Na manhã de hoje ‘semeamos’, como acreditam os povos indígenas, no chão da Amazônia, a Irmã Telma Lage coordenadora do Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima. O cortejo fúnebre percorreu as periferias de Boa Vista, passando por diversas comunidades onde Telma Lage atuou nos últimos 8 anos acompanhando os grupos mais vulneráveis na luta em defesa de seus direitos.

Telma Lage, foi mais uma vítima das complicações da Covide-19 que a levou aos 49 anos, em plena atividade pastoral e humanitária. Em lágrimas, muitos grupos acorreram ao cortejo para suas despedidas carregando flores e cartazes que expressavam gratidão. Num dos cartazes a educadora social Elisangela Barbosa escreveu: “você é nossa pequena semente semeada no chão da resistência”.

Diversas agências e instituições nacionais e internacionais que atuam com as migrações compareceram aos rituais do enterro conduzido pelo Bispo Diocesano Dom Mário Antônio da Silva que lamentou que Telma Lage foi mais uma vida ceifada num conjunto de mais de meio milhão de pessoas que morreram precocemente no Brasil nesta pandemia. Entre os presentes, um ‘nó na garganta’ para expressar a dor de enterrar mais uma vítima e a pergunta que não quer se calar: “até quando?”

Incansável defensora dos direitos humanos dos migrantes, dos povos indígenas, dos camponeses, das mulheres e crianças, Telma Lage inscreveu a pauta dos direitos sociais em Roraima. Na audiência pública sobre a questão migratória realizada pela Comissão de Relações Fronteiriças da Assembleia Legislativa de Roraima em 31 de maio de 2019, Telma denunciou a xenofobia institucional que se legitimava nos discursos daquele parlamento. Saiu em defesa da migração como um direito e enfatizava o “migrante como sujeito de direitos que não podem ser negados”.

Sua atuação na coordenação do Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima a tornou ainda mais sensível à causa migratória e ampliou a atuação da Igreja Católica posicionando-a como protagonista nos processos de acolhimento e pastoral dos migrantes. Ao mesmo tempo, questionava veementemente as causas desumanas das migrações que seguem empurrando milhares de pessoas, a maioria mulheres e crianças para os deslocamentos forçados “resultantes das políticas internacionais irresponsáveis e inconsequentes”. Desta forma lutou incondicionalmente contra a criminalização dos migrantes e denunciou todas as formas de opressão e violência contra os deslocados.

Em tempos de perseguição aos defensores e defensoras dos direitos humanos, sua coragem e ousadia na denúncia resultou em muito ataques, ameaças e intimidações. Por outro lado, foi muito querida e respeitada pelas instituições locais e do estado de Roraima que sempre acorriam a ela para lidar com resolução de conflitos e tensões envolvendo a luta pelos direitos humanos. Utilizava-se do seu ‘jeito mineiro de ser’, “firmeza com mansidão”, como se descrevia, para dizer as verdades que precisavam ser ditas na hora certa e com as pessoas certas, sempre se posicionando em favor dos excluídos da sociedade no exercício do direito, na condição de advogada.

Mesmo com muito medo da contaminação e tomando todos os cuidados para se proteger, nos últimos meses acompanhou de forma direta as desocupações aos migrantes em áreas de risco na cidade de Boa Vista. Enfrentou os poderes públicos e denunciou todas as formas de injustiça cometidas contra os migrantes na ação institucional que ela caracterizou como “desumana e inconsequente em plena pandemia e em tempo de chuvas intensas”.

Em 2018, Telma Lage gravou com a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) e a Verbo Filmes, o programa ‘Vozes da Amazônia’ no qual ampliava o conceito de acolhida humana e o debate sobre a migração venezuelana no Brasil (disponível aqui). Foi neste programa que ela disse que “Coração duro não gera vida”. Transcrevemos na íntegra sua narrativa carregada de sentido e sentimentos que permanecem vivos entre nós como seu legado neste dia de despedidas.

Sobre seu trabalho e missão junto aos migrantes Telma afirmava: “Eu digo que a cada dia eu faço o meu possível. E quando eu faço o meu possível eu vou descobrindo, quando eu olho para trás, que o meu possível de um ano atrás era muito pequeno e que o meu possível de hoje se ampliou. Cada família, cada pessoa que a gente consegue transformar, é vida. E de vez em quando a gente recebe isso também. Alguém que passa para dar um abraço e para agradecer”.

Referindo-se ao Papa Francisco, afirma que foi ele “que falou que os migrantes não são um perigo, eles estão em perigo. E quem pode defende-los somos nós. Às vezes a gente tem muitas lágrimas para os migrantes que estão longe de nós, pelos migrantes que a gente vê na televisão… A gente precisa abrir a porta do coração porque quando a gente abre a porta do coração, todos os outros espaços se abrem”.

Formada em Direito e profunda conhecedora dos direitos dos migrantes, afirmava que “o que eles mais precisam é ser reconhecidos como pessoa… que precisa ser escutada, acolhida e respeitada. Isso transforma! Todo o resto é complemento porque, coração duro não gera vida. Você pode até doar alguma coisa, mas, não transforma. O que transforma realmente é o amor e este só vem do coração”.

Os migrantes e os mais diversos grupos sociais perderam uma grande defensora de seus direitos em Roraima. Mas, outros e outras, seguirão seu exemplo e sua luta.

Fonte: Amazonas Atual/ Márcia Oliveira

 

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