Notícia

Por Cícero Pedrosa Neto, da Amazônia Real

Belém (PA) – “Já escapei muito de morrer. A gente cansa mas continua resistindo.” Maria Leusa Kaba Munduruku, uma das principais lideranças brasileiras contra o garimpo ilegal no Alto Rio Tapajós, no Pará, está atenta e preocupada com o povo Yanomami. Poderiam ser os Munduruku, os Kayapó ou outros dos povos indígenas que vivem sob pressão dos invasores em seus territórios. Para Maial Paiakan, forte liderança feminina do povo Kayapó, a atividade do garimpo é “o indicativo para um genocídio, no sentido de exterminar um povo, acabar com o povo”.

A retirada de garimpeiros das terras indígenas é uma vontade política atual do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas um clamor desde muito antes para os povos indígenas. Nesta terça-feira (7), Lula voltou a se comprometer com a extinção do garimpo em terras indígenas. “A gente não vai mais permitir garimpo em terra indígena, em hipótese alguma. E não vai mais permitir pesquisa em área que não pode ser garimpada”, disse o presidente.

Nos últimos quatro anos, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), os indígenas foram abandonados. “A gente não tinha pra quem falar”, conta Maria Leusa. Mais organizados, os Munduruku se mobilizaram como puderam para enfrentar o assédio dos garimpeiros. “A gente só não está igual os Yanomami porque a gente fez muita denúncia, fizemos fiscalização autônoma, fizemos nossa autodemarcação. Mas teve muita violência também para tentar impedir as invasões, as novas invasões.”

De acordo com o MapBiomas, em relatório publicado há cinco meses, o Pará concentra o maior número de invasões em terras indígenas. Das cinco terras listadas pelo estudo, que utilizou dados de 2021, a TI Kayapó é a mais invadida, com 11.542 hectares de área de garimpo; em segundo lugar, a TI Munduruku, com 4.743 hectares de destruição. Somadas, as duas TIs concentram 16.285 hectares de áreas com lavra ilegal de ouro, o equivalente a 17 mil campos de futebol aproximadamente. Os Yanomami vêm em terceiro.

“A omissão do estado com os Munduruku, os Yanomami e os Kayapó é algo que revolta a gente porque já faz tempo que a gente vem denunciando essas invasões de garimpeiros. Isso piorou muito no governo do Bolsonaro”, conta Maria Leusa.  “Todos os meios que eram para ajudar a gente a defender os nossos territórios estavam favorecendo o garimpo ilegal”, acrescenta Maial Paiakan.

As ações do governo federal na TI Yanomami têm obtido repercussão internacional, mas em outras áreas as ações criminosas persistem. As invasões se mantêm, por exemplo, na TI Munduruku, localizada na cidade de Jacareacanga, no Alto Tapajós. “Os garimpeiros continuam aqui agora mesmo. Isso que está acontecendo com os parentes Yanomami não intimidou eles. A gente quer que eles saiam pra gente poder viver em paz no nosso território”, revela João de Deus Kaba Munduruku, da aldeia Anipiri Terra Preta.

De acordo com levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA), com base em dados do Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe/Prodes), o desmatamento em terras indígenas aumentou em 157% durante o governo do ex-presidente Bolsonaro.

Boa parte deste desmatamento está associada à expansão das áreas do garimpo nos territórios, mas também pela ação de madereiros – atividades que andam lado a lado quando o assunto é invasão de terras indígenas. Entre 2010 e 2021, aponta o MapBiomas, o garimpo em terras indígenas cresceu cerca de 625%. O aumento mais expressivo ao longo dos últimos dez anos foi registrado justamente entre 2019 e 2021 e ele não está limitado às cinco terras indígenas citadas pelo relatório.

Maial Paiakan conta que o papel do Estado na defesa dos direitos indígenas passou a ser desempenhado por organizações da sociedade civil. “A nossa briga foi muito maior durante esse período do governo Bolsonaro pelo fato de que a gente estava lutando com as nossas próprias organizações, com as nossas próprias associações para defender os territórios”, lembra.

No caso dos Munduruku, o garimpo e as invasões não se limitam à TI Munduruku. Ele está instalado em todo o complexo território da nação Munduruku formado por cerca de 170 aldeias, localizadas ao largo da bacia do rio Tapajós, como é o caso da TI Sawré Muybu, que até hoje não foi homologada é uma das mais urgentes. Para o coordenador de projetos do Fórum da Amazônia Oriental (Faor), com sede, Marcos Mota, um dos maiores problemas deixados pelo garimpo nas aldeias é a fome. Mota trabalha há cerca de 12 anos com os Munduruku.

