Os países ricos resolveram bloquear o texto que propunha a discussão de um novo fundo específico para a biodiversidade, que os países em desenvolvimento aguardam há 32 anos. O caldo entornou
Por Daniela Chiaretti
Em reviravolta inesperada, a COP16 foi suspensa. Discutia-se um ponto nevrálgico da Conferência de Biodiversidade em Cáli, na manhã deste sábado (2): a mobilização de recursos financeiros. Os países ricos resolveram bloquear o texto que propunha a discussão de um novo fundo específico para a biodiversidade, que os países em desenvolvimento aguardam há 32 anos. O caldo entornou.
“Minha delegação não está pronta para discutir nada mais até que tenhamos uma solução para isso”, disse a diplomata Maria Angelica Ikeda, chefe dos negociadores brasileiros. O delegado do Panamá pediu a contagem dos presentes. Sem quórum, a COP16 foi suspensa. Terá que ser retomada no futuro.
A COP de Cali ficou com jeito da COP de Copenhague, no caso do clima. A conferência, que ocorreu em 2009, tinha que fazer um acordo climático global, mas o mundo não estava pronto. A COP fracassou e o consenso global sobre o clima só saiu em 2015, no Acordo de Paris. “ Cali será a Copenhague da CDB”, disse um observador preocupado, referindo-se à Convenção de Biodiversidade, a CDB.
Acabara de ser votado o texto sobre o mecanismo financeiro que irá repartir benefícios obtidos pelas empresas com produtos a partir da biodiversidade – no caso, de recursos da natureza sequenciados geneticamente. O Brasil queria que fosse um instrumento obrigatório, porque isso já foi resolvido politicamente na COP15, em Montreal. Países ricos como a Suíça e o Japão rejeitaram. A Índia entrou com um pedido de última hora, que criou tensão, mas foi resolvido. O Brasil foi flexível, assim como outros em desenvolvimento. Maria Susana Muhamad, presidente da COP16 e ministra de Meio Ambiente da Colômbia, sorriu, aliviada.
Países em desenvolvimento x países ricos
Abriu-se então a discussão de outro texto crucial, o de mobilização de recursos financeiros. Era um tema fundamental para o Brasil. Desde a Rio 92, a conferência no Rio de Janeiro que criou as convenções do clima, da biodiversidade e lançou a de desertificação, ficou acertado que a convenção de biodiversidade precisaria de um fundo próprio, sob a COP, de implementação de suas decisões.
Provisoriamente, à época, escolheu-se o Global Environment Faicily, o GEF, sob o Banco Mundial, para exercer a função. “Uma decisão provisória que está aí há 32 anos”, diz um negociador.
O mundo em desenvolvimento não gosta do GEF, e os países ricos, adoram. A governança é desequilibrada. Os 52 países da África têm que fazer rodízio para poder votar. Brasil e Colômbia (os dois países mais biodiversos do mundo) têm que fazer um rodízio com o Equador para decidir qual o melhor projeto para a Amazônia ou a Mata Atlântica. Os Estados Unidos, que não são sequer signatários da Convenção, têm voto fixo. A Suécia, também. O desequilíbrio da governança do GEF cansou os países em desenvolvimento.
Na COP 15, em Montreal, quando se adotou o Marco Global pela Biodiversidade, essa discussão aflorou. Os países em desenvolvimento foram vencidos pelos países ricos, e tiveram que aceitar o GEF, desde que a governança mudasse. Não mudou. Pior: a lacuna de financiamento para reverter a perda de natureza, que deve chegar a US$ 20 bilhões ao ano até 2025, não chega a 2% desse valor. Os ricos dizem que estão próximos à cifra, mas eles monitoram o que dizem doar, sem transparência. Os outros não confiam.
Novo fundo
Em Cáli estava claro desde o início da COP, há 15 dias, que a situação era insustentável. O Brasil liderou a discussão pelo início de um processo que criasse um novo fundo, sob a COP. O tema, importantíssimo, ficou para o fim da agenda da plenária final, 20 horas depois de iniciada, sem intervalo para os delegados. As delegações de países menores, sem recursos para seguir em Cáli ou mudar a passagem de avião, já não estavam mais ali. De repente, o mundo em desenvolvimento começou a sair da sala.
O delegado da União Europeia (UE) pediu a palavra e, em vez de dizer que tinha problema com tal parágrafo e propor uma solução, rejeitou todo o texto. Noruega, Japão e Canadá repetiram a mesma coisa. O argumento é que um novo fundo quer dizer mais dinheiro e que não podem explicar aos contribuintes europeus o quadro. Já é assim há muitos anos. Há recursos para guerras e para exploração de combustíveis fósseis, que causam a crise climática e a perda de biodiversidade, mas não há recursos para salvar a natureza, só metas.
