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Na vastidão verde da Amazônia, a voz persistente da irmã Dorothy ecoa como um chamado urgente contra a destruição. Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu e ex-presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil), relembra com reverência os vinte anos do martírio da irmã Dorothy. Para ele, ela não foi apenas uma defensora incansável da floresta e dos direitos humanos dos povos ribeirinhos; foi uma voz que ecoou no deserto da Amazônia, um lugar outrora intocado por mãos gananciosas que desertificaram um paraíso de selvas e águas. Em suas palavras, irmã Dorothy continua a ser um símbolo vivo de resistência e esperança na luta pela preservação ecológica e pelos direitos dos habitantes originais da floresta.

Confira a entrevista com Dom Erwin Kräutler.

  1. No dia 12 de fevereiro completam-se 20 anos da morte da Irmã Dorothy Stang, assassinada em 2005 com seis tiros à queima-roupa, aos 73 anos de idade, no interior do município de Anapu, no Estado do Pará. Para o senhor que também acompanhou de perto sua atuação, qual o significado dessa celebração?

Quem derramou o seu sangue pela causa mais nobre, o Reino de Deus, nunca pode ser esquecido. A memória dos mártires faz parte da história e liturgia de nossa Igreja. Esquecer os mártires é ignorar o Sangue derramado do próprio Senhor Jesus, o Mártir por excelência de toda a história.  O martírio é a doação total e irrestrita em favor do Reino de Deus, levada até às últimas consequências. É amar até o fim (cfr. Jo 13,1). Pode haver diversas razões, mas o motivo que leva ao martírio é sempre o mesmo: o amor maior. 

Na minha homilia na Missa de Corpo Presente em 15 de fevereiro de 2005 contei o que soube dos últimos momentos da vida de Dorothy. Antes de ser assassinada, Irmã Dorothy abriu sua sacola de pano, cumprindo “ordem” de seus algozes que queriam indagar se ela estava armada, e mostrou-lhes o que ela chamava de sua arma: a Bíblia Sagrada. Este seu gesto derradeiro é o último recado que Dorothy nos deixou. É sempre a Palavra de Deus que nos inspira e orienta em nosso caminho. “As armas com que combatemos não são humanas, o seu poder vem de Deus e são capazes de destruir fortalezas“ (2Cor 10,4). Nas bem-aventuranças no Evangelho de Mateus (Mt 5,1-12) há aquelas que se referem explicitamente ao empenho em favor da promoção da justiça e da paz: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (v.6), “bem-aventurados os misericordiosos” (v.7), “bem-aventurados os que promovem a paz” (v.9), “bem-aventurados os que são perseguidos por causa de justiça” (v.10). E aos que arriscam a vida em favor da justiça, em favor da promoção humana, da dignidade humana, dos direitos humanos, é afirmado que “deles é o Reino dos Céus”. 

E tem mais. São considerados especialmente bem-aventurados aqueles e aquelas que sofrem injúrias, perseguição, difamação, calúnia (v.12): “Alegrai-vos e regozijai-vos…” Como alguém pode regozijar-se, ficar alegre quando é perseguido, agredido naquilo que lhe é tão caro, o bom nome, a boa reputação? Há um detalhe significativo no texto sagrado. O motivo da alegria não são as agressões, as hostilidades em si, mas o sofrimento “por causa de mim”. Aí reside a razão profunda do martírio, do martírio do sangue derramado, mas também do martírio que é o testemunho de toda uma vida consagrada ao Senhor e seu Reino. Esse martírio pressupõe uma paixão sem limites como nos revela São Paulo: “Mas o que era para mim lucro tive-o como perda, por amor de Cristo. (…) Por ele perdi tudo…” (Fil 3,7-8).

  1. Após 20 anos do assassinato, como o senhor avalia o legado da Ir. Dorothy com relação à questão ecológica, à preservação da floresta amazônica e à defesa dos direitos humanos dos povos ribeirinhos?

Irmã Dorothy me pareceu uma “voz que clama do deserto”. O deserto não é uma imensidão de areia a se perder nos horizontes. Para nós na Amazônia é a desgraça de homens sem dó e piedade desertificaram o outrora inviolado mundo de selvas e águas em que desde tempos imemoriais habitavam os povos indígenas e ribeirinhos que se alimentaram das frutas da floresta e viviam em paz com a natureza. Em nome de uma equivocada busca do progresso a qualquer preço, homens sem uma visão mais ampla e apenas guiados por lucros imediatos entendem “benfeitoria” como sinônimo de “por abaixo” a floresta. Esta atitude perversa se intensificou a partir da construção da Rodovia Transamazônica no início dos anos 70. Nunca esqueço o delírio do Presidente Medici e de sua comitiva aplaudindo desvairados à derrubada de uma castanheira-do-pará. Entendiam a morte desta gigantesca árvore como marco inaugural para o que chamavam de “conquista deste mundo verde”. 

