O Advogado, Melillo Dinis, teme que um acirramento das sanções econômicas dos EUA e da Europa acabem por jogar o País venezuelano ainda mais no colo do autoritarismo
Por Ana Maria Campos
Em meio a uma crise internacional provocada pela total falta de credibilidade nas eleições da Venezuela, o presidente Lula vem sendo pressionado a se manifestar mais incisivamente em defesa da democracia e dos direitos humanos no país vizinho. Para o advogado Melillo Dinis, analista de conjuntura e diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) no Brasil, Lula não pode agir com o “coração” e como líder político. Precisa adotar uma postura de presidente da República diante de um cenário que não tem saída, sem um esforço de diplomacia e pressão internacional.
Para Melillo, que acompanha os desdobramentos do chavismo até as eleições de 2028, não é mais o momento de cobrar as atas que atestariam o vitorioso nas urnas. Nesse momento, qualquer documento apresentado em meio ao conflito no país pode estar contaminado pelo embate entre Maduro e seu opositor, Edmundo Gonzalez, que se autoproclama presidente eleito. O momento, na visão de Melillo, é de condução de uma saída liderada por vizinhos, como o Brasil. Ele teme que um acirramento das sanções econômicas dos Estados Unidos e da Europa acabem por jogar a Venezuela ainda mais no colo do autoritarismo.
Como avalia a posição do presidente Lula em relação às eleições na Venezuela?
As últimas eleições na Venezuela finalizaram, definitivamente, o processo de conversão do autoritarismo eleitoral chavista para a autocracia plena. Desde 2015, quando perdeu a maioria legislativa, Nicolás Maduro vem numa escalada de atos autoritários. Há uma terrível crise política e humanitária dos nossos vizinhos. Destaco os números da Organização Internacional para as Migrações (OIM), de abril de 2024, que apontam que, em todo o mundo, há cerca de 7,7 milhões de venezuelanos refugiados e migrantes, sendo que 6,6 milhões vivem nos países da América Latina e do Caribe. No Brasil, são quase 600 mil venezuelanos que chegaram aqui após os governos Chávez e Maduro. A falta de divulgação das atas das eleições de 28 de julho é o reconhecimento de que apresentá-las é a prova de que se cometeu uma fraude. Muito provavelmente, sem que haja um recrudescimento das tensões internas, de um lado, e doutro, pressão internacional para além das notas públicas e comunicados das chancelarias, muito dificilmente o regime autocrático de Maduro cairá em pouco tempo. Assentado em uma governança muito fraca, seu governo está enredado em alta criminalidade, envolvido com as redes de narcotráfico, de corrupção e de crimes socioambientais. Um exemplo é que o setor de mineração (legal e ilegal) foi transferido para as redes dominadas por militares e paramilitares. Há muito os crimes políticos, como o extermínio dos opositores, o controle da imprensa e as teorias da conspiração, demonstram que esse buraco venezuelano ainda vai se aprofundar antes de uma solução que respeite a democracia, os direitos humanos e as instituições. Nesse contexto, Lula está em uma enorme encruzilhada, tanto interna quanto no campo das relações internacionais. A situação da Venezuela é uma questão de geopolítica continental, mas também amazônica e um reflexo da Guerra Fria 2.0 a que estamos submetidos, na tensão entre os EUA e o bloco China-Rússia. Como chefe de Estado, Lula não pode adotar uma posição apenas decorrente de seus laços históricos com o chavismo. Lula não tem liberdade para adotar os caminhos de seu coração. Ele é o maior dirigente de um setor da política brasileira e um líder regional. Entretanto, não pode escapar de seu papel institucional como presidente da República. E, no contexto diplomático, o Brasil e outros países têm uma enorme responsabilidade, que se aprofundou com o Acordo de Barbados, em 2023, e que foi solenemente ignorado por Maduro em 2024.
O presidente Lula recebeu uma carta com apelo de 30 ex-presidentes para que condene o que chamam de fraude eleitoral na Venezuela conduzida por Maduro. Por que a posição de Lula é tão importante?
