As tensões e conflitos entre garimpeiros clandestinos e Povos Indígenas na Amazônia são históricas e se intensificaram consideravelmente nos últimos anos. As lideranças indígenas incansavelmente denunciam os conflitos e a invasão do garimpo ilegal nas Terras Indígenas. Desde o início de 2020, o xamã Davi Kopenawa do Povo Yanomami vem denunciando ao mundo inteiro que mais de 20 mil garimpeiros invadiram as terras Yanomami com uma prática de garimpagem que contamina os rios, circula doenças, drogas, prostituição, trabalho análogo ao escravo e todo tipo de violência. Esta mesma invasão se replica praticamente em todos os territórios indígenas do Brasil e nos países da Pan-Amazônia.

Em Roraima, Dario Kopenawa, da Associação Hutukara do Povo Indígena Yanomami, tem denunciado seguidamente os conflitos entre indígenas e garimpeiros. Entretanto, as denúncias se deparam com um completo silêncio por parte das instituições políticas que seguidamente tem se posicionado em favor da exploração garimpeira fortalecida e legitimada com as posturas dos governos estadual e federal, além de inúmeros políticos que defendem a legalização do garimpo que representa grave crime ambiental na Amazônia e ameaça real aos povos indígenas, comunidades quilombolas e de outros povos tradicionais que vivem em áreas de proteção ambiental.

Em Roraima, desde o início de maio, a comunidade Yanomami Palimiú, localizada às margens do rio Uraricoera, no noroeste do estado, vem sofrendo seguidos ataques por parte de garimpeiros fortemente armados que atiram em direção à comunidade. As lideranças denunciam que a comunidade vive amedrontada e as crianças se jogam no rio para se protegerem dos tiros, o que levou à morte por afogamento, de dois pequenos Yanomami no final da semana passada.

A comunidade Palimiú fica localizada numa região estratégica do rio Uraricoera cobiçada pelos garimpeiros que querem ‘limpar a área’ e a liberar para a garimpagem. A Associação Hutukara, insistentemente tem pedido socorro às autoridades de proteção, mas, a demora das respostas e a omissão do Estado pode resultar num novo genocídio, como aquele ocorrido em meados de 1993, na comunidade de Haximú.

O genocídio de Haximú é conhecido no mundo inteiro e pouco comentado no Brasil. Fundamentado na Lei 2.889 de 1º de outubro de 1956, que define e pune o crime de genocídio, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o massacre Yanomami em Haximú como crime de genocídio e referendou a decisão do juiz federal Itagiba Catta Preta Neto, da Justiça Federal de Roraima, em 19 de dezembro de 1996. Oficialmente, o massacre bárbaro resultou na morte, a pauladas, terçadadas, tiros e pontapés, de 16 pessoas e muitos ficaram feridos. Segundo os autos do processo, foram mortos quatro homens adultos, uma idosa, três mulheres adultas, três adolescentes, quatro crianças e um bebê recém-nascido. Entretanto, as narrativas dos sobreviventes indicam que pode ter sido mais de 70 mortes, resultando no quase extermínio da comunidade, o que configura genocídio.

Mesmo diante do acontecido em Haximú, a tipificação do crime de genocídio no Brasil não tem sido fácil com relação aos sucessivos massacres dos povos indígenas. Lançado recentemente pela Editora Bambual, o livro ‘Abya Yala!: Genocício, resistência e sobrevivência dos povos originários do atual continente americano’ da pesquisadora Moema Viezzer em parceria com Marcelo Grondin, problematiza o tema do genocídio e trazem novos elementos para o debate. Com prefácio do ambientalista e pesquisador indígena Aliton Krenak, o livro apresenta ‘um grande inventário das matanças dos povos ancestrais de toda a América. Com base em pesquisas em diferentes épocas e regiões do mundo, os(as) autores(as) atestam “o maior genocídio da história dos povos originários das Américas com mais de 70 milhões de vítimas dos massacres nos processos colonizatórios”.

Desde o acontecido em Haximú, pouco se fez em nível institucional para a proteção dos Povos Indígenas e de seus territórios no Brasil. De modo especial nos últimos anos, os conflitos socioambientais envolvendo povos indígenas e garimpeiros, madeireiros, fazendeiros e grileiros têm se intensificado assustadoramente. No caso recente dos ataques à comunidade do Palimiú, se nota que o garimpo atual não é mais como aquele da década de 1990 que quase levou ao extermínio uma comunidade inteira. Os garimpos de hoje convivem com o crime organizado que controla, além do contrabando de ouro, o tráfico de drogas, de armas e de pessoas para o trabalho análogo ao escravo e para a prostituição, no caso do tráfico de mulheres.

Os garimpos de hoje são equipados com pistas de pouso de aviões, com amplas frotas de embarcações orientadas por satélites e acompanhadas em tempo real no traslado permanente de garimpeiros e equipamentos de garimpagem de alta tecnologia nos rios de médio e grande porte.

Entretanto, a maior diferença entre os garimpeiros que massacraram Haximú e os que agora aterrorizam Palimiú e milhares de outras comunidades indígenas, especialmente na Amazônia, é o arsenal de armas. Com a facilidade de se adquirir e portar armas compradas e vendidas em qualquer loja de materiais de pesca nos pequenos e grandes centros urbanos de toda a Amazônia, os garimpeiros exibem nos ataques a Palimiú um verdadeiro arsenal de guerra.

Se em Haximú, armados com terçados e pedaços de pau, foram capazes de exterminar uma comunidade quase por inteiro, com a quantidade exorbitante de armas que possuem no momento, se não forem evitados, os massacres poderão ser muito mais letais que no passado. A título de intimidação ou talvez para exibição do seu poder armamentista, os garimpeiros atiraram até mesmo contra agentes da Polícia Federal que estavam na comunidade do Palimiú no último dia 11 de maio para investigar os ataques dos garimpeiros.

Neste momento tenso e conflituoso, se torna necessário saber mais sobre o que aconteceu em Haximú, conhecer a covardia e crueldade do massacre de idosos, mulheres, crianças e recém-nascidos que tiveram seus corpos esquartejados e espalhados pela floresta, entender por que este crime foi reconhecido como genocídio, para nos posicionarmos como sociedade, em defesa dos povos indígenas e de suas lutas e evitar que novos genocídios ocorram nos conflitos com garimpeiros, especialmente na Amazônia.

Fonte: Márcia Oliveira/ Amazonas Atual 

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