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A professora Márcia Maria de Oliveira (UFRR) alerta: a sabedoria ancestral é chave para a Ecologia Integral e um futuro sustentável, como convoca a Campanha da Frateridade 2025 – CF 2025

Por Osnilda Lima | Cepast-CNBB

A crescente crise ambiental exige uma profunda reflexão sobre a relação entre a humanidade e a natureza. Nesse contexto, a Campanha da Fraternidade de 2025, com o tema “Fraternidade e Ecologia Integral” e o lema “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31), em seu eixo agir, busca inspiração na sabedoria ancestral de povos que vivem em harmonia com o meio ambiente.
Em entrevista exclusiva, a professora Márcia Maria de Oliveira, do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e colaboradora na redação do texto base da Campanha, ressalta a urgência de encontrar soluções sustentáveis para garantir o futuro do planeta. Para ela, o conhecimento tradicional, a organização social e a ação em defesa da natureza são cruciais para conter a crise ambiental. A professora cita exemplos históricos como a perseguição às “bruxas” na Idade Média, a Aliança dos Povos da Floresta e a Campanha “Amazoniza-te” para ilustrar a importância dos saberes ancestrais.
A análise da “Oração do Milho” de Cora Coralina, por sua vez, revisita a necessidade de repensar o sistema alimentar e valorizar a produção local de alimentos como forma de garantir a soberania alimentar e a justiça social.
Professora Márcia Maria de Oliveira (UFRR) | Foto: Jaison Alves da Silva/CNBB Sul4
Professora Márcia Maria de Oliveira (UFRR) | Foto: Jaison Alves da Silva/CNBB Sul4

Que relação existe entre a perseguição às “bruxas” na Idade Média, a perda do conhecimento tradicional sobre a cura com elementos da natureza e a Ecologia Integral?
Márcia Maria – Ao redor de 40, 50 mil mulheres foram executadas na Idade Média acusadas de bruxaria. O que era essa bruxaria? No apanhado geral, a bruxaria era exatamente vinculada aos conhecimentos tradicionais, aos conhecimentos que as mulheres aprendiam das suas avós, das suas ancestrais, relacionados com as ervas medicinais, com as fórmulas para cura de feridas, com a utilização do barro, da terra, até mesmo do fogo, das águas. E isso tem diversos elementos relacionados à ecologia integral. Pois eram mulheres que conviviam com a natureza numa relação de conhecimento, de produção de conhecimento permanente, numa sabedoria que era colocada a serviço da vida. Eram procuradas, por exemplo, para cura de feridas, de ferimentos recentes e antigos, de ossos quebrados. Eram procuradas para chás, para tratamento de diversas doenças, como verminoses, doenças bronco pulmonar, doenças no fígado e assim por diante.
Então eram mulheres que dominavam bastantes conhecimentos relacionados com as plantas medicinais, com a utilização da argila, do barro. Eram mulheres que realizavam curas não somente com o chá ou com a terapia diretamente com a matéria, mas eram mulheres também que realizavam, por exemplo, momentos de banho, de terapia da noite para que o corpo pudesse estar em contato direto com o sereno, com as névoas da madrugada, com o amanhecer ou ao entardecer. Então eram mulheres que tinham toda uma relação com os elementos que hoje nós denominamos ecologia integral.
Ou seja, eram mulheres que viviam e conviviam diretamente com a natureza e faziam uso dessa convivência para a cura das pessoas. Eram mulheres que detinham realmente conhecimentos muito avançados de fórmulas terapêuticas, de unguentos, pomadas para feridas antigas ou ferimentos recentes para ajustar os ossos quebrados ou fora do lugar. Elas avançaram muito no conhecimento da saúde e de modo muito especial atuavam também na prevenção das doenças. Utilizavam ervas e plantas medicinais justamente para prevenir ataques de verminose, problemas no fígado, nos rins, no coração.
Elas detinham muito conhecimento e essa detenção de conhecimento em determinado momento passou a representar uma grande ameaça, de modo especial aos grandes mercados internacionais que comercializavam plantas medicinais, que comercializavam temperos, que comercializavam especiarias vindas da Índia, do Oriente.
Essa prática de conhecimento das mulheres começou a interromper determinados mercados porque no geral as mulheres não cobravam nada por esses serviços.

O que podemos aprender com a “Aliança dos Povos da Floresta” sobre a Ecologia integral? 
Márcia Maria – A Aliança dos Povos da Floresta, idealizada por Chico Mendes, ou sistematizada por Chico Mendes, era uma proposta que vinha de diversas lideranças indígenas, camponesas, seringueiras, do noroeste da Amazônia. Essa aliança foi anunciada em 1987, em Brasília, durante o lançamento da campanha em defesa da Amazônia, e ela previa a luta em defesa da floresta, a aliança dos povos que nela habitavam, que propunha seguir modelos de desenvolvimento sustentável para a Amazônia, demarcações de territórios das comunidades e povos tradicionais, povos quilombolas, indígenas e seringueiros, e a criação de reservas extrativistas.
Esse ponto é interessante porque reservas extrativistas não têm nada a ver com extrativismo comercial. As reservas extrativistas eram as reservas em que se podia coletar frutos da floresta, como açaí, jatobá, buriti, taperebá, que são frutos nativos da floresta, e a caça para subsistência.
Então, reservas extrativistas estão estreitamente relacionadas com a economia de subsistência, ou seja, é uma interrelação com o território, não há depredação, não há exploração exacerbada, é tão simplesmente uma relação de interligação com o território, de interdependência com o território. Eu cuido da floresta e a floresta cuida de mim, eu cuido das águas e as águas cuidam de mim, ou seja, o cuidado resulta em alimentos, em benefícios para as pessoas que convivem com o território.
A aliança dos povos da floresta estava muito vinculada a esse projeto de convivência com a Amazônia, a essa relação de interdependência de cuidado e de resultado, ou seja, eu cuido da floresta e a floresta me retribui com os alimentos que eu preciso para a subsistência da família.
Esse projeto foi muito discutido no Conselho Nacional dos Seringueiros, na época do Chico Mendes, no auge da discussão que o Chico Mendes apresentava. Hoje é o Conselho Nacional das Populações Extrativistas, justamente nessa perspectiva do extrativismo de subsistência e não comercial. E o Chico já alimentava naquela época que as lutas eram iguais e que muitas coisas que se aprendia do extrativismo ou dos extrativistas, dos costumes da floresta, dos costumes indígenas, tinham uma interrelação, uma interligação. E ele sustentava que todos os povos que viviam da floresta tinham heranças indígenas ou raízes indígenas.
Essa grande aliança dos povos da floresta queria justamente pensar um modelo de convivência com a Amazônia, de convivência com as águas e com as florestas, com a terra firme, que conseguisse dar conta da proteção do território e, ao mesmo tempo, da subsistência das pessoas que viviam no território sem nenhum tipo de agressão ao território, ou seja, sem queimadas, sem derrubadas, sem cultivos endógenos, ou seja, sem a introdução de metodologias ou mecanismos externos ao território. Então, era uma relação realmente de cuidado e proteção.
A aliança dos povos da floresta ainda é um grande ideal, uma grande utopia de muitos grupos que lutam pela convivência com a floresta, de modo especial ao Conselho Nacional das Populações Extrativistas, que hoje reúne povos indígenas, camponeses, seringueiros, ribeirinhos de todas as regiões da Amazônia, pescadores e assim por diante. Então, a aliança dos povos da floresta ainda é um ideário para muitos povos, de modo especial no Noroeste da Amazônia e ainda faz parte de um projeto de sociedade, um projeto de cuidado, de interrelação ou interligação numa relação de interdependência, ou seja, o cuidado que tem retornos.

De que forma a Campanha “Amazoniza-te” busca promover a conscientização sobre a Amazônia?
Márcia Maria – A campanha Amazoniza-te foi apresentada em julho de 2020, pela Rede Eclesial Pan-Amazônica, a Repam, como uma das formas de dar continuidade aos debates apresentados no Sínodo Especial para a Amazônia, que ocorreu em Assembleia Sinodal, que ocorreu em outubro de 2019, no Vaticano.
Um dos eixos propostos pelo Sínodo era, justamente, repensar a organização das iniciativas em defesa da Amazônia. Então, a campanha Amazoniza-te foi inspirada no verbo amazonizar, que, na verdade, é uma grande convocação realizada por Dom Moacyr Grechy, que era bispo de Rio Branco, da diocese de Rio Branco, no Acre, em 1986. Em uma carta pastoral, Dom Moacyr fez uma grande convocação aos povos da sua diocese para assumir a causa da Amazônia e a defesa dos seus povos.
Amazonizar passou a ser utilizado amplamente como uma forma de convocação para lidar com a defesa da Amazônia e dos seus povos. E, durante o processo sinodal, de modo especial durante o processo de preparação ao sínodo, a expressão amazonizar passou a ser bastante utilizada como uma forma de repensar as relações com os povos e com o bioma Amazônia.
A campanha propõe, então, conjugar o verbo amazonizar, torná-lo uma expressão pessoal e um chamado a todas as pessoas a se deixarem amazonizar. Ou seja, assim, entenderem como esse território muito rico, poderoso, mas, ao mesmo tempo, muito frágil e muito ameaçado. A campanha conseguiu sensibilizar, realmente, muitos setores da sociedade para os problemas da Amazônia, de modo especial para as queimadas da floresta, as derrubadas e tal, mas ela não conseguiu impedir, por exemplo, os problemas das crises climáticas.

