teve uma alta de 366 casos da doença para 2.299. Isso representa uma média de 511 casos para cada 10 mil habitantes. Das testagens realizadas no município, 67% tem resultado positivo. A maior taxa da Pan-Amazônia.

Estas cifras estatísticas se repetem em várias regiões da Pan-Amazônia. Entretanto, não são apenas números, cifras, quantidades de pessoas contaminadas e mortas. São pessoas, seres humanos com histórias de vida, ensinamentos interrompidos. Quantos saberes acumulados nestes professores/as enterrados prematuramente em toda Pan-Amazônia!

De acordo com a Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM, em parceria com  a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica – COICA, em seu Boletim sobre o avanço da Covid-19 sobre os povos indígenas, no início de junho, uma média de 5.628 indígenas estão contaminados e 548 faleceram da doença nos últimos meses. Entretanto, essas informações podem estar muito aquém da realidade porque muitas pessoas não conseguem fazer o teste e suas mortes nem sequer são informadas.

De acordo com o mesmo Boletim da Repam, não só corremos o risco de termos genocídio bem como etnocídio porque muitos povos têm um número reduzido de indivíduos e pode perder todos para a doença. “É urgente que não só o Estado Brasileiro (como também toda a sociedade) se mobilize para evitar a tendência que vivemos. A perda de povos indígenas é principalmente uma perda para a sociedade nacional, pois eles são os maiores responsáveis pelo equilíbrio climático e pela proteção das poucas florestas que ainda nos restam”. Por tudo isso, vidas indígenas importam!

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