Entre os dias 4 e 14 de abril mais de 8 mil lideranças indígenas representantes de 200 povos indígenas, de todas as regiões do Brasil, estiveram acampados em Brasília na 18ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), considerado o maior evento mundial das manifestações dos povos originários.
Numa verdadeira demonstração de auto-organização e de uma riqueza intercultural sem precedentes, os Povos Indígenas protagonizaram um intenso debate sobre suas lutas e resistências que perduram por mais de 500 anos, desde os primórdios da colonização, e comprovam que se recusam à dizimação programada nas salas e antessalas do poder constituído.
Na primeira quinzena de abril os arredores do Palácio do Planalto ficaram enfeitados com as cores dos cocares que representam a riqueza da diversidade étnico-cultural dos Povos do Brasil. E ecoou pelos ares de Brasília o som dos sagrados maracás no ritmo dos cantos e da dança parixara que reúne elementos musicais e corporais que expressam as diversas identidades étnicas que representam o orgulho de uma nação pluriétnica.
Misturada aos cantos e danças, a poesia de Myrian Krexu, jovem Guarani Mbyá, a primeira médica cirurgiã cardiovascular indígena do Brasil, também fez parte das manifestações culturais antes, durante e depois do ATL 2022. Com milhares de visualizações nas redes sociais (https://www.youtube.com/watch?v=dtO1RuRojYc), na voz de Maria Betânia a poesia repercutiu com enorme força comunicativa e se transformou em memória viva da nossa história e em denúncia da negação neocolonialista que insiste em negar nossas raízes ancestrais. Myrian Krexu grita com força interior:
“A mãe do Brasil é indígena, ainda que o país tenha mais orgulho de seu pai europeu que o trata como um filho bastardo. Sua raiz vem daqui, do povo ancestral que veste uma história, que escreve na pele sua cultura, suas preces e suas lutas. Nunca vou entender o nacionalismo estrangeiro que muitas pessoas têm. Nós somos um país rico, diverso e guerreiro, mas um país que mata o seu povo originário e aqueles que construíram uma nação, que ainda marginaliza povos que já foram escravizados e seguem tentando se recuperar dos danos. O indígena não é aquele que você conhece dos antigos livros de história, porque não foi ele que escreveu o livro, então nem sempre a sua versão é contada. Ele não está apenas na aldeia tentando sobreviver, ele está na cidade, na universidade, no mercado de trabalho, na arte, na televisão, porque o Brasil todo é terra indígena. Sabe aquela história de que ‘sua bisavó foi pega no laço?’ Isso quer dizer que talvez seu bisavô tenha sido um sequestrador, então acho que você deveria ter mais orgulho do sangue indígena que corre em suas veias. A mãe do Brasil é indígena”. Proclama Myrian Krexu.
O poema com texto curto e significado profundo evidenciou a importante presença e o protagonismo das mulheres indígenas na representação política no ATL, com destaque para a advogada Joênia Wapichana, primeira Deputada Federal por Roraima a representar as lutas dos Povos Indígenas no Congresso Nacional. Ao lado de Braulina Baniwa, diretora executiva da Anmiga (Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade), Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Juliana Tupinambá, diretora do departamento de mulheres do Mupoiba (Movimento Unido dos Povos Indígenas da Bahia), da Terra Indígena de Olivença.
Elas representam a luta por maior representatividade das mulheres indígenas no centro político do país e nas bancadas estaduais. Esse foi um dos compromissos assumidos no Documento Final do ATL 2022 que pretende ampliar a representatividade política nos poderes executivo, legislativo e judiciário do país. E informam que estão no campo e nas cidades, na agroecologia e nas universidades. São médicos/as, advogados/as, bacharéis, licenciados/as, mestres/as e doutores/as em todas as áreas do conhecimento. Representam o Brasil mundo afora como a jovem advogada Txai Suruí, que discursou na abertura oficial da Conferência da Cúpula do Clima (COP26) que acontece em Glasgow, na Escócia, em novembro de 2021.
“A mãe do Brasil é indígena, ainda que o país tenha mais orgulho de seu pai europeu que o trata como um filho bastardo. Sua raiz vem daqui, do povo ancestral que veste uma história, que escreve na pele sua cultura, suas preces e suas lutas. Nunca vou entender o nacionalismo estrangeiro que muitas pessoas têm”.
A poesia e todo tipo de arte da indignação se transformaram em luta política. Sim. O ATL é um espaço político. É a maior representação política dos Povos Indígenas do Brasil reunida todos os anos em Brasília para não nos deixar esquecer que em nossas veias corre sangue indígena. Esse mesmo sangue que vem regando a terra e os territórios há mais de 500 anos.
O ATL não aconteceu somente em Brasília. Em diversas cidades os Povos Indígenas replicaram a manifestação com a criatividade local, como ocorreu em Boa Vista, na Praça do Centro Cívico, principal centro do poder do estado de Roraima. Na tarde do dia 08 de abril, as mulheres indígenas lideranças da Raposa Serra do Sol, Murupu, Tabaio, Sumuru, Serra da Lua e São Marcos, tingiram de vermelho a fonte do monumento ao garimpeiro, principal centro turístico da cidade que representa uma homenagem à mineração ilegal da Amazônia e uma afronta direta aos povos indígenas.
Sob os reflexos do sol do meio da tarde, a água da fonte virou sangue e protesto contra todo tipo de violência e morte a que os povos indígenas são submetidos todos os dias em seus territórios. Especialmente o sangue dos povos yanomami que mais uma vez têm seu território terrivelmente impactado com a contaminação e destruição do garimpo ilegal que deixam rastros de destruição, violência, doenças e mortes.
Em Brasília, o documento escrito e assinado ao final do ATL 2022, se orientou em cinco grandes eixos transversais: direitos territoriais indígenas – demarcação e proteção aos territórios indígenas; retomada dos espaços de participação e controle social; reconstrução de políticas e instituições indigenistas; interrupção da agenda anti-indígena no Congresso Federal e a retomada da agenda ambiental.
Dessa forma, o ATL 2022 mais uma vez transcorreu sem nenhum incidente demonstrando a capacidade organizativa dos Povos Indígenas que sabem lutar por seus direitos de forma pacífica, irreverente e altamente politizada. Nos dão grandes lições de organização e novamente nos fazem recordar que “a mãe do Brasil é indígena”.
*Márcia Maria Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva – Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
Por Márcia Maria de Oliveira
REPAM/Amazonas Atual