As cercas estão sendo instaladas por posseiros no interior da Terra Indígena Taquaritiua, em processo de demarcação, e impedem acesso dos indígenas a uma área de uso coletivo
O povo Akroá Gamella denunciou, nesta segunda-feira (12), o cercamento de uma área no interior de seu território tradicional, em Viana (MA), localizada a cerca de quatro horas da capital, São Luís. As cercas estão sendo colocadas por uma família de posseiros, apesar da denúncia dos indígenas, no interior da Terra Indígena (TI) Taquaritiua, que se encontra em processo de demarcação pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
A situação de conflito, que é histórico na região, iniciou no sábado (10), quando membros da família e outras pessoas foram até o local que pretendiam cercar, na entrada da Aldeia Centro do Antero e próximo ao povoado Santeiro, também reivindicado como parte do território tradicional indígena, e foram questionados pelas lideranças.
Os não indígenas afirmaram que estavam apenas medindo a área e garantiram que retornariam na segunda-feira para iniciar a colocação das cercas, como de fato fizeram – apesar do protestos dos Akroá Gamella, que informaram que a área está em processo de demarcação.
No domingo, a situação foi denunciada pelo Conselho de Lideranças do Povo Indígena Akroá Gamella, pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Maranhão e pela Comissão Pastoral da Terra do Maranhão (CPT MA) por meio de um ofício enviado ao Ministério Público Federal (MPF), à Polícia Federal, à Defensoria Pública da União (DPU), à Funai, à Secretaria de Direitos Humanos do Maranhão e ao Programa Estadual de Proteção de Defensores de Direitos Humanos do Maranhão.
Os posseiros iniciaram o cercamento na manhã desta segunda (12), e os indígenas realizaram cantos e rituais ao lado da área, em protesto contra a ação. Segundo as lideranças, as polícias civil e militar apareceram no local, mas não falaram com os indígenas. No final da tarde, a instalação das cercas foi interrompida, mas a tensão continua.
“Essa área que eles querem cercar é coletiva. A gente trabalha nela, faz roça, tem fruteira dentro dela, onde a gente junta o pequi, o bacuri, e eles querem cercar, derrubar”
“A polícia esteve aqui, não falou nada para nós, só entrou ali na casa para falar com eles [não indígenas]. Isso inclusive nos preocupa, porque é difícil confiar”, relata uma liderança presente no local, que pediu para não ser identificada por questões de segurança.
Segundo ela, há anos existe pressão dos posseiros sobre a área, que é um local de passagem e de uso coletivo e tradicional do povo Akroá Gamella. “Essa área está dentro do território indígena, é na entrada da nossa aldeia, bem perto, e sempre, desde os anos 1980, eles tentam cercar”, relata.
“Essa área que eles querem cercar é coletiva. A gente trabalha nela, faz roça, tem fruteira dentro dela, onde a gente junta o pequi, o bacuri, e eles querem cercar, derrubar. Mas fica dentro do nosso território, bem perto da nossa aldeia”, prossegue a liderança.
Além disso, os indígenas explicam que no local onde estão sendo colocadas cercas fica a estrada que dá acesso à aldeia e pela qual os Akroá Gamella fazem o escoamento dos alimentos produzidos pela comunidade e comercializados na região. O cercamento também impediria a circulação dos indígenas pela área.
“As ameaças de cercamento são históricas, assim como são históricos os processos de resistência do povo Akroá Gamella diante das ações de invasores”
Conflito histórico
“As ameaças de cercamento são históricas, assim como são históricos os processos de resistência do povo Akroá Gamella diante da continuidade de ações de invasores em insistir em cercamentos do seu território tradicional”, destaca o documento remetido às autoridades.
O conflito histórico se intensificou nos últimos anos e resultou, em abril de 2017, num massacre contra o povo Akroá-Gamella, no qual mais de 20 indígenas foram feridos e dois tiveram as mãos cortadas.
Segundo a denúncia, a família que realiza o cercamento integra o sindicato dos criadores de gado da região, o que, na avaliação das entidades, “representa uma clara articulação para a continuidade de ofensivas contra os direitos constitucionais indígenas”.
Além disso, as entidades e os indígenas também ressaltam que esta família teve “papel preponderante na articulação que culminou com o massacre contra o povo Akroá Gamella no dia 30 de abril de 2017”.
“O local em que está acontecendo esse cercamento é justamente na mesma região em que aconteceram as articulações para a realização daquele massacre no dia 30 de abril de 2017”, explica Lucimar Carvalho, assessora jurídica do Cimi Regional Maranhão.
“São famílias que têm interesse na criação de bois, de búfalos, e o cercamento é feito exatamente para isso. Só que são cercamentos feitos de maneira ilegal, porque é um território indígena, que está em processo de demarcação”, prossegue a assessora.
Após a grande repercussão do ataque contra os indígenas e uma ação civil pública do MPF, em novembro de 2017 a Funai constituiu, por meio de uma portaria, o Grupo de Trabalho (GT) responsável pela identificação e delimitação do território dos Akroá Gamella. Quase quatro anos depois, contudo, o processo encontra-se estagnado.
“Solicitamos à Funai a continuidade dos procedimentos demarcatórios, que hoje estão paralisados. Isso acaba por incentivar esses conflitos, porque essas famílias que se dizem donas são, na verdade, invasoras. E é uma situação que já é histórica na região. Todas as vezes que essas famílias da localidade querem colocar cercas e privatizar o território, o povo resiste”, destaca Lucimar.
Além da morosidade no processo demarcatório, as entidades também apotam, no documento que medidas da Funai como a Instrução Normativa (IN) 09/2020, que permite a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas ainda não homologadas, favorece conflitos e ações como a que ocorre no território Gamella.
A IN 09 já foi suspensa em diversos estados por ações do MPF, mas não no Maranhão. “A continuidade da validade aqui no Maranhão da IN 9 da Funai acaba por incentivar tais procedimentos e ameaças contra os povos indígenas”, ressalta o ofício.
Fonte: Ascom Cimi