Dorothy chegou em 1982 na Prelazia do Xingu e viu de perto o frenesi das derrubadas em grande escala. E desde então ela falou e lutou e não mediu esforços, querendo convencer a quem ouvia a vozinha mansa dela  – mansa era apenas sua voz –  de que, num futuro bem próximo, frequentes calamidades em cada vez maiores proporções, secas antes nunca vistas na Amazônia e inundações desastrosas nos estados do sul e sudeste, são consequência das agressões humanas à natureza. Mataram a Irmã, calaram a sua voz profética, mas suas previsões lastimavelmente se concretizam em nossos dias. 

3. Qual a importância de Dorothy como mulher e guardiã do território, tanto na sociedade como na Igreja?

Estou há quase 60 anos no Xingu e muitas foram as lutas em favor da dignidade e dos direitos humanos nessas seis décadas passadas. Em todas elas havia uma constante que saltava à vista. Foram as mulheres que tomaram a dianteira. Na época em que Altamira passou por uma fase horrorosa por causa dos crimes que vitimaram crianças e adolescentes, as mulheres não apenas prantearam com as famílias dos filhos vitimados, mas fundaram o “Comitê em Defesa das Crianças e Adolescentes de Altamira”. Existia em Altamira uma Círculo Operário e havia também um Sindicato de Trabalhadores Rurais. Já que o empenho destes órgãos foi pouco eficiente, as mulheres tomaram a iniciativa de criar o “Movimento das Mulheres do Campo e da Cidade”. A grande maioria dos conselheiros do  Conselho Tutelar nos vários municípios é e continua sendo de mulheres. 

Na Prelazia do Xingu surgiram após o Encontro dos Bispos da Amazônia em Santarém 1972 centenas de Comunidades Eclesiais de Base. Na sua maior parte elas foram e são até hoje dirigidas e coordenadas por mulheres. O mesmo se pode dizer dos Conselhos Paroquiais e Pastorais e das equipes litúrgicas. Sem as mulheres a nossa Igreja em muitas regiões nem existiria.

Especialmente no contexto da construção da hidrelétrica Belo Monte, muitas vezes me perguntei qual seria a razão do protagonismo feminino em todos os protestos, manifestações e passeatas? Os homens de Altamira e municípios circunvizinhos sonharam com chuvas de dinheiro e um aumento significativo de chances de empregos bem assalariados. As mulheres, pelo contrário, se opuseram à obra chamando-a de “Belo monstro”, alegando deterioração do rio e meio ambiente, falta de postos de saúde e assistência médica, insuficiência de unidades escolares, encarecimento de gêneros alimentícios, falta de saneamento básico, esgotos a céu aberto, aumento da criminalidade na cidade, poluição sonora, e outros itens necessários para o bem-estar das pessoas e uma infraestrutura condigna para a vida urbana. Creio que a mulher, seja ela mãe biológica ou não, é mais propensa a voltar-se à “prole”, intui perigos e riscos, ameaças e violências, mas seu coração também presente alegrias e vitórias. Não é mero instinto. É como um sexto sentido, o entrelaçamento do espiritual e do emocional com o racional que é capaz de fazer desabrochar intuições que se situam além do raciocínio lógico de causa e efeito ou de premissas e conclusão de um silogismo aristotélico. 

A Dorothy foi assassinada, mas suas Irmãs de Notre Dame que conviviam com ela continuam o caminho da Dorothy, dedicando-se ao povo que ela não quis deixar entregue à própria sorte. No dia 2 de fevereiro de 2005, dez dias antes de ser morta falou ainda a um jornalista: “Sei que eles querem me matar, mas não vou fugir. Meu lugar é aqui, ao lado dessas pessoas constantemente humilhadas por gente que se considera poderosa”. 

Hoje são também leigas e leigos, mulheres e homens, jovens e pessoas idosas que se consagram a nobre causa pela qual Irmã Dorothy não hesitou em oferecer sua vida. O entusiasmo se manifesta no refrão, repetido ano após ano, sempre de novo, pelo povo reunido nas Missas de aniversário de sua morte: “Dorothy vive, vive, vive!”

Altamira, 5 de fevereiro

Memória de Santa Águeda

Erwin Kräutler

Bispo em. do Xingu

Ex-presidente da REPAM-Brasil

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