Presidente do Cimi e Arcebispo de Porto Velho, Dom Roque fez o alerta ao Conselho de Direitos Humanos em sua 52ª sessão, nesta quinta-feira (23)
Por Adi Spezia, da Assessoria de Comunicação do Cimi
Em declaração conjunta, o presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Arcebispo de Porto Velho, Rondônia, Dom Roque Paloschi alertou ser fundamental que o novo governo retome, imediatamente, a política de demarcação de terras indígenas no Brasil, em Debate Geral sobre situações de Direitos Humanos que requerem a atenção do Conselho. O evento faz parte do 52º período ordinário de sessões do Conselho de Direitos Humanos (CDH 52), que está sendo realizado em Genebra, na Suíça.
Assista:
Co-patrocinam a incidência, realizada na tarde desta quinta-feira (23) junto ao Organismo das Nações Unidas (ONU), a Franciscans International (FI), Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia (SINFRAJUPE), Dreikönigsaktion Austria (DKA), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e Justiça Global.
“É fundamental que o novo governo retome, imediatamente, a política de demarcação de terras indígenas no Brasil”
O Brasil está vivendo um novo momento político. Houve mudanças nas atitudes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) e a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), porém “mantemos nossa preocupação, porque os povos indígenas no Brasil continuam sofrendo graves ameaças aos seus direitos, às suas vidas e territórios”, alertou o presidente do Cimi.
Na oportunidade, Dom Roque chamou a atenção para o assassinato de lideranças dos povos Pataxó, Guajajara e Kinikinau. Os casos têm em comum os conflitos envolvendo a demarcação das terras indígenas e as lutas pelo reconhecimento do direito originário à Terra.
“Mantemos nossa preocupação, porque os povos indígenas no Brasil continuam sofrendo graves ameaças aos seus direitos, às suas vidas e territórios”
Em quatro meses, três jovens e uma criança do povo Pataxó foram assassinados em meio aos conflitos pela terra no extremo Sul da Bahia. Em setembro de 2022, Gustavo Pataxó, de 14 anos, foi assassinado durante um ataque de pistoleiros contra a comunidade Vale do Rio Cahy. Em outubro do mesmo ano, o corpo de Carlone Pataxó, 26 anos, foi encontrado sem vida um mês depois de ter desaparecido na Terra Indígena Barra Velha (BA). Em janeiro deste ano, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e o adolescente Nauí Brito de Jesus, de 16 anos, foram perseguidos e executados por pistoleiros que atuam para fazendeiros da região.
Só no primeiro mês deste ano – entre os dias 9 e 31 de janeiro -,o povo Guajajara, no Maranhão, sofreu cinco ataques que resultaram em três mortes (incluindo um não indígena casado com uma indígena Guajajara) e duas pessoas gravemente feridas. Em 23 de fevereiro, mais dois jovens foram vítimas da violência contra o povo: Jone Canaré Guajajara e outro rapaz – um não indígena que também mora na TI -, foram gravemente feridos por disparos de arma de fogo. Em pouco mais de quinze anos (2003 a 2021), foram registrados 50 assassinatos de indígenas do povo Guajajara no Maranhão, conforme dados da plataforma Caci, que mapeia os casos sistematizados pelo relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, do Cimi.
“Em quatro meses, três jovens e uma criança do povo Pataxó foram assassinados em meio aos conflitos pela terra no extremo Sul da Bahia”
No Mato Grosso do Sul, Elísio Rosa Veiga do povo Kinikinau, de 34 anos, foi assassinado na frente da mulher e dos filhos com quatro disparos de arma de fogo, todos no tórax, no início deste mês (7/3). A motivação estaria relacionada a disputa de terras dentro do território, o que escancara a urgência na demarcação dos territórios indígenas. A demora por parte do Estado em demarcar o território Kinikinau condicionou o povo a viver em situação de vulnerabilidade humana, cultural e social, forçados a se dividir em territórios dos povos Kadiweu e Terena e áreas urbanas no estado.
Em situações similares de extrema vulnerabilidade estão os povos Guarani e Kaiowá, também no Mato Grosso do Sul, que “seguem determinados em recuperar seus territórios que lhes foram roubados, enfrentando ameaças de fazendeiros, com o apoio das forças policiais e do governo do estado”, conta Dom Roque.
