Julgamento sobre demarcação de terras indígenas no STF foi suspenso por prazo indefinido após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes; povos protocolaram carta no STF nesta quinta (16)
Nesta quinta-feira (16), lideranças indígenas de pelo menos onze povos protocolaram no Supremo Tribunal Federal (STF) uma carta destinada ao ministro Alexandre de Moraes, autor do pedido de vista que suspendeu o julgamento sobre demarcações de terras indígenas. Os povos pedem ao ministro que devolva o voto vista com brevidade e se posicione contra a tese ruralista do marco temporal.
A carta é assinada pelos povos Xokleng, Kaingang, Guarani, Tuxá, Xavante, Xukuru, Tupi Guarani, Pataxó, Guajajara, Terena e Krikati, que permaneceram em Brasília nesta semana para acompanhar a continuidade do julgamento de repercussão geral no STF. Cerca de 150 indígenas destes povos foram até o STF para fazer o protocolo da carta durante a tarde de quinta.
“Mais uma vez, estivemos no STF protocolando um documento para que o ministro Alexandre de Moraes coloque novamente em pauta o processo e sejam votados os direitos do povo Xokleng e dos povos indígenas do Brasil”, relata Brasílio Priprá, liderança do povo Xokleng. O território de seu povo está no centro da disputa judicial no STF que definirá o futuro das demarcações de terras no Brasil.
O grupo de lideranças, presente em Brasília desde o dia 20 de agosto, permaneceu na capital federal nesta semana para acompanhar a votação na Suprema Corte, dando continuidade à grande mobilização que, nas últimas semanas, com o acampamento Luta Pela Vida e a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, reuniu milhares de indígenas de mais de 170 povos na capital federal.
“Na prática, o voto do eminente Ministro Nunes Marques premia o amplo espectro de crimes praticados contra os povos para esbulhar nossas terras e, assim, incentiva que os mesmos crimes sejam repetidos contra nós e nossas terras”
Contra o marco temporal
Na quarta-feira (15), as lideranças acompanharam da Praça dos Três Poderes a sexta sessão consecutiva do processo no STF, quando o ministro Nunes Marques, segundo a votar, posicionou-se contra os direitos constitucionais indígenas e a favor da tese ruralista do marco temporal, abrindo uma divergência com o relator, Edson Fachin.
Na sessão anterior, Fachin havia se posicionado a favor dos povos indígenas e contra o marco temporal, tese inconstitucional defendida por ruralistas e outros setores econômicos interessados na exploração e apropriação dos territórios indígenas.
Apesar de defender a tese do marco temporal, Nunes Marques reconheceu, em seu voto, que ela busca “anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, e já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica”.
“Na prática, o voto do eminente Ministro Nunes Marques premia o amplo espectro de crimes praticados contra os povos para esbulhar nossas terras e, assim, incentiva que os mesmos crimes sejam repetidos contra nós e nossas terras”, critica a carta protocolada pelos indígenas.
Logo após o voto do de Nunes Marques, Alexandre de Moraes apresentou seu pedido de vista, suspendendo o julgamento por tempo indefinido. O regimento interno do STF estabelece um prazo de 30 dias para a devolução do processo sob vista, prorrogável por mais 30. A Corte, contudo, não prevê sanções em caso de descumprimento do prazo, e é comum que ele seja estendido para além desse período.
“O Estado brasileiro sempre fala que precisa reparar os erros que cometeu contra os povos indígenas, e o principal deles é esse, a terra. Por isso, é muito importante que coloquem em pauta o mais rápido possível”
“Pedimos que ele possa devolver o mais rápido possível ao presidente da Corte, e também pedimos ao presidente que coloque em pauta assim que receber o processo de volta do Alexandre de Moraes. Somos guerreiros, estamos há 521 anos lutando, mas queremos também que chegue em um ponto positivo para nós”, explica Kretã Kaingang, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e uma das lideranças que fizeram o protocolo do documento.
“O Estado brasileiro sempre fala que precisa reparar os erros que cometeu contra os povos indígenas, e o principal deles é esse, a terra. Por isso, é muito importante que coloquem em pauta o mais rápido possível”, reivindica a liderança.
Existe o temor de que a suspensão do julgamento, ainda que temporária, fomente a ocorrência de conflitos nos territórios, além de manter muitas comunidades indígenas que vivem sem acesso às suas terras em situação de vulnerabilidade. Depois de devolvido por Moraes, o processo precisa ser novamente incluído na pauta pelo presidente da Corte, Luiz Fux.
A carta também menciona o acampamento Levante pela Terra, que também reuniu mais de mil lideranças indígenas em Brasília no mês de junho, mobilizados em defesa de seus direitos constitucionais e contra propostas como o marco temporal e o Projeto de Lei (PL) 490, em tramitação na Câmara dos Deputados. Os povos reafirmam sua posição contra o PL, que busca, por meio da tese do marco temporal, inviabilizar seus direitos territoriais.
Leia a íntegra da carta protocolada no STF ou clique aqui para baixá-la em pdf:
Ao Excelentíssimo Senhor Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes
Assunto: RE 1017365
Pedido de vistaSenhor Ministro, nós dos Povo Xokleng, Kaingang, Guarani, Tuxá, Xavante, Xucurú, Tupi Guarani, Pataxó, Guajajara, Terena, Krikati estamos em Brasília desde o dia 20 de agosto para acompanhar o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1017365, que conta com repercussão geral nesta Suprema Corte. Hoje somos cerca de 150 lideranças ainda em Brasília, mas nestes dias mais de 10 mil representantes de outros 170 povos, aproximadamente, também estiveram em Brasília pelo mesmo motivo. Também estivemos acampados entre os dias 08 a 30 de junho aqui em Brasília em função desse fundamental julgamento, bem como para pedir que o PL 490/2007 não fosse aprovado na Câmara do Deputados.
O PL 490/2007 tem como objeto a institucionalização da tese do marco temporal e a reforma do Decreto 1775/1996, profundamente debatido e aprovado no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Pedimos aos parlamentares que esse projeto não seja aprovado, dado que, ao nosso ver, é inconstitucional e afronta o direito de demarcação de nossas terras de ocupação tradicional.
Daí que o RE 1017365 (Tema 1031) teve o julgamento iniciado no dia 26 de agosto do corrente ano, com ampla participação da sociedade. O Ministro Relator, Edson Fachin, apresentou voto no sentido de que a Constituição não limitou no tempo o direito territorial indígena, nem que se poderia onerar os povos indígenas a comprovarem disputa pela posse na data de 05 de outubro de 1988, garantindo que o esbulho é inadmissível e que os crimes cometidos para nos expulsar das nossas terras não podem ser anistiados, legalizados pela tese do marco temporal, além de garantir a obrigação da União em demarcar e fazer proteger.
O segundo voto foi apresentado, quando Sua Excelência pediu vistas. Contudo, o Ministro Nunes Marques trouxe um voto divergente, no qual confere ao texto da Constituição o marco temporal, associado ao renitente esbulho, onerando os grupos étnicos a comprovarem a posse ou disputa pela posse da terra em 05 de outubro de 1988, além de impedir reestudo para redefinição de terras indígenas já demarcadas.
Além de todo o voto trazer, ao nosso ver, uma intepretação conflitante com o art. 231 da Carta de 1988, impedindo a demarcação de terras ainda não regularizadas, determina que decaiu o direito da União em demarcar as terras indígenas, já que tinha o prazo de 05 anos a partir da promulgação da Constituição para fazê-lo, desconsiderando o caráter imprescritível do nosso direito territorial.
Por fim, o Ministro Nunes Marques entende que é necessário “anistiar oficialmente esbulhos ancestrais”. Ou seja, toda violência ocorrida até 1988, período recente da nossa história, estaria de ora em diante legalizada. E veja que as violências são de castigo físico e psicológico, assassinatos, prisões sem motivação, trabalho escravo, crimes de genocídio, dinamite e estricnina jogadas de avião nas comunidades indígenas, tudo isso sob o jugo do regime tutelar e de exceção, como se constara do Relatório Figueiredo e o Relatório da Comissão Nacional da Verdade – CNV, e até casos de crucificação de indígenas. Ao fazer isso, na prática o voto do Eminente Ministro Numes Marques premia o amplo espectro de crimes praticados contra os povos para esbulhar nossas terras e, assim, incentiva que os mesmos crimes sejam repetidos contra nós e nossas terras.
Nesse sentido, vimos com muito respeito até Sua Excelência pedir encarecidamente que possa fazer valer a vontade do constituinte de 1988, que era justamente o de reparar os crimes até aquela data cometidos e garantir o futuro das demarcações de terras indígenas, impedindo a dispersão dos povos e a perda de muitas culturas, de línguas, crenças e tradições dos povos originários, para impedir um prejuízo irreparável.
Pedimos, que afaste a tese do marco temporal e do renitente esbulho e não permita a legalização de toda sorte de crimes cometidos até 1988 com o objeto de esbulhar nossas ricas terras de ocupação tradicional e determine que a União, por estar em mora, se obrigue a cumprir o acordo feito em 1988, no qual os povos indígenas foram contemplados com o direito à demarcação de suas terras, como meio de reparação e de justiça.
Pedimos, por fim que possa devolver com brevidade o voto vista para a continuidade e finalização deste julgamento. Mantemos plena confiança e apoio ao STF neste contexto de grandes ataques que tem sido desferidos contra a mais alta corte de nosso país. Ao mesmo tempo, a postergação para a finalização deste emblemático julgamento faz aumentar sobremaneira a expectativa nossa e de todos os povos indígenas do Brasil quanto a uma decisão favorável do Supremo aos nossos direitos constitucionais e fundamentais.
Com o devido respeito de sempre.
Brasília-DF, 16 de setembro de 2021