“O garimpo não destrói só a natureza, ele não se limita ao meio ambiente. Esses crimes colocam os Munduruku em insegurança alimentar, porque ou eles estão sob o risco de serem atacados por garimpeiros ou precisam recorrer aos peixes contaminados com mercúrio”, explica Mota.

Sem capacidade de fazer frente aos invasores, os povos originários vivem sob risco de não sobreviver nos médio e longo prazos. A própria existência dos Kayapó, que vivem às margens do rio Xingu e seus afluentes, está ameaçada.

“O impacto do garimpo é geral porque ele envolve a nossa cultura, envolve a nossa saúde, envolve os nossos modos de vida”, descreve Maial Paiakan. “Quando eles tocam a escavadeira no chão, quando eles derrubam uma árvore, quando eles sujam o rio, eles estão matando a gente também. E eles sabem disso”, acusa Maria Leusa, que também luta para conter o avanço do projeto de mais de 43 hidrelétricas previstas para a região do Tapajós.

Desobediência e omissões

No último dia 30, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso determinou a investigação de possível participação de altos funcionários do governo federal no vazamento de informações privilegiadas sobre operações dos órgãos de fiscalização e segurança à garimpeiros.

Na petição (Pet 9.585), o ministro cita o vazamento, em Diário Oficial da União, da Operação Jacareacanga, o que teria alertado os garimpeiros e resultado em ataques à Polícia Federal (PF) e ao Ibama na sede do município onde está a TI Munduruku. A publicação teria sido autorizada por Anderson Torres, ex-ministro de Justiça do governo Bolsonaro. Ele está preso no curso das investigações dos atentados às sedes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, em Brasília, no dia 8 de janeiro deste ano. Torres ocupava o cargo de secretário de Segurança do Distrito Federal.

O ministro, na petição, menciona “indícios de alteração do planejamento no momento de realização Operação Jacareacanga, pela Força Aérea Brasileira – FAB, resultando em alerta aos garimpeiros, quebra de sigilo e inefetividade da iniciativa”. Cita também a não participação das Forças Armadas na operação organizada em conjunto com a PF, que alegava falta de recursos e a menos de três dias de sua realização. No entender de Barroso, isso acabou “comprometendo o planejamento e a efetividade da intervenção, bem como a segurança dos servidores e equipamentos públicos utilizados pela Polícia Federal”.

Em maio de 2021, a Amazônia Real flagrou como se deu esse vazamento de operações da PF. Garimpeiros de Jacareacanga teriam tido acesso ao cronograma sigiloso da operação denominada de “Mundurukânia”, em referência ao santuário dos Munduruku no Alto e Médio Tapajós.

A operação, que tinha como objetivo  “combater todas as atividades ilícitas num raio de 200 quilômetros contados como epicentro até a cidade de Jacareacanga”, foi encerrada às pressas após violento protesto de garimpeiros que esperavam, já  no aeroporto da cidade, as equipes policiais. Bombas e gás lacrimogêneo foram usados para dispersar os criminosos.

Como denunciou a Amazônia Real à época, o próprio prefeito da cidade, Valmar do Posto (PSDB), teria participado dos protestos em favor dos garimpeiros, tendo “negociado” o fim da operação com a PF e com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) – que também compunha a operação, junto ao Ibama, à Funai e à Força Nacional.

O ministro Barroso, no âmbito da ADPF 709 – criada durante a pandemia de Covid-19 para apurar as ações do governo federal na garantia da segurança alimentar e proteção dos indígenas em todo o território nacional –, também determinou a “desintrusão de todos os garimpos ilegais presentes nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá”, conforme trecho da decisão, exigindo apresentação das estratégias que serão adotadas pelos órgãos para o cumprimento da determinação.

“A estratégia anteriormente adotada, de ‘sufocamento’ da logística de tais garimpos, não produziu efeitos, se é que foi implementada”, frisa o ministro no documento.

Atentados

Maria Leusa sabe bem o que isso significa e conhece de perto o poder acumulado pelos garimpeiros. Ameaçada constantemente de morte, a líder e sua mãe, a cacica Isaura Muo Munduruku, tiveram suas casas incendiadas em maio de 2021, durante a pandemia de Covid-19, por garimpeiros e indígenas favoráveis ao garimpo, na aldeia Fazenda São Francisco – área de retomada recente dos Munduruku.

