A Rede Eclesial Pan-Amazônica REPAM-Brasil, em conjunto com mais 130 entidades, assinou uma nota pública em defesa da população migrante e refugiada no Brasil. A nota manifesta preocupação quanto à operação realizada no município de Pacaraima, em 17 de março de 2021, pela Polícia Federal e pela Polícia Civil do Estado de Roraima. A referida operação desalojou mais de 70 pessoas, dentre as quais 21 mulheres, inclusive gestantes, e 40 crianças migrantes, da Casa São José, casa de acolhida gerida pelas Irmãs de São José e Pastoral do Migrante da Diocese de Roraima, bem como da Igreja Assembleia de Deus Águas Vivas.
A nota afirma ainda que “é alarmante que as forças policiais tenham agido de forma desproporcional” e pede que as autoridades envolvidas “não criminalizem ou ameacem a legítima atuação de membros de organizações da sociedade civil nos serviços de acolhida humanitária e assistência a migrantes”.
Confira, abaixo, a íntegra da nota ou acesse o PDF.
NOTA PÚBLICA POR JUSTIÇA E DIGNIDADE, CONTRA A VIOLÊNCIA
As organizações da sociedade civil abaixo subscritas vêm por meio desta nota tornar públicas sérias e profundas preocupações quanto à operação realizada no município de Pacaraima, em 17 de março de 2021, pela Polícia Federal e pela Polícia Civil do Estado de Roraima. A referida operação desalojou mais de 70 pessoas, dentre as quais 21 mulheres, inclusive gestantes, e 40 crianças migrantes, da Casa São José, casa de acolhida gerida pelas Irmãs de São José e Pastoral do Migrante da Diocese de Roraima, bem como da Igreja Assembleia de Deus Águas Vivas.
As organizações visam ainda reiterar a Recomendação nº 05, de 18 de março de 2020, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), cobrar as devidas soluções das autoridades competentes e a providência de impedir que o ato se repita ou que continuem ocorrendo sucessivas e gravíssimas violações aos direitos da população migrante e dos trabalhadores humanitários.
É alarmante que as forças policiais tenham agido de forma desproporcional, ingressando nas casas sem mandado judicial e conduzindo coercitivamente à Delegacia as pessoas responsáveis pelos locais e retendo indevidamente seus aparelhos telefônicos. Alegou-se que houve flagrante de suposto crime previsto no art. 268 do Código Penal, qual seja “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, afirmando-se que havia aglomeração no abrigo. Para bem compreender a situação, tenhamos presente que os agentes e as casas de acolhida não trouxeram ou introduziram as pessoas no País, mas agiram humanitariamente em socorro a seres humanos em situação de alta vulnerabilidade e evidente necessidade de acolhida e apoio. Acolher e socorrer a quem foge da fome, da miséria, da grave violação de direitos é um ato de humanidade.
Equipamentos de assistência social, sejam eles voltados a migrantes, população de rua, idosos, dentre outros grupos vulneráveis da nossa sociedade, costumam atuar acima de sua capacidade de infraestrutura, profundamente motivados por razões humanitárias e muitas vezes fazendo-o porque o poder público não o faz ou o faz precária e limitadamente. Convém reforçar que é responsabilidade do poder público oferecer alternativas para a devida proteção e segurança destas pessoas em meio à crise sanitária, ao contrário de caracterizar sua acolhida como crime.
Não fosse a imediata intervenção de organizações sociais locais e da Defensoria Pública da União, as dezenas de famílias migrantes, que seguiram para outro abrigo da região, poderiam ter sido relegadas à própria sorte, mediante deportação, o que é extremamente cruel e desumano no atual momento que estamos vivendo. Como bem pontuado na Recomendação do CNDH, a ação ignora ainda o princípio do superior interesse da criança, além dos riscos para a saúde pública envolvidos no desalojamento de pessoas durante a pandemia, conforme também alertado pelo Conselho Nacional de de Direitos Humanos, na Recomendação nº 10, de 17 de outubro de 2018.