“Os Guarani e Kaiowá seguem determinados em recuperar seus territórios que lhes foram roubados, enfrentando ameaças de fazendeiros, com o apoio das forças policiais e do governo do estado”
Segundo as lideranças Guarani e Kaiowá, as retomadas buscam “acabar com as muitas décadas de dureza, fome, violência, racismo, veneno, intoxicação, confinamento, ameaças e trapaças dos fazendeiros, para poder garantir o que está na Lei maior de 88 [Constituição Federal de 1988], mas que o Brasil não cumpre. Só assim as famílias do tekoha [lugar onde se é], nossos velhinhos, nossas crianças vão encontrar dignidade e vão poder viver em paz’’.
Não diferente, ao Norte do país “o povo Yanomami sofreu, durante estes últimos cinco anos, as consequências dramáticas e fatais do avanço da mineração ilegal e o abandono da política de saúde por parte do Estado”, denunciou o presidente do Cimi.
“O povo Yanomami sofreu, durante estes últimos cinco anos, as consequências dramáticas e fatais do avanço da mineração ilegal e o abandono da política de saúde por parte do Estado”
A crise humanitária causada pela exploração do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami ganhou uma ampla repercussão no início deste ano, dentro e fora do país. No entanto, a situação não foi exposta apenas agora: organizações indígenas e aliados vêm denunciando e documentando sistematicamente o que estava acontecendo há pelo menos cinco anos. “Já morreu muita gente, 577 crianças morreram”, denuncia Davi Kopenawa, liderança do povo Yanomami.
A situação dos povos elencados por Dom Roque ao Conselho demonstra que a demarcação das terras indígenas está intrinsecamente relacionada à proteção dos territórios e à vida dos povos originários no Brasil. Como destacou o religioso na CDH 52, “é fundamental que o novo governo retome, imediatamente, a política de demarcação de terras”.
“A demarcação das terras indígenas está intrinsecamente relacionada à proteção dos territórios e à vida dos povos originários no Brasil”
Segundo relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021, as terras indígenas com pendências administrativas no Brasil, em alguma fase do processo demarcatório, somam um total de 871. Destas, 598 estão sem nenhum tipo de providências; 143 a identificar, 44 foram identificadas, 73 estão declaradas, 5 com portaria de restrição, e 8 homologadas.
A demarcação das terras indígenas tem sido uma pauta histórica dos povos no Brasil e um compromisso assumido publicamente pelo atual governo. No entanto, “a demarcação efetiva das terras passa pela superação, definitiva, da falsa tese do marco temporal por parte da Suprema Corte brasileira e também do novo governo”, assegura Dom Roque.
“A demarcação efetiva das terras passa pela superação, definitiva, da falsa tese do marco temporal por parte da Suprema Corte brasileira e também do novo governo”
Marco Temporal
O marco temporal é uma tese que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Defendida pelo agronegócio e demais setores interessados na exploração dos territórios indígenas, nessa interpretação, os povos originários só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
É uma tese perversa, que legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos historicamente, pois ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Também inconstitucional, porque “não existe marco temporal na Constituição de 88, existe uma ficção jurídica criada justamente para impedir a reparação de um direito dos indígenas”, afirma o assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto.
“O marco temporal é uma tese perversa, que legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos historicamente”
É extremamente importante que o novo governo do Brasil retome a política de demarcação de terras indígenas. A proteção desses direitos humanos é essencial para a preservação das culturas indígenas e a mitigação dos conflitos socioambientais que ocorrem em terras indígenas.
Por mais que o governo brasileiro tenha implementado algumas medidas de proteção, como a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena, elas não são suficientes para garantir a proteção integral dos direitos humanos desses povos. É necessário que o governo invista em ações concretas que visem à proteção destes grupos étnicos, como a demarcação de território, a proteção das culturas e a melhoria das condições de vida.
A declaração conjunta de Dom Roque Paloschi sobre essa questão é extremamente relevante para que haja maior conscientização sobre a importância da proteção dos direitos humanos dos povos indígenas. Além disso, é fundamental que isso seja amplamente divulgado para que as autoridades brasileiras tomem medidas efetivas para a proteção desses direitos. Só assim será possível garantir o direito desses povos à autodeterminação e à livre expressão de sua cultura.