Conferência da ONU para biodiversidade inicia nesta segunda (21), na Colômbia, com participação de organizações brasileiras. Em documento, 154 organizações, movimentos populares, redes e povos tradicionais denunciam e reivindicam medidas de proteção à biodiversidade.
Povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, agricultoras e agricultores familiares de todo o país, organizações e movimentos populares vinculados a um amplo espectro dos direitos humanos manifestam, em carta divulgada nesta segunda-feira (21), o urgente enfrentamento a ações em curso no Brasil de impactos à biodiversidade e aos territórios tradicionais, bem como a necessidade de adoção de medidas de proteção à biodiversidade.
Assinado por 154 organizações, coletivos e redes, a carta torna públicas as recomendações e o posicionamento da sociedade brasileira para a 16ª Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP16). Iniciada também na data de hoje, em Cali (Colômbia), a agenda mundial sobre o tema deve reunir até 1º de novembro cerca de representantes dos 200 países signatários da ONU para negociações em torno da conservação, uso sustentável e repartição justa dos benefícios da biodiversidade.
Metas globais de preservação da biodiversidade, de proteção dos conhecimentos tradicionais, questões sobre clima, sementes crioulas, direitos de agricultoras e agricultores familiares, povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais, transgênicos, sequenciamento digital de informações, proteção dos conhecimentos tradicionais são alguns dos temas presentes na agenda. Em meio a disputas e busca de consensos, os países assumem metas que devem ser traduzidos em ações e compromissos na esfera nacional voltadas para a proteção da biodiversidade
:: Veja aqui a carta aberta de posicionamento da sociedade civil para COP16.
Esta edição é a primeira desde a assinatura histórica, em 2022, do Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal (GBF, na sigla em inglês), na COP15, no Canadá. Neste acordo assinado por 196 países foram estabelecidas 23 metas globais a serem alcançadas até 2023 de conservação das florestas, solos e oceanos e regeneração de todo conjunto de vida na terra.
Nesta edição, são esperados debates sobre o alinhamento da Estratégia e Plano de Ação Nacional para a Biodiversidade (EPANB) pelos países ao novo Marco Global. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, a atualização das EPANB pelo Brasil não foi finalizada, mas encontra-se em estágio avançado de construção e debate. A versão brasileira em revisão foi elaborada para o período de 2010 a 2020, publicada em 2017, e tratava das Metas de Aichi, aprovadas na COP-10, no Japão.
Outra expectativa de definição nesta edição é que se espera que os países concordem em operacionalizar o mecanismo multilateral para a partilha justa e equitativa dos benefícios da Informação de Sequência Digital sobre recursos genéticos, incluindo um fundo global. Com a crescente apropriação de conhecimento de povos e comunidades tradicionais por diferentes sujeitos, a criação de um mecanismo é um modo de assegurar, que povos e comunidade tradicionais que detenham conhecimento tradicional associado à biodiversidade possam usufruir da partilha de benefícios. A utilização dos conhecimentos ancestrais e coletivos para a produção de medicamentos, cosméticos, melhoramento genético, entre outros, geram bilhões de lucros anualmente para empresas, principalmente transnacionais.
Participação popular
Além de representações governamentais, a COP da Biodiversidade conta com espaço para participação de povos e comunidades tradicionais, organizações sociais, movimentos populares e pesquisadores. Ainda que não estejam na esfera de tomada de decisão, a presença e incidência política de povos tradicionais na agenda é compreendida como essencial pelas organizações. Espera-se com isso que o debate seja menos centralizado no poder econômico e mais atento à preservação da biodiversidade associada à proteção dos povos indígenas, quilombolas, agricultoras/es familiares, comunidades tradicionais e seus dos territórios. Isto porque, como aponta o coletivo de signatários da Carta, a COP também conta com a presença de empresas, muitas delas responsáveis pela crise climática, contaminação do solo e das águas e extinção de espécies. Como as empresas incidem na agenda internacional em torno de seus objetivos, a COP também se configura como um campo em disputa.
“A expectativa é que seja uma COP com grande participação popular, o que pode contribuir diretamente para melhores tomadas de decisões que envolvam a garantia dos territórios tradicionais, proteção dos defensores da biodiversidade, políticas e programas de desenvolvimento da agrobiodiversidade e a proteção dos conhecimentos tradicionais,” aponta a assessora jurídica da Terra de Direitos e integrante do Grupo de Trabalho Biodiversidade (GTbio) da Articulação Nacional de Agroecologia, Jaqueline Andrade.