Vale ressaltar que ações como essa causam grande medo na população migrante e refugiada, que, apavorada, acaba deixando de buscar serviços essenciais como de saúde, por temer a detenção ou deportações imediatas, o que seria totalmente ilegal perante as Leis Brasileiras de Migração e Refúgio. As imagens a que tivemos acesso são deploráveis e demonstram que mulheres, algumas delas gestantes, passaram mal com a ação violenta e tiveram de ser socorridas por uma ambulância.
Ainda, expor crianças que já se encontram em diversos contextos de vulnerabilidade, a tal situação lamentável de medo e insegurança, gera traumas ainda mais profundos para o seu desenvolvimento, sendo incompatível com todas as garantias a que o Estado brasileiro deve zelar, conforme a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada em setembro de 1990.
Constata-se a utilização pelo governo federal da pandemia como argumento para violar os direitos de migrantes e refugiados no Brasil. Como as organizações que assinam a presente nota já manifestaram por diversas vezes, desde março de 2020, as figuras de deportação e repatriação imediatas, inabilitação do pedido de refúgio, responsabilização civil, administrativa e penal por razões migratórias, sem o direito à defesa e ao devido processo legal, e a discriminação de venezuelanos previstas na Portaria nº 652, de 25 de janeiro de 2021, são inconstistucionais e ilegais, e desrespeitam tratados e compromissos internacionais firmados e ratificados pelo Brasil.
Apesar de alegarem que as causas para tais medidas são sanitárias, entendemos que a afirmação não é de todo verdadeira, uma vez que o Brasil tem aberto as fronteiras de forma seletiva, privilegiando o turismo e interesses econômicos, ao invés de acolher quem precisa migrar em busca de proteção internacional, por estar fugindo de crises humanitárias e perseguições e que não pode voltar ao país de origem por risco à vida e à dignidade, como é o caso do fluxo venezuelano em Roraima. Isto é comprovado na medida em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já declarou que não recomendou a abertura seletiva e não homogênea de fronteiras terrestres, muito menos a discriminação contra venezuelanos1.
Temos acompanhado e vemos com indignação reiterados ataques aos direitos da população migrante no que diz respeito ao acesso a serviços de saúde e assistência social, independentemente de seu status migratório, contrariando o que é previsto na Lei de Migração. Como ressalta a referida Recomendação do CNDH, esta discriminação está escalando para uma perseguição ativa de pessoas indocumentadas pelos órgãos de segurança em Roraima, a fim de se aplicar a sanção de deportação imediata, prática não cabível em um Estado Democrático. É preciso lembrar que o ato de migrar jamais pode ser caraterizado como ilegal, mas sim como um direito humano universal.
A assistência social e humanitária prestada a migrantes em situação irregular por entidades da sociedade civil tampouco é ilegal, uma vez que não se objetiva atingir fins lucrativos nem o incentivo à migração irregular com este trabalho, mas tão somente salvaguardar a sobrevivência, a dignidade e o acolhimento de pessoas em situações de extrema vulnerabilidade que deveria ser garantido pelo próprio Estado. As organizações da sociedade civil e trabalhadores humanitários devem ser respeitados e as autoridades devem abster-se de qualquer tentativa de intimidação ou cerceamento de sua atuação, sendo a liberdade de associação e a não intervenção estatal no funcionamento das associações garantias constitucionais.
Por todo o exposto, exigimos que as forças policiais e órgãos de segurança não promovam novas buscas no sentido de identificar, punir, desalojar e impedir o acesso a serviços básicos de pessoas migrantes sem status migratório regular. Caso o desalojamento seja imprescindível por questões de segurança das pessoas acolhidas, deverá ser feita a transferência imediata destas para abrigo em condições dignas, conforme estabelecido pela Recomendação nº 10, de 17 de outubro de 2018, do CNDH. Além disso, solicitamos que a Polícia Federal não promova deportações coletivas e imediatas, sem garantia do devido processo legal, especialmente de migrantes considerados hipervulneráveis. Por fim, que todas as autoridades envolvidas não investiguem sem a devida autorização judicial, não criminalizem ou ameacem a legítima atuação de membros de organizações da sociedade civil nos serviços de acolhida humanitária e assistência a migrantes, independentemente do status migratório.
Assinam: