Por Márcia Maria de Oliveira (UFRR/REPAM-Brasil)
O Dia da Amazônia celebrado em 5 de setembro foi instituído por D. Pedro II em 1850, por ocasião da criação da Província do Amazonas. Desde então, a data vem ganhando novos significados e atualmente é celebrada em muitos lugares do mundo como uma forma de defender a Amazônia e seus povos que nunca estiveram tão ameaçados como na atualidade.
Logo no seu início, o Documento Final do Sínodo Especial para a Amazônia (2019, n. 2), reflete sobre a “dramática situação de destruição que afeta a Amazônia. Isso significa o desaparecimento do território e de seus habitantes, especialmente dos povos indígenas. A floresta amazônica é um “coração biológico” para a terra cada vez mais ameaçada. Se encontra em uma corrida desenfreada para a morte. Requer mudanças radicais de suma urgência e um novo direcionamento que permita salvá-la. Está cientificamente comprovado que o desaparecimento do bioma Amazônia trará um impacto catastrófico para o planeta”.
O bioma Amazônia é um dos mais diversos do planeta. Entretanto, é extremamente frágil. A floresta, grande produtora e distribuidora de chuvas para a Amazônia e para outras regiões do Brasil e da América Latina, é densa e exuberante na sua formação natural. As queimadas matam, juntamente com as florestas, milhares de espécies vivas que vivem numa relação de interdependência neste bioma, no conjunto da sociobiodiversidade, muitos povos historicamente passaram a depender da floresta para manutenção de suas formas de vida, profundamente afetadas pelas pelos impactos da destruição da floresta que também produz alimentos de grande valor nutritivo para alimentar extensos agrupamentos humanos.
Os povos indígenas convivem com a floresta e com os rios da Amazônia e dela dependem sem a destruir há pelo menos 10 mil anos. Em 500 anos de colonização se atingiu um nível assustador de destruição da floresta para fins privativos, individualistas, capitalistas, egoístas. O habitat historicamente habitado por coletividades inteiras, vem sendo transformado em enormes fazendas de gado e soja em extensas propriedades privadas. O latifúndio vem tomando conta da Amazônia e provocando uma tragédia sem precedentes na história dessa região.
Em seu número 47, o Documento Final do Sínodo afirma que “a vida dos povos indígenas, mestiços, ribeirinhos, camponeses, quilombolas e/ou afrodescendentes e comunidades tradicionais está ameaçada pela destruição, pela exploração ambiental e pela violação sistemática de seus direitos territoriais. Os direitos à autodeterminação, à demarcação dos territórios e à consulta prévia, livre e informada devem ser respeitados. Esses povos têm “condições sociais, culturais e econômicas que os distinguem de outros setores da comunidade nacional e que são regidos total ou parcialmente por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial”.
Convenções internacionais como a 169, garantem proteção a estes povos, mas, precisa ser referendada pelo Estado no qual estão seus territórios. O que vem ocorrendo na Amazônia nos últimos 5 anos é um completo ataque aos seus povos e suas instituições de defesa. Um modo de vida não capitalista que resiste há mais de quinhentos anos de colonização, vem sendo gradativamente impactado pela invasão do garimpo e das grandes mineradoras que trazem consigo a morte e a destruição dos rios, o envenenamento da terra e das águas. Consequentemente, envenenam os povos que vivem nos territórios atingidos direta e indiretamente.
Desde a abertura das grandes estradas que cortaram as florestas para interligar a Amazônia a outras regiões no período da ditadura militar que envolveu grandes recursos estatais envolvidos em grandes operações de corrupção acobertadas nas esferas públicas, a morte ronda e ameaça os povos da Amazônia que tem sido sorrateiramente tombados pelo etnocídio e pelo genocídio.
Na Exortação Pós-Sinodal Querida Amazônia (2020, p. 10), o Papa Francisco adverte e afirma que sonha “com uma Amazónia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida. Sonho com uma Amazónia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana. Sonho com uma Amazónia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas”.
Nesta perspectiva, apresenta um itinerário de luta pelos direitos dos mais pobres, dos povos indígenas, dos migrantes, dos camponeses/as, dos povos quilombolas, dos jovens e das mulheres, dos últimos. Assume a defesa dos povos e do território amazônico. O “Sonho Cultural” (p. 23-28), representa o desafio de reconhecer e conviver com a sociodiversidade amazônica, cuidar das raízes, promover o encontro intercultural, defender as culturas e os povos. O “Sonho Ecológico” (p. 31-40), é o sonho feito de águas profundas que recolhe os gritos da Amazônia, na profecia da contemplação, que promove uma educação ecológica capaz de mudar nossa relação com a natureza entendendo que “tudo está interligado nesta casa comum”.
O Papa Francisco na Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum (2015, p. 10), chama a atenção de toda a humanidade para o cuidado do planeta como nossa Casa Comum ameaçada, destruída, maltratada. E afirma que “uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano.
Durante toda a Assembleia Sinodal celebrada em Roma de 6 a 27 de outubro de 2019, o Papa Francisco insistiu em que a Amazônia é o território por excelência da Ecologia Integral, este modo de vida que representa o “pleno desenvolvimento do gênero humano” num itinerário de profundas transformações num projeto de sociedade diferente, muito diferente da proposta capitalista. É um modelo de sociedade “que inclua claramente as dimensões humanas e sociais”. Trata-se de uma totalidade da sociedade, uma “ecologia ambiental, econômica e social” (p. 107). No final do artigo 159, chama a atenção para a relação com o ambiente como um todo e recorda que “o ambiente se situa na lógica da recepção. É um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à geração seguinte. Uma ecologia integral possui esta perspectiva ampla”, finaliza o Papa (p.123).
É neste diálogo que são inseridos os povos da Amazônia, de modo especial, os povos indígenas, parcela da humanidade que comprova o cuidado da casa comum na qualidade de guardiões da floresta. A atenção especial que o Papa Francisco pede para com os povos da Amazônia é justamente pelo reconhecimento de que são depositários de um tesouro destinado a desaparecer. São guardiões do território, capazes de defender a Amazônia com a própria vida. No final do artigo 58 da ‘Querida Amazônia’ afirma que “não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas, se não forem incentivadas a adotar outro estilo de vida, menos voraz, mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno” (PAPA FRANCISCO, 2020, p. 45). Nesta perspectiva, os povos indígenas são um exemplo concreto de um futuro sereno, de uma espiritualidade integradora capaz de cuidar da casa comum com todo o respeito e amor à criação. Por tudo isso, celebrar o dia da Amazônia é assumir a causa de seus povos e a defesa deste território terrivelmente ameaçado.