A presença de povos em isolamento volutuário na Amazônia, ou povos livres, tem gerado tensões e constantes preocupações de organizações indígenas e indigenistas dedicados ao tema, em especial, frente a política anti-indígena adotado pelos países que compõe a Região Amazônica. Cenário que gera uma complexa situação de violações a estes povos originários, além do contexto de fronteira.
Com o objetivo de dar visibilidade às questões que atingem os povos em isolamento voluntário e aumentar a compreensão sobre as situações de ameaças e violências a que estão constantemente submetidos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), a Rede Iglesia y Minería e NGO Mining Working Group (MWG) realizaram o evento paralelo ao Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas da Organização das Nações Unidas, que está em seu 21º período de sessões.
Apesar das muitas evidências que indicam a existência de indígenas isolados na Amazônia, a maior parte destes não é reconhecida pelos Estados nacionais, que sistematicamente desconsideram os Direitos Humanos destas populações ou simplesmente insistem em não reconhecer as suas existências, condenando-os a uma perigosa invisibilização, destacou Lino João de Oliveira Neves, antropólogo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e assessor da Equipe da Apoio aos Povos Livres do Cimi (Eapil-Cimi), na abertura do evento.
Apu Manuel Ramírez Santana, liderança do povo Yagua, presidente da Organização Regional de Povos Indígenas do Oriente (Orpio), do Peru, assegura haver um “forte problema com os povos isolados em diferentes países, temos nos preocupado com nossos territórios, peruanos e brasileiros, há muito o que fazer para assegurar os territórios indígenas”.
Manuel ainda destaca haver um alto número de povos indígenas em isolamento voluntário nas fronteiras com Brasil, Colômbia e Equador. “Nossos territórios têm sido destruídos por madeireiros, mas não vamos nos calar, seguiremos lutando e denunciando”, assegura o líder Yagua.
Com um relato bastante simular, Gino Machay Sarasara, liderança do povo Amawaka, e vice-presidente da Federação Indígena Alto Rio Inuya e Mapuya (Fiariminuyamapuya), destacou os impactos sociais, culturais e ambientais causado pelos invasores. “Estamos preocupados, os povos originários que vivem isolados se sentem ameaçados pelos invasores. Dentro do território Amawaka, por exemplo, os invasores estão criando pistas para aeronaves e grandes plantações agrícolas”, conta Gino.
As constantes ameaças aos direitos originários têm gerado insegurança nos territórios e entre os povos, que seguem preocupados em evitar a perda de sua cultura e tradições. “A morosidade da justiça e os interesses políticos de gestores, que estão à frente de órgão públicos, desde as instancias locais até as nacionais, tem causado insegurança nos territórios”, destaca Auro Carvalho, liderança do povo Tenetehara, no Brasil.
Auro também faz parte do projeto “Guardiões da Floresta”, criado inicialmente para proteger os povos isolados que vivem na Terra Indígena (TI) Araribóia, no Maranhão, para que pudessem andar livremente pelo território. De iniciativa dos próprios indígenas, a ideia nasce das discussões e observância dos anciões do povo.
“Das 72 entradas de madeireiros à terra indígena – identificadas quando criamos os Guardiões da Floresta -, conseguimos reduzir para 30, sem nenhum tipo de apoio, nem da Funai [Fundação Nacional do Índio], do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] ou da Polícia Federal. Começamos o projeto e entendemos que de fato o projeto dos Guardiões se faz necessário”, conta Auro.
Além da proteção dos povos livres e do território, o projeto contempla a formação de novos integrantes e a conscientização dos indígenas, buscando ainda denunciar as invasões e impedir os invasores.
Os Guardiões têm sido referência em várias denúncias e operações do Ibama e da Polícia Federal, aponta o líder indígena, que reforça a importância da demarcação e da proteção do território tradicional. “Se não temos terra sadia, políticas públicas de proteção, a terra adoece. E uma terra doente não produz bons alimentos e água de qualidade, e quem sofre com isso são os povos isolados”, reforça Auro.
Por sua vez, Beatriz Huertas, representando a Organização Regional de Povos Indígenas do Oriente (Orpio) e da Fundação Norueguesa da Floresta Tropical, destacou os desafios dos povos isolados ou livres transfronteiriços. As áreas de difícil acesso, o avanço do narcotráfico e das epidemias sanitárias têm gerado preocupação às organizações que atuam juntos a estes povos nas fronteiras.
“As florestas têm sido invadidas e, com isso, realizamos pelos menos 17 registros de povos isolados no Vale Javari, no Brasil, um registro bastante alto para um único território”, destaca Beatriz. Logo, isolamento é uma estratégia de sobrevivência destes povos. A alta mobilidade também é uma estratégia de sobrevivência, especialmente quando mineradoras e madeireiros adentram seus territórios, reforça a antropóloga.
As fronteiras são zonas de risco onde o contato com esses povos tem sido particularmente grave, 40% a 50% da população tem sido acometida de alguma enfermidade. “O narcotráfico tem se mostrado como a principal ameaça aos povos isolados, além do avanço nos plantios, que tem o processamento e a abertura de caminhos para realizar o transporte”, completa Beatriz.
Na fronteira peruana e brasileira, existem pelo menos 100 concessões para exploração de áreas protegidas. Os governos locais têm favorecido a extração de madeira e abertura de rodovias para escoar a produção do agronegócio, mesmo nos territórios dos povos isolados. Tudo isso ocorre de forma paralela à precarização do aparato do Estado, tanto no Brasil quanto no Peru.
O Procurador Regional da República, Ubiratan Cazetta, destacou não haver necessidade criar legislações especificas para tratar dos povos isolados, pois já são garantidos pela Constituição Federal de 1988 e pela Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. O conjunto de propostas legislativas em trâmite no Congresso nacional, como o PL 191/2020, que regulariza a mineração em terras indígenas, e a tese do marco temporal violam o direito originário dos povos, inclusive os que vivem em isolamento voluntário.
No Brasil, qualquer ato que venha do Congresso Nacional tem uma chance muito pequena de vir ao encontro dos interesses dos povos, pontua Ubiratan. É obrigação do Estado proteger e respeitar os territórios e a cultura dos povos tradicionais, para isso não devem ser forçados a deixar o isolamento parte ter acesso à proteção do Estado.
“Basta as evidencias da existência de povos livres para o que o Estado faça a devida proteção. Não podemos forçar o contato, se vier acontecer, deve partir do próprio povo. Ainda é importante lembrar que os protocolