Artigos

Por Melillo Dinis do Nascimento | Assessor Jurídico e de Incidência Política da REPAM-Brasil 

Para começo de conversa…

O julgamento do marco temporal chegou ao seu final (Recurso Extraordinário nº 1.017.365 – repercussão geral) no Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 27 de setembro, com uma importante vitória dos povos indígenas (9 votos a 2). Resultado: o marco temporal não existe. Noutro espaço, os setores favoráveis à tese do marco temporal, em uma reação no Congresso Nacional, aprovaram no mesmo dia uma legislação (no Senado era o projeto de lei nº 2.903/2023) que o ressuscitou e piorou muito. Está, por ora, submetido a avaliação do Presidente da República.

Esse texto é uma primeira tentativa de explicação, ao considerar os diversos elementos e sugerir possíveis desdobramentos. Pretendo ser didático e o mais sintético possível. E, apesar de formular alguns cenários, é uma aproximação e não a verdade absoluta. Ele foi elaborado para ser lido por não juristas, especialmente nos territórios e com as comunidades e agentes que estão na luta e na lida. Antes, porém, alguns conceitos bem objetivos.

O que é o marco temporal?

O marco temporal foi uma criação de um pedaço da turma do Direito segundo a qual os povos indígenas somente teriam direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Ela surgiu em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, quando esse critério foi usado pelo STF.

E pode?

Pode. A nossa lei maior, a Constituição de 1988, tem um conjunto de regras para todos os brasileiros. Entretanto, a sua interpretação é realizada, por último, pelo guardião da Constituição – o STF.

Nos últimos 30 anos, o Poder Judiciário passou por uma profunda modificação: maior participação nas decisões e na vida dos brasileiros! Na mesma toada, após 1988, a Constituição brasileira se consolidou como um importante instrumento de regulação das relações entre as pessoas da sociedade, seus interesses e seus conflitos, pela possibilidade de sua aplicação direta da Constituição, com seus valores e princípios, independentemente da intermediação dos legisladores. Ela se transformou numa força e no espaço de solução dos problemas. O próprio STF, pela norma da nossa Constituição, tornou-se uma espécie de último espaço de solução das disputas da sociedade, quando o assunto é jurídico, e muitas vezes foi invadido por temas da política. E foi, assim, que ele admitiu para o caso da reserva Raposa-Serra do Sol (Petição nº 3.388/RR, em 2009) uma ideia: a de se estabelecer um marco temporal na data exata do advento da Constituição de 1988 (5 de outubro) para admitir a pretensão de demarcação das terras indígenas. Não teve, entretanto, um efeito vinculante para as demais decisões judiciais em todo o país.

Por que voltou o debate no STF?

Em 2003, foi criada a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, mas uma parte dela, ocupada pelos indígenas Xokleng e disputada por agricultores, estava sendo requerida pelo governo de Santa Catarina no Supremo Tribunal Federal (STF), nesse processo que foi julgado definitivamente em 2023. O argumento dos advogados de Santa Catarina era que a área, de aproximadamente 80 mil metros quadrados, não estava ocupada em 5 de outubro de 1988. Os Xokleng, combativo povo indígena daquela região, por sua vez, argumentavam que a terra estava desocupada na ocasião porque eles haviam sido expulsos de lá. O STF transformou o julgamento de um caso específico (Santa Catarina e os Xokleng) em algo válido para todo o país (o nome disso é “repercussão geral”).

Como votou o STF?

O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, no dia 21 de setembro, a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Por 9 votos a 2 (apenas Nunes Marques e André Mendonça votaram contra a maioria), o Plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. No dia 27 de setembro, o Plenário fixou as teses e parâmetros para a resolução dos casos semelhantes submetidos ao poder judicial e que estavam suspensos à espera dessa definição. Vejam o que decidido, transcrito da transmissão do julgamento, em 13 itens:

1 – A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena.

2 – A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e das necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo os seus usos, costumes e tradições, nos termos do parágrafo primeiro do Artigo 231 do texto constitucional. 

3 – A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente, à data da promulgação da Constituição.

4 – Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias previsto no Parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

5 – Ausente a ocupação tradicional indígena, ao tempo da promulgação da Constituição Federal, ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição Federal, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada, relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular o direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis pela União, e quando inviável o reassentamento dos particulares caberá a eles indenização pela União com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área correspondente ao valor da terra nua paga em dinheiro ou em título da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitida autocomposição e o regime do Artigo 37, parágrafo 6° da Constituição.

6 – Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de Terras Indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados em andamento.

7 – É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das Terras Indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida em todo caso a comunidade indígena, buscando-se se necessário a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas, Artigo 16.4 da Convenção 169 da OIT.