O ataque, reportado pela Amazônia Real à época, aconteceu como reação a uma operação da Força Nacional, PF e do Ibama, a Operação Mundurukânia, que visava a retirada de garimpeiros das TI Munduruku e Sai Cinza. A sede da Associação de Mulheres Indígenas Munduruku (Wakomborum), da qual Leusa é presidente, foi devassada por garimpeiros em março de 2021. O local foi arrombado e documentos foram destruídos.

Os Munduruku enfrentam ameaças também quando decidem denunciar os crimes cometidos em seus territórios. Em junho do mesmo ano, um ônibus que levaria uma comitiva das aldeias do Médio Tapajós até Brasília para se juntarem aos protestos contra o “marco temporal”, foi atacado por garimpeiros, que furaram os pneus e ameaçaram os motoristas da empresa de transporte. Os indígenas só conseguiram seguir viagem escoltados pela PRF e pela Polícia Militar do Pará.

Estado garimpeiro

Dos cinco territórios listados pelo relatório do MapBiomas, três deles estão no Pará: TI Kayapó, TI Munduruku e a TI Apyterewa, do povo Parakanã – que ocupa o quinto lugar da lista. É também no Pará que estão quatro dos cinco municípios com maior área de garimpo: Itaituba (57.215 hectares), Jacareacanga (15.265 hectares), São Félix do Xingu (8.126 hectares) e Ourilândia do Norte (7.642 hectares). Mundurukânia – como também é conhecido o território dos Munduruku – está justamente sob a geografia dos municípios de Itaituba, Jacareacanga.

“A série histórica mostra um crescimento ininterrupto do garimpo e um ritmo mais acentuado que a mineração industrial na última década, além de uma inequívoca tendência de concentração na Amazônia, onde se localizam 91,6% da área garimpada no Brasil em 2021”, explica o pesquisador Cesar Diniz, um dos coordenadores do mapeamento.

Ainda segundo o MapBiomas, Pará e Mato Grosso encabeçam as áreas mineradas no Brasil, 71,6% somando a mineração industrial e o garimpo. “Mas quando o garimpo é considerado isoladamente, o percentual sobe para 91,9%. São 113.777 hectares de garimpo no Pará e 59.624 hectares no Mato Grosso”, afirmam os pesquisadores em trecho do relatório.

O garimpo também está sobre as Unidades de Conservação (UC) inscritas no território paraense. Das cinco apontadas pelo MapBiomas, quatro estão no Pará: a APA do Tapajós com alarmantes 43.266 hectares de área ocupada pelo garimpo, a Flona do Amanã (5.400 hectares), a Flona do Crepori (1.686 hectares) e o Parna do Rio Novo (1.637 hectares). A quinta colocada está em Rondônia, a Flona do Jamari (1.191 hectares).

No Pará, em outubro de 2021, o governador Helder Barbalho (MDB) – reeleito com mais de 70% dos votos na última eleição – instituiu o “Dia do Garimpeiro” (Lei 9.334/2021), a ser comemorado no dia 11 de dezembro. Contraditoriamente, é também Barbalho que tem assumido a dianteira das discussões climáticas no país. Com forte influência no governo Lula (PT), conseguiu emplacar a capital paraense, Belém, como a cidade que irá sediar a COP 30, em 2025.

Profanação e luto

Se para o celebre antropólogo e sociólogo Darcy Ribeiro, analisando o contexto  da escravidão no Brasil, os engenhos de cana-de-açúcar eram como “máquinas de moer gente”, no caso dos indígenas, a “máquina de moer” é o conjunto formado pelas dragas, pás carregadeiras e pelos aviões que não cessam em seu vai-e-vem saqueador. Maial Paiakan descreve os sentimentos provocados pela destruição das TIs como um estado permanente de “luto”.

Nas palavras da líder indígena Maria Leusa, a depredação e a pilhagem do que os brancos chamam de “recursos naturais”, atinge a esfera do sagrado e ganha o sentido de profanação. “O garimpo mata o rio, mata a terra e mata a gente. Tudo o que se faz com o meio ambiente é com a gente que eles estão fazendo, porque o território é a nossa vida. Foi Karo Sacaibu que deu pra nós, pra nós cuidar”, explica.

Karo Sacaibu é o Deus criador e onisciente do povo Munduruku. Na cosmologia Munduruku, conta Maria Leusa, o rio Tapajós foi feito da água do coco do Tucumã – pequeno fruto fibroso, gorduroso, cheiroso e alaranjado de uma palmeira amazônica. No centro, por debaixo da massa do fruto, está o coco, esférico, de cor preta e com cerca de um terço do tamanho total do tucumã.