Qual a importância do “agente ecoambiental” na construção de um presente e futuro sustentável, e como essa ação nos ilumina? 
Márcia Maria – A expressão a gente ecoambiental é uma categoria que tem sido debatida no mundo inteiro, em diversos países que lidam com a reciclagem do lixo a partir de uma perspectiva humanizada e social.
Os catadores e catadoras de material reciclável, eles caminham pelas ruas, eles selecionam o lixo, eles criam uma consciência entre os moradores e moradoras sobre a importância de separação do lixo, dos materiais descartáveis. Eles estão muito presentes nesse debate sobre a natureza e o ambiente sociocultural em que vivemos, e não há como pensar no lixo que produzimos quando nos deparamos com as pessoas que reciclam esse lixo.
Ser agente ecoambiental representa também um convite a repensar a forma que lidamos com a questão do lixo, e nos convida também a repensar a nossa grande produção de lixo, que é um dos grandes problemas do capitalismo, da atualidade. Essas pessoas vêm sendo cada vez mais reconhecidas como agentes ambientais, ou em algumas sociedades como agentes ecoambientais.
Agentes ecoambientais são pessoas, são figuras vivas que representam a preservação, o cuidado, a forma de lidar com a natureza a partir dessa reciclagem de materiais que ainda podem ser reutilizados, ou a destinação de materiais que podem ser ainda ressignificados, que podem ainda ser reutilizados de forma muito ativa e efetiva na sociedade.
Cada vez crescem mais as associações, os grupos, e aí tem uma figura muito importante que é a presença das mulheres, o protagonismo das mulheres, organizando diversas associações, diversas iniciativas que lidam com os materiais recicláveis de uma forma muito responsável e muito ecológica. Só o fato de evitarem que diversos toneladas de material reciclável, de material ainda com potencial de aproveitamento, ou de material descartado de forma incorreta na natureza podem causar grandes danos, só por aí essas pessoas já mereceriam todo o respeito da sociedade.
O agente ecoambiental, o agente ecológico, tem uma relação muito estreita com aquilo que a gente propõe no projeto Ecologia Integral. São pessoas que realmente assimilam a proposta da Ecologia Integral numa relação de intervenção direta com os materiais que realmente causam grandes danos à natureza, ao ambiente, ao bioma. Então, cada vez mais essas pessoas, elas são reconhecidas por diversas instituições da sociedade como grandes benfeitoras, ou grandes agentes de grande importância para a sociedade, justamente porque além de fazerem todo esse processo de ressignificação dos materiais recicláveis, também despertam na sociedade a reflexão, a seriedade com que a sociedade deve ter para com o lixo descartado todos os dias na sociedade.

Você traz a “Oração do Milho”, de Cora Coralina, para fazer conexão com a Ecologia Integral. Compartilhe conosco essa reflexão. 
Márcia Maria –  Nas últimas duas décadas, o milho passou de alimento básico dos pobres para um produto de alto valor comercial, dominado pelo agronegócio e voltado à exportação. Trazido ao Brasil pelos indígenas e africanos, o milho por muito tempo representou a base alimentar da população, especialmente dos mais pobres.
Cora Coralina, em seu poema “Oração do Milho” (1965), resgata a importância desse cereal para a cultura brasileira. A obra, publicada em seu primeiro livro de poemas pela editora José Olympio, retrata a simplicidade, a singeleza e o valor afetivo do milho, especialmente para a população mais pobre.
A poeta destaca o contraste entre o baixo valor comercial do milho e sua riqueza cultural e nutricional. Enquanto o trigo, cereal europeu, era associado à nobreza, o milho, originário da América Latina, representava o alimento dos indígenas e africanos, cultivado em quintais e hortas, garantindo a subsistência de muitas famílias. A diversidade do milho, mantida por povos como os Aymara e Quechua, demonstra sua importância para a soberania alimentar dos povos latino-americanos.
A Ecologia Integral propõe um olhar atento para elementos marginalizados nos debates ecológicos, como a alimentação dos pobres e a soberania alimentar. Assim como Gandhi defendia que “a resposta está nas pequenas coisas”, a Ecologia Integral busca soluções a partir dos recursos existentes, valorizando o conhecimento tradicional e as práticas sustentáveis.
Nesse contexto, o milho, cultivado em pequenas plantações, quintais e hortas comunitárias, surge como uma resposta para a soberania alimentar. Cora Coralina, com a sensibilidade de uma poeta que vivia em contato com a natureza em sua “velha casa do rio” às margens do rio Vermelho, em Goiás, nos convida a apreciar a simplicidade e a riqueza do milho.
“Oração do Milho” é um convite à reflexão sobre o papel do milho na sociedade e sua importância para a alimentação dos mais pobres. O poema destaca o potencial do cereal para fortalecer a agricultura familiar e a produção local de alimentos, garantindo a participação popular na construção de um sistema alimentar mais justo e sustentável.
Cora Coralina, ao retratar o milho como um alimento de “sustância e significado”, nos lembra da importância de resgatar valores e práticas tradicionais para construir um futuro mais sustentável. A “Oração do Milho” e a Ecologia Integral se complementam na defesa da simplicidade, da produção local de alimentos e do consumo consciente. Através da valorização do milho e de outras culturas tradicionais, podemos construir uma sociedade mais justa e em harmonia com a natureza.

 

 

Por Osnilda Lima | Cepast-CNBB

Reprodução: Cepast-CNBB

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