A posição de Lula é fundamental e importante pela sua trajetória e pelo peso que o Brasil possui nesta conjuntura. Em 2023, já sob Lula, o Brasil apostou num processo de diálogo entre as forças políticas venezuelanas com vistas à suspensão de todas as sanções internacionais e à realização de eleições livres, competitivas e transparentes. Deu errado pelas razões internas da política venezuelana, e pela ingenuidade de que Maduro apearia do poder apenas com um resultado eleitoral, qualquer que fosse, como se tem visto nesta semana. Assim, a pressão dos líderes políticos espanhóis e latino-americanos é um apelo correto, no que se refere à farsa eleitoral que mantém Maduro no poder. Contudo, por mais que haja um acerto na medida da crítica, a solução para o Brasil não pode ser adotar a mesma posição que os signatários, pois no caso dele há a necessidade de pensar nas relações com o Brasil em um contexto internacional. Desde 2008 que as sanções internacionais dos EUA, do Canadá e na União Europeia delimitam as suas relações com a Venezuela. Não resolveu. O regime aumentou a brutalidade, o envolvimento com o narcotráfico e o crime internacional. A China, em um movimento oposto, passou a financiar a Venezuela com investimentos substanciais. Da mesma forma, a Bielorrússia, a Turquia, Cuba e a Rússia têm estado presentes em uma série de relações financeiras, econômicas, militares e tecnológicas. No caso brasileiro, além das fronteiras, dos migrantes, dos povos e territórios indígenas e dos refugiados, e da questão Essequibo, há interesses comuns, como a compra de energia e o pagamento das dívidas contraídas anteriormente, muitas sob os governos Lula 1 e Lula 2. Seria um erro tático ignorar esses fatos apenas para responder à bolha da polarização brasileira e aos ex-presidentes que clamam para que Lula adote uma posição mais dura. Isolar Maduro neste momento jogaria o país de forma mais eficiente nos braços da China e da Rússia. Mas Lula erra muito em suas declarações de improviso, após o domingo das eleições (28 de julho), sem cumprir o roteiro sugerido pelo Itamaraty, órgão de Estado profissional e muitíssimo mais qualificado para enfrentar os desafios do momento.
Acredita que o Brasil, México e Colômbia têm condições de liderar uma solução negociada na Venezuela?
Brasil, México e Colômbia são potências médias no mundo, mas decisivas no continente. Os três países estão profundamente comprometidos com a situação da Venezuela por conta de suas relações históricas, seu papel na mediação das crises, especialmente dessa última, e ainda mais pelo fato de terem presidentes vinculados, seja ideologicamente, seja simbolicamente, seja ainda por conta da vizinhança e pelos problemas comuns que compartilham. Mas não têm, por mais boa vontade e trabalho, como encontrar sozinhos uma solução negociada. São necessários três movimentos internos decisivos: manter as pontes com o regime de Maduro; diálogo com a oposição venezuelana, tarefa dificílima por sua diversidade e por haver setores muito reacionários que estão apostando na crise mais que na solução; e a construção de saídas com os grupos militares que são o esteio do regime autoritário e que, mais uma vez, comprovam a linha tênue entre a democracia e a questão militar em grande parte do continente. Sem esse mínimo equilíbrio, e sem uma posição internacional que evite ainda mais o isolamento da Venezuela, não vejo uma solução no horizonte.
O governo brasileiro pede que Maduro apresente as atas com os votos por seção eleitoral. Mas o presidente venezuelano se recusa a entregar. Quem teria legitimidade para analisar esses documentos?
Na atual conjuntura, apenas os organismos internacionais, como a OEA ou as Nações Unidas, poderiam oferecer algum grau de credibilidade a uma análise dos documentos, acompanhados de perto pelos grupos políticos da própria Venezuela, a imprensa e as organizações dedicadas ao controle e ao combate à corrupção eleitoral. Em um caso como este, há a necessidade de se estruturar uma metodologia transparente e eficiente, para em pouco tempo, avaliar as atas e oferecer fatos e não discursos. A questão é saber, já com o tempo após as eleições, se ainda há possibilidade de confiar nas atas ou se já foram contaminadas pela ausência de controle, apontada por diversas instituições. Eu acredito que o “momento” atas ficou cada vez mais distante.
É possível fazer um paralelo entre os presos e condenados no Brasil no 8 de janeiro e os manifestantes que estão indo às ruas na Venezuela para protestar contra Maduro por considerarem a eleição fraudada?