“Por isso que a água tem essa cor meio esverdeada, meio azulada. É um local sagrado demais pro nosso povo. Se o [rio] Tapajós está doente de mercúrio, a gente morre também”, descreve Leusa pontuando o significado do rio em cujas margens se levantou a nação Munduruku (Mundurukânia).

Em carta pública enviada ao presidente Lula, e publicada com exclusividade pela Amazônia Real, a jovem liderança Beka Munduruku, escreveu:

“Enquanto houver garimpo ilegal contaminando os rios da Amazônia, a fome vai se alastrar entre os povos indígenas, presidente, porque nós dependemos dos rios, da terra, da floresta viva. É preciso interromper esse ciclo de destruição e morte que nos cerca. A nossa sobrevivência não depende de produtos industrializados comprados na cidade. O nosso alimento é tirado diretamente da natureza. Se ela for destruída, nós também seremos destruídos. Nossa sobrevivência fica ameaçada.”

Contaminações

O garimpo na bacia do rio Tapajós e do rio Xingu remonta há muitas décadas. A presença intrusiva de garimpeiros e madeiros desorganizou por completo a vida do povo Kayapó e Munduruku. O efeito disso, para além da destruição do território e dos impactos na segurança alimentar das aldeias e nos modos de vida das famílias, refletem diretamente na saúde desses povos.

A versão mais perversa disso, talvez seja a da ação de uma substância tóxica, classificada na tabela periódica como metal pesado, o mercúrio, conhecido por ter arruinado uma cidade inteira no Japão, na década de 1950. Quem nunca ouviu falar em Minamata e nos efeitos destrutivos da contaminação por mercúrio?

“A Amazônia será a nova Minamata?”, foi um dos principais questionamentos feitos pelo médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Paulo Basta, quando da apresentação do estudo sobre os impactos do mercúrio em áreas protegidas da Amazônia.

O mercúrio é um componente fundamental para o garimpo. É ele que reúne as partículas de ouro que estão espalhadas no meio ambiente. Durante o processo de garimpagem, feito pelas dragas (embarcações que levam o maquinário de separação do ouro por aspiração do fundo dos rios),  o metal é lançado em altas quantidades nos rios. Estima-se que para cada quilo de ouro, os garimpeiros utilizam cerca de três quilos de mercúrio.

Popularmente conhecido como “azougue”, ele é vendido livremente em cidades cujas economias giram em torno da atividade ilegal. Qualquer um que vá às cidades de Itaituba e Jacareacanga poderá comprar quanto quiser do produto.

Estudos realizados pelo Instituto Evandro Chagas (IEC), no final da década de 1990, já mostravam a presença de altas concentrações de mercúrio no cabelo da população Munduruku. Em 2018, após a Associação Indígena Pariri enviar uma carta  à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) pedindo auxílio dos cientistas para terem a dimensão dos danos à saúde causados pelos garimpos, um grupo de pesquisa foi constituído para levantar os dados de contaminação nas aldeias da bacia do Tapajós.

Em entrevista exclusiva à Amazônia Real, Paulo Basta contou que o grupo multidisciplinar  constituído por 16 profissionais de saúde, coletou 200 amostras de cabelo em 35 domicílios de três aldeias, e examinaram amostras de 88 peixes.

“Nosso trabalho produziu evidências científicas dos altos níveis de mercúrio detectadas em amostras humanas e a correspondências desses altos níveis com os sintomas neurológicos, sinais que afetam o neurodesenvolvimento infantil, fatores que repercutem na organização tradicional das comunidades e na principal fonte de alimento, que é o pescado”, explica o pesquisador, indicando que o mercúrio atinge sobretudo o sistema nervoso central provocando danos permanentes no sistema neurológico.

Maial Paiakan afirma que uma das angústias dos Kayapó é não saber com precisão o nível de exposição das aldeias ao mercúrio, algo que ela espera que seja resolvido nos próximos anos de governo Lula. Mas, a exemplo dos resultados obtidos com as amostras do povo Munduruku, restam poucas dúvidas quanto à contaminação.

“Nós, Munduruku, vivemos na beira do mesmo rio que está contaminado e comemos os peixes desse rio. Se o rio está doente e a gente não pode comer, a gente fica sem ter de onde tirar nossos alimentos. Mas se não comer, passa fome”, relata João de Deus Munduruku.

Maria Leusa Kaba Munduruku alerta que a atividade do garimpo ilegal não cessou; no Pará, continuam as invasões aos territórios dos povos Munduruku e Kayapó, ainda sem uma operação federal como a atual na Terra Indígena YanomamiNa imagem, área de garimpo ilegal na TI Munduruku, em 2021 (Foto: Chico Batata/Greenpeace)

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