De acordo com Jhonny Martins, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e integrante do GTbio, é fundamental o reconhecimento em agendas como a COP e no desenvolvimento da política pública das realidades e conhecimentos específicos dos diferentes povos. “Para nós quilombolas é importantíssimo garantir representatividade na participação e não ter uma uniformidade de presença dos grupos, é preciso abrir um diálogo sobre o conhecimento dos agrorurales, negras e negros que são detentoras do saber”, aponta.
A reivindicação da participação de povos e comunidades tradicionais, com suas especificidades, se estende para além da participação na Conferência. Conduzido pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, os povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, agricultoras e agricultores familiares participaram neste ano, pela 1ª vez na história, da atualização da Estratégia e Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade (EPANB).
A postura do governo federal difere, significativamente, da adotada pela gestão de Jair Bolsonaro (PL) durante a COP15. Na carta da edição da COP16, o grupo de assinantes destaca ao refletir sobre a edição passada que “fomos isolados de qualquer processo de negociação, diálogo e participação”.
Com essa memória recente de construção, mas também de impossibilidade de participação no debate, a expectativa dos povos tradicionais é que a postura e os compromissos assumidos pelo Brasil durante a COP da Colômbia estejam alinhados com as reivindicações e contribuições trazidas pelos povos tradicionais no processo de consulta, realizado este ano, e com a instituição de canais de participação contínua dos povos no desenvolvimento da política de proteção à biodiversidade. “Que seja e esteja garantido o direito de participação, protagonismo e gerência dos povos sobre todo e qualquer assunto que incidam sobre nossas vidas e territórios”, sublinha a integrante da Articulação dos Povos Indígenas (Apib) e integrante do GTBio, Cris Pankararu.
Enfrentamento aos retrocessos
O conjunto de organizações destaca que, embora a nova gestão federal tenha importantes sinalizações de compromisso com a biodiversidade – como criação do Ministério dos Povos Indígenas – seguem intensas as queimadas em todas as regiões, especialmente no Pantanal, Cerrado e Amazônia, com 12 milhões de hectares queimados neste ano.
As organizações ainda destacam a liberação de novos registros de agrotóxicos e de sementes transgênicas, inclusive do trigo, o estado de alerta do regime hídrico, a possibilidade de exploração petroleira na foz do Rio Amazonas e as recentes tragédias socioambientais, como a no estado do Rio Grande do Sul, que impactaram mais de 1,5 milhão de pessoas. As organizações brasileiras sublinham ainda como temas de preocupação a privatização de bens comuns, as iniciativas do capitalismo verde e a financeirização da natureza, baseadas na acumulação de capital e expropriação dos povos das florestas, das águas e do campo.
“O mundo precisa saber o que os empreendimentos estão fazendo com nossos territórios. Se não tem território não tem biodiversidade. O uso de agrotóxicos, as mineradoras, o agronegócio vão invadindo os territórios, expulsando os povos que residem lá em direção às periferias das cidades e ferindo de morte a Mãe Terra, acabando com fontes de rios, matas, contaminando o ar, a água e os alimentos”, destaca Elizete Maria da Silva, coordenadora do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste.
Entre as ações defendidas pelos signatários da carta apresentada pelas organizações nesta COP16 estão a declaração, pelo Supremo Tribunal Federal, de inconstitucionalidade de duas leis, a que estabelece a tese do “marco temporal” (nº 14.701/23), e a que promove intensa flexibilização de registro e uso de agrotóxicos (nº 14.785/23), conhecida como “Pacote do Veneno”.
Outra reivindicação presente no documento é a de garantia do direito territorial dos povos tradicionais, com a regularização, titulação e demarcação de territórios indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais como condição para proteção da biodiversidade. Se por um lado são os territórios tradicionais que apresentam os menores índices de desmatamento e preservação socioambiental, de outro as e os defensores de terra e meio ambiente são os que mais têm sofrido violência, como aponta a pesquisa Linha de Frente, desenvolvida pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global. De 1.171 ocorrências de violência contra defensoras/es, 919 (78,5%) foram dirigidas a quem defende terra, território e meio ambiente.
“A gente quer alimento sadio, água e terra pura, que nos deixem viver nos nossos territórios com qualidade e respeito. É o que pedimos”, complementa Elizete.