Intervenção contundente do Brasil
O Brasil pediu a palavra. “Sim, essa Cop fez história”, começou Maria Angelica Ikeda, referindo-se à decisão de se reconhecer o papel dos afrodescendentes na preservação e uso dos recursos naturais e da criação de um novo órgão subsidiário para tratar dos direitos dos povos indígenas e comunidades locais. “Mas precisamos de recursos”, sseguiu.
“Porque todo o tempo nos apontam o dedo, quando temos, por exemplo, incêndios. Tantos países desenvolvidos têm incêndios florestais, todos os anos, e todos lamentam por eles. E eu lamento por eles também. Mas quando nós temos incêndios, e quando nós temos desmatamento, a culpa é nossa. É porque não somos bons o suficiente, é porque não temos fiscalização adequada, é porque estamos errados. Somos julgados o tempo todo. E somos julgados pelo nível de implementação que podemos conseguir. Essa é a realidade. E é assim que nós, do outro lado dessa relação, nos sentimos”, começou a diplomata, em intervenção contundente.
“Concordamos com as outras delegações de que precisamos de mais tempo para uma discussão mais madura sobre este tópico”, continuou, e referindo-se ao texto da presidência da COP: “e seu texto propôs um plano e estruturas que suportem esse processo para que possamos fazer algo que realmente faça diferença”.
A diplomata cobrou: “Estamos aguardando pela promessa do mecanismo do artigo 21 desde a COP1. Estamos na COP16 sem criar o mecanismo financeiro.” Disse que o que se discutiria em Cáli seria só o primeiro passo “para finalmente conseguirmos algo que sempre pensamos que estaria disponível”. E disparou: “Realmente questionamos a legitimidade de discutir um tema tão importante como esse no fim da COP. Temos delegados que nem estão mais cobertos por diárias e custeios, e agradecemos essas pessoas por estarem fazendo isso por nós. Tínhamos que começar a fazer essas discussões no começo da COP. Temos que ter decisões que garantam, pela primeira vez, os recursos que precisamos. E depois podemos discutir as obrigações.”
É Maria Angélica quem lidera a discussão difícil e necessária do novo acordo internacional que pretende eliminar a poluição plástica. “Toda vez que discutimos a poluição plástica, sempre tenho que ouvir que precisamos ser ambiciosos, e que precisamos de um regime ambicioso e obrigações ambiciosas. Digo ‘ok’ e concordo. Mas aí precisamos de meios de implementação também. E parece que para garantir isso temos que discutir o tópico no primeiro dia da COP e ter uma decisão de plenária para podermos discutir todo o resto.”
Um dos primeiros itens da agenda da longa plenária iniciada na noite de sexta-feira (1º) e que avançou até a manhã de sábado foi o orçamento para garantir que o secretariado da Convenção de Biodiversidade possa continuar operando. “Porque tenho que discutir, por exemplo, o orçamento, que é muito necessário para o secretariado da COP? Somos o nono contribuinte do orçamento regular dessa convenção. Não seria melhor gastar os US$ 618 mil que tenho que gastar a cada dois anos, e estou falando só de uma das nossas contribuições para todo o sistema da ONU, no meu próprio pais, preservando nossa própria biodiversidade, empregando mais gente? Não seria um uso melhor desses recursos?”.
Ela própria respondeu a pergunta. “Mas não, estamos aqui porque acreditamos nesse processo. Acreditamos no secretariado, acreditamos em suas atividades. Mas porque vou discutir isso? Ou um texto sobre indicadores ambientais? Para indicar o quê? Para medir o quê? A implementação que tenho que vir até aqui e humildemente suplicar por meios de implementação para implementar a convenção, uma implementação que será medida por esses indicadores? Que estamos negociando em boa-fé porque queremos vê-los também?”.
“Mas o que ouvimos aqui é: eu não quero adotar o instrumento financeiro, eu não quero ajudar, eu não vou abrir essa porta. O que pode ser mudado na decisão? Nos deixe saber.” E deu o golpe final: “Minha delegação não está pronta para discutir nada mais até tivermos uma solução para isso”.
Foi fortemente aplaudida. Delegados de países em desenvolvimento ecoaram as palavras do Brasil. O delegado do Panamá solicitou a contagem do quórum. Com menos de 2/3 dos delegados, as COPs não podem seguir. Susana Mohamad reconheceu o problema e anunciou que a COP estava suspensa. Os países ricos ficaram sem os indicadores de monitoramento.
Ninguém sabe ainda a data da parte 2 da COP de Cáli. Mas todos sabem que vai começar por onde a parte 1 terminou: pelos meios de implementação.
*A jornalista viajou a Cáli, para a COP 16, a convite do Instituto ClimaInfo e do The Nature Conservancy (TNC)
Por Daniela Chiaretti
Reprodução: Valor Globo