8 – O procedimento de redimensionamento de Terra Indígena não é vedado, em caso de descumprimento dos elementos contidos no Artigo 231 da Constituição da República, por meio de instauração de procedimento demarcatório, até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da Terra Indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento. 

9 – O laudo antropológico, realizado por meio do Decreto 1.775/1996, é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com os seus usos, costumes e tradições e observado o devido processo administrativo.

10 – As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nela existentes. 

11 – As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.

12 – A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurado o exercício das atividades tradicionais dos povos indígenas.

13 – Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutir seus interesses sem prejuízo nos termos da lei, da legitimidade concorrente da Funai e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei.

Alguns temas foram criticados pelo movimento indígena. Foi prevista a validação dos títulos incidentes sobre as terras indígenas, a possibilidade de indenização no valor da terra nua e o direito de retenção da posse por não indígenas até o pagamento do valor incontroverso desta indenização. São questões polêmicas que tendem a dificultar os processos em curso, bem como as futuras demarcações, potencializando os conflitos e colocando em risco a vida dos indígenas. De todo o modo, pensava-se que este tema e as lutas pelos territórios indígenas teriam um pouco de estabilidade institucional. Contudo, numa crise entre poderes, foi aprovado, na mesma noite da decisão do STF, um Projeto de Lei sobre o marco temporal.

O marco temporal no Congresso Nacional

 Com uma primeira aprovação pela Câmara dos Deputados, em maio de 2023, na noite de 27 de setembro, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) 2903/2023 totalmente contrário ao decidido pelo STF. Fixou o marco temporal, em 5/10/1988, e estabeleceu que a União poderá indenizar a desocupação das terras e validar títulos de propriedade em terras das comunidades indígenas. Ainda, antes de concluído o processo de demarcação, “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação”.

O texto aprovado no Congresso Nacional ainda:

  1. autoriza garimpos e plantação de transgênicos em terras indígenas;
  2. permite a celebração de contratos entre indígenas e não-indígenas voltados à exploração de atividades econômicas nos territórios tradicionais;
  3. possibilita a realização de empreendimentos econômicos sem que as comunidades afetadas sejam consultadas;
  4. prevê que a regra de marco temporal poderá ser revista em caso de conflitos de posse pelas terras.

A proposta legislativa do marco temporal está submetida ao rito de sua sanção pelo Presidente da República. São 3 as possibilidades: (a) veto total; (b) veto parcial; e (c) sanção integral.

O que Lula deve fazer?

Lula deve vetar a proposta legislativa do Congresso Nacional de ressuscitar o marco temporal. Entretanto, é bem provável que isto aumente o desgaste entre os poderes, pois há enorme possibilidade de o veto ser derrubado pelo Congresso Nacional.

E aí?

Teremos duas realidades jurídicas: (a) uma decisão válida para todos do STF; (b) uma nova legislação aprovada pelo parlamento brasileiro. Haverá muito mais litígio e dificuldades nas produções do Estado brasileiro que tem muitas dificuldades em cumprir os seus deveres de demarcação das terras indígenas. Dados recentes indicam que o governo brasileiro acumula 166 processos de demarcação de terras indígenas. Alguns dos processos de demarcação tramitam há 40 anos e seguem sem decisão, apesar dos esforços deste ano, especialmente do Ministério dos Povos Indígenas. A lentidão deve se agravar com produção do Congresso Nacional sobre o marco temporal.

E, no amplo campo político, uma guerra de narrativas e disputas nos territórios, muito mais que em Brasília, que vai complicar o meio de campo e esticar a tensão que tanto assola o Brasil. Os invasores, o ilícito e o capital agrário são muito fortes e a vida dos indígenas e a proteção do meio ambiente correm enormes riscos.

Quais são os cenários possíveis?

Antes de discutir a política, é claro para quase todas as instituições que o guardião da Constituição, que diz o que é ou o que não é constitucional, é o STF. Provavelmente o Congresso Nacional também o sabe. Mas decidiu enfrentar a decisão final como forma de enrolar e dificultar a questão demarcatória. Além disso, em parte do eleitorado esse discurso conspiratório e violento com os povos originários tem algum valor, nem que seja o ressentimento e a ignorância.

Em outro sentido, em um governo de frente amplíssima, como o atual, em que todo assunto é um permanente dissenso, com mais brigas que soluções, sem muita pressão e articulação dos movimentos sociais, dos democratas e dos povos indígenas, a pauta das demarcações dos territórios e do enfrentamento às pressões ilícitas e lícitas sobre as comunidades será dificultada em demasia.

Dito de outra forma, vamos ter que lutar e muito!

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios estão marcados *

Postar Comentário