Não creio. Impossível comparar duas realidades e situações tão distintas. Na minha avaliação, quem aposta nessa perspectiva traz a polarização interna brasileira para uma análise das condições políticas do país vizinho, imerso em uma quadra totalmente diversa. E aposto que será o tema de nossa conversa, ao ser retrucada pelos leitores, que vai repercutir nos comentários e nas redes. Não tem problema. Discordar é sempre uma necessidade e uma alegria. Mas evidencia um processo em que se perdeu a capacidade analítica em detrimento a uma disposição excepcional para a arenga, as respostas superficiais e ligeiras frente às situações cada vez mais complexas. Mas não fujo do debate. Os cidadãos brasileiros submetidos às normas e aos processos judiciais decorrentes do 8 de janeiro de 2023, muitos já condenados, assim como os cidadãos processados pelo 6 de janeiro de 2022 nos EUA, apenas para traçar um paralelo, intentaram contra o Estado Democrático de Direito e contra as instituições. Daí a sua responsabilização penal. No caso venezuelano, há muito que se rompeu a legalidade e a legitimidade do regime. Ali, diante dos cenários, a resistência cívica e a busca da verdade são direitos e deveres de homens e mulheres comprometidos com a democracia. Pode haver um ou outro que estão nesses processos apenas para defender seus interesses. Tenho tido a oportunidade de dialogar com setores da oposição venezuelana, com dirigentes de organizações de direitos humanos, com jornalistas e com cidadãos comuns. São pessoas que têm reiterado que as partes evitem a violência, atuem com moderação, resolvam as controvérsias por meio do diálogo, priorizem o bem da população e que, ao fim e ao cabo, devem almejar a verdade, aliás como o papa Francisco pediu no domingo, 4 de agosto, no Vaticano, após a oração dominical do Angelus. Mas o regime tem mantido uma permanente pressão, com atos arbitrários e medidas de força que jogam, parte da oposição, no caminho do confronto.
O Ministério Público da Venezuela abriu uma investigação criminal contra a líder da oposição María Corina e contra o Edmundo Gonzalez, que se autointitula presidente eleito, por conclamarem as forças de segurança a pararem de reprimir as manifestações e a respeitarem a decisão das urnas. É o Estado agindo em conluio com Maduro?
Setores do Estado venezuelano estão capturados por interesses privados e políticos distintos dos interesses do bem comum e do respeito aos direitos humanos. Isso não ocorre apenas nesse caso das lideranças da oposição, como Corina e Gonzalez. Desde o rompimento do Acordo de Barbados que os instrumentos do Estado têm sido usados como forma de manutenção do regime chavista, sob Maduro, no poder. E, como insisto, não será possível superar sem um mosaico de esforços internos e internacionais em busca da pacificação e da retomada da democracia.
Acredita num “banho de sangue” como afirma Maduro, caso haja um impedimento de continuidade do atual governo?
Sob os meus critérios, já ocorre derramamento de sangue dos venezuelanos. Dados recentes indicavam cerca de 24 mortos nos protestos. Há milhares de presos, a maioria dos setores populares da população. O próprio governo fala de 2 mil presos. E são números provavelmente subnotificados. Cada vida importa. E cada ato do atual regime será duramente cobrado nas próximas gerações e na redemocratização, que acontecerá.
A Venezuela é alvo de sanções por parte dos Estados Unidos e Europa. Essa situação pode piorar, caso Maduro permaneça no poder?
Haverá a retomada das sanções. Para piorar, muitos desses países sequer reconhecem Maduro como o presidente eleito, já dando como eleito Edmundo Gonzalez. Assim, a tendência é que as sanções representem mais lenha na fogueira ardente em toda a Venezuela, que um resultado concreto da solução da crise. Todavia, sem a pressão internacional, parte do amplo esforço necessário para se alcançar uma pacificação não será alcançada. A lógica, porém, indica que os Estados Unidos e a Europa reconhecem que os países da região, como o Brasil, é que devem assumir o papel central nas conduções das tratativas. E eu considero o melhor caminho.
A crise na Venezuela pode abalar o Brasil?
Já abala o Brasil. Além dos muitos reflexos entre as bolhas que acometem a política brasileira, há uma crise humanitária na Venezuela que exige uma ação pacificadora e mais consequente do governo brasileiro, das n.
- Crédito: Reprodução/Redes Sociais. Melillo Dinis, analista do Portal Inteligência Política. Foto: Reprodução/Redes Sociais
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