Junto a parlamentares e MPF, lideranças indígenas de Roraima posicionaram-se contra o PDL 28/2019, que tramita na Câmara dos Deputados e é considerado inconstitucional
“Em nome das lideranças que morreram e lutaram por nós, para que hoje eu estivesse aqui para dar continuidade na defesa dos direitos dos povos indígenas, pelas lideranças que nos deixaram por causa dessa doença que tá aí, pedimos o arquivamento desse projeto. Se for aprovado, as consequências podem ser piores do que a pandemia, porque abrir a Terra Indígena São Marcos é permitir o garimpo, a entrada de invasores e doenças”. Esse foi o depoimento emocionado de Aldenir Cadete Wapichana, coordenador da região das Serras, na Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, durante a audiência pública realizada pela Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia da Câmara dos Deputados, nesta terça-feira (7), em ambiente virtual e conduzida pelo deputado Jose Ricardo (PT-AM).
A audiência pública foi solicitada por requerimento do deputado José Ricardo em sessão da comissão no dia 30 de junho, a pedido da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas (FPMDDPI). Os parlamentares entendem e defendem que os indígenas devem ser ouvidos em qualquer situação que implique mudanças na sua vida, conforme preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
A audiência contou com a presença do Procurador da República em Roraima, Alisson Marugal (MPF/RR); do coordenador da região das Serras, Aldenir Cadete Wapichana; do coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Edinho Batista Macuxi; do representante da Associação dos Povos Indígenas da TI São Marcos, Marcello Pereira, e do coordenador da região do Surumu, José Arizona Menandro.
O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 28/2019, de autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), retira a sede do município de Pacaraima, em Roraima, da Terra Indígena (TI) São Marcos, com o argumento de que a União teria “afrontado” os poderes do município ao regulamentar as terras em seus limites. No entanto, o processo administrativo de demarcação e homologação da terra foi concluído em 1991 pelo Decreto de Homologação 312/1991 e com o Registro no Sistema de Patrimônio da União (SPU) efetivado. O município de Pacaraima só foi criado em 1995. O artigo 1º do Decreto situa, na época, a TI São Marcos “no município de Boa Vista”.
O projeto foi aprovado no Senado em 2019 e, agora, pode ser votado no plenário da Câmara dos Deputados. Nos dias 7 e 8 de julho, chegou a ser incluído na lista de itens para votação, mas não foi apreciado devido ao encerramento das sessões. O PDL 28/2019 pode retornar à pauta na próxima semana.
“O PDL 28/2019 não deve ser votado, porque se aprovado vai trazer grandes prejuízos para São Marcos e toda a região de Raposa Serra do Sol”
Para a parlamentar Joenia Wapichana (Rede-RR), “há preocupação crescente em relação aos direitos indígenas, a pressão está grande e os ataques constantes. A TI São Marcos é de 1991, mas o processo de reconhecimento é desde os anos 1970 e teve todos os procedimentos administrativos e legais realizados. E Pacaraima foi criado depois da homologação, só em 1995”, argumenta a deputada, afirmando que “o que não pode acontecer é não ouvir os indígenas. A consulta prévia, livre e informada precisa acontecer e seguir os procedimentos corretos da legislação brasileira”.
Joenia afirmou, ainda, que “a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas é contrária ao PDL e que pediu a audiência pública para sensibilizar os deputados pelo absurdo que está para acontecer. Existe a urgência, sim, para resolver a situação, mas não é criando uma jurisprudência negativa que vamos resolvê-la”.
Para Edinho Batista Macuxi, do CIR, “o PDL ameaça os direitos que estão estabelecidos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, que reconhece a proteção e o respeito dos bens e dos territórios indígenas”. Para o coordenador do CIR, além da inconstitucionalidade, o PDL fere “os artigos 6 e 7 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê que as comunidades indígenas devem ser consultas de forma livre, previa e informada, para que saibam o que, de fato, está acontecendo em seu território”.
Edinho também afirma que a homologação da TI São Marcos teve os procedimentos legais realizados e que o PDL, se aprovado, “vai reverter um fato consumado que seguiu todos os processos de demarcação de forma legal e isso possibilita que outras situações de regulamentação correta sejam fragilizadas”, alertando para o risco de precedentes jurídicos que possibilitem a abertura de outras terras indígenas brasileiras.
“Assim, o CIR”, afirma Edinho, “se posiciona contrário ao PDL e pede aos deputados que seja retirado de pauta, não deve ser votado, porque se aprovado vai trazer grandes prejuízos para São Marcos e toda a região de Raposa Serra do Sol”.
Marcello Pereira, da Associação dos Povos Indígenas da TI São Marcos (Macuxi, Wapichana e Taurepang), também se posicionou contrário ao PDL, porque são territórios já regulamentados. “A homologação é anterior à criação do município, a presença da sede no território é uma violação aos indígenas, até porque na parte que está plantada a sede, os indígenas não tem acesso”, afirmou.
E continua apontando as violações que podem advir da retirada de parte da área da TI: “Vão acontecer impactos sociais, ambientais e econômicos muito sérios. O garimpo ilegal já está afetando o território e em vários pontos ao redor da sede do município. O lixão a céu aberto está impactando e o chorume contamina as águas e o ambiente das comunidades e da cidade também. Abrindo mais, fragiliza mais e os impactos serão maiores”, conclui, afirmando que a realização da consulta livre, previa e informada é uma “necessidade de vida” para a região.
O coordenador indígena da região do Surumu, José Arizona Menandro, reforçou os argumentos dos parentes e foi enfático dizendo que “está dado o recado, não será a primeira nem a última vez que defendemos nossos direitos. Somos atacados, mas lutaremos até o último índio. Onde tiver povo sofrendo a gente tá defendendo a nossa causa”.
Caracterizando o projeto como o “PDL da Morte”, o coordenador indígena da região das Serras, Aldenir Cadete Wapichana, leu a carta ofício endereçada ao deputado federal Artur Lira, Presidente da Câmara Federal, e à deputada federal e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana. No Ofício, as lideranças que representam os povos Macuxi, Wapichana, Patamona, Wai Wai, Sapará, Ingarikó e Taurepang das regiões São Marcos, Surumu, Serras, Raposa, Baixo Cotingo, Amajari, Serra da Lua, Murupu, Tabaio, Alto Cauamé e Wai Wai, compostas por 304 comunidades indígenas que vivem nas TIs em Roraima, pedem que o PDL 28/19 “não seja votado sem o devido diálogo e a consulta das comunidades indígenas que vivem nas regiões de São Marcos, Surumu e Serras, como previsto na Convenção 169 da OIT, que garante a consulta em todo ato legislativo que atingir os nossos direitos. Requer-se ainda que a consulta não só envolva como seja feita dentro das comunidades afetadas, com a exclusão da área urbana da sede do município de Pacaraima”.
Todos os argumentos trazidos pelas lideranças à audiência pública foram validados pelo deputado José Ricardo: “para ser colocado em pauta, o PDL deveria ter seguido o caminho correto, os trâmites legais e constitucionais serem realizados corretamente”, disse, indicando que a relatoria da audiência solicitará que seja realizada a consulta livre, previa e informada a que os povos indígenas têm direito.
Também foram corroborados pelo Procurador da República em Roraima, Alisson Marugal (MPF/RR), que alertou para o caráter da consulta prévia, livre e informada que estava sendo reivindicada: “a consulta não é plebiscito, não é reunião com as comunidades onde se fala e se pega assinaturas de presença. Mas é uma consulta correta que requer a realização e efetivação de todos os procedimentos cabíveis, reconhecidos por todas as comunidades, respeitando a representação e as pessoas para que valide o processo referendados pelos indígenas”, e afirma que, “caso haja aprovação sem as devidas regularidades, o MPF continuará com os procedimentos jurídicos cabíveis”. Conclui solicitando ao relator que “pondere os argumentos que foram levantados” e dizendo que “o MPF se posiciona pela consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas de Roraima”.
Enquanto a Audiência Pública acontecia e as lideranças se posicionavam veementemente contrárias ao PDL, as comunidades de Pedreira, Canta Galo e Barro da TI São Marcos bloqueram o trecho da BR-433, estrada que dá acesso ao município de Uiramutã. O ato foi pacífico, mas dá força às palavras dos indígenas: “Onde tiver povo sofrendo a gente tá defendendo a nossa causa”.
Fonte: Lígia Kloster Apel/ Ascom Cimi Norte 1