No último dia 31 de agosto, nos despedimos do sociólogo Immanuel Maurice Wallerstein, aos 89 anos. Conhecido pela sua contribuição fundadora da teoria do sistema-mundo, Wallerstein nos dizia que estamos vivendo o “tempo em que podemos mudar o mundo”.   Alertava para a necessidade de mudanças profundas na essência do sistema capitalista antes que este nos levasse à plena destruição.

Em seu livro “o fim do mundo como o concebemos”, publicado no Brasil pela Editora Revan, Wallerstein examinava o declínio do capitalismo com grande preocupação e dizia que nos falta saber o que irá substituí-lo, alertando que a sua transição não será apocalíptica e dependerá das escolhas que o mundo fizer agora, enquanto ainda há tempo de reverter algumas situações e evitar tragédias irreversíveis como as mudanças climáticas e os ecocídios como o de Brumadinho no início deste ano.

Grande defensor do papel das ciências sociais, Wallerstein as apresenta como uma síntese do pensamento crítico e o caminho para descolonizar o pensamento. Em uma entrevista ao jornalismo Outras Palavras, Wallerstein explica as possibilidades de substituição ao capitalismo com grandes preocupações e afirma: “Eu gostaria de um sistema relativamente mais democrático, mais relativamente igualitário e moral. Essa é uma visão, nós nunca tivemos isso na história do mundo, mas é possível. A outra visão é de um sistema desigual, polarizado e explorador. O capitalismo já é assim, mas pode advir um sistema muito pior que ele. É como vejo a luta política que vivemos. Tecnicamente, significa que é uma bifurcação de um sistema”.

Sua insistência na possibilidade de um “sistema relativamente mais democrático, mais relativamente igualitário e moral” passa, necessariamente, pela descolonização do pensamento. Para Wallerstein esta é uma tarefa difícil tanto no campo teórico-acadêmico, quando no campo das práticas sociais e pastorais. Descolonizar implica abrir mão de valores etnocêntricos que não respeitam as demais culturas e seus valores. Implica reconhecer os saberes, as ciências e as espiritualidades de outros povos com suas línguas, costumes e culturas. Em poucas palavras respeitar o outro na sua diferença e não o nivelar numa cultura hegemônica como a proposta pelo capitalismo que não se encontra apenas no aspecto econômico, mas, incide também com grande força na produção do pensamento, da religião, da moral, da ética e da política.

Descolonizar as práticas pastorais e o pensamento religioso é um dos grandes desafios a que se propõe o Sínodo da Amazônia. O parágrafo 56 do Instrumentum Laboris   afirma que “o desafio que se apresenta é grande: como recuperar o território amazônico, resgatá-lo da degradação neocolonialista e devolver-lhe seu bem-estar saudável e autêntico? Desde há milhares de anos devemos às comunidades aborígenes o cuidado e o cultivo da Amazônia. Em sua sabedoria ancestral cultivaram a convicção de que a criação inteira está interligada, o que merece nosso respeito e responsabilidade. A cultura da Amazônia, que integra os seres humanos com a natureza, se constitui como referente para construir um novo paradigma da ecologia integral. A Igreja deveria assumir em sua missão o cuidado da Casa Comum”.

Ora, no pensamento neocolonial, não há nenhum entendimento de uma Casa Comum. As casas são privadas. Tudo é propriedade privada e cada um cuida do que é seu, e ninguém se preocupa com a casa de ninguém. Pensar a Casa Comum implica em mudar drasticamente o pensamento neocolonialista e passar a pensar coletivamente nos problemas que afetam toda sociedade como a questão ambiental, a fome, a miséria e o empobrecimento de sociedades inteiras.   Pensar juntos e buscar saídas coletivas é o grande desafio. Mas, para isso, é preciso descolonizar o pensamento etnocêntrico.

No parágrafo 76 o Instumentum Laboris aprofunda o tema da família e seus desafios na Amazônia e afirma que “na Amazônia a família foi vítima do colonialismo no passado e de um neocolonialismo no presente. A imposição de um modelo cultural ocidental inculcava um certo desprezo pelo povo e pelos costumes do território amazônico, e chegava-se a qualificá-los como “selvagens”, ou “primitivos”. Atualmente, a imposição de um modelo econômico ocidental extrativista volta a atingir as famílias, invadindo e destruindo suas terras, suas culturas e suas vidas, forçando-as a migrar para as cidades e suas periferias”.

Nessa perspectiva, a ruptura com o pensamento neocolonial é fundamental para se pensar a Amazônia. Em muitas críticas que se tecem contra o Sínodo, seus arguidores continuam nos chamando de “selvagens”, ou “primitivos” como o fizeram nossos colonizadores há mais de quinhentos anos atrás. A permanência destes vocábulos comprova que o pensamento neocolonial impede o avanço das ideias e mantem seus seguidores atrasados no tempo e na história.

No parágrafo 103 o Instumentum Laboris apresenta o colonialismo (domínio) relacionado com a “mentalidade economicista-mercantilista, consumismo, utilitarismo, individualismo, tecnocracia, cultura do descarte.  Uma mentalidade que se expressou historicamente em um sistema de domínio territorial, político, econômico e cultural que persiste de várias formas até os dias de hoje, perpetuando o colonialismo. Uma economia baseada exclusivamente no lucro como única finalidade, que exclui e atropela os mais fracos e a natureza, se constitui como ídolo que semeia destruição e morte (cf. EG, 53-56). Uma mentalidade utilitarista concebe a natureza como mero recurso e os seres humanos como simples produtores-consumidores, violando o valor intrínseco e a relacionalidade das criaturas. “O individualismo enfraquece os vínculos comunitários” (DAp., 44), ofuscando a responsabilidade em relação ao próximo, à comunidade e à natureza. O desenvolvimento tecnológico trouxe grandes benefícios para a humanidade mas, ao mesmo tempo, sua absolutização levou-o a ser um instrumento de posse, domínio e manipulação (cf. LS, 106) da natureza e do ser humano. Tudo isto gerou uma cultura global predominante, a qual o Papa Francisco chamou “paradigma tecnocrático” (LS, 106). O resultado é uma perda do horizonte transcendente e humanitário, onde se transmite a lógica do “usa e joga fora” (LS, 123), gerando uma cultura do descarte (LS, 22) que agride a criação”.

Em muitas outras ocasiões, o Instumentum Laboris apresenta o desafio da descolonização da Igreja e do pensamento hegemônico para se avançar na proposta do cuidado com a Casa Comum na perspectiva da Ecologia Integral como condição para se repensar os caminhos da “Igreja com rosto amazônico”. A grande maioria dos Bispos da Pan-Amazônia tem levado isso muito a sério e vêm aprofundamento a temática da descolonização em suas bases pastorais e elaborando propostas para se materializar a descolonização nas suas práticas e no pensamento teológico e eclesial.

Descolonizar o pensamento e as práticas é deixar-se amazonizar com outros valores e conhecer e experimentar outras possibilidades de convivência com a Amazônia sem necessariamente destruir suas riquezas naturais, fonte de vida e esperança para seus povos e para toda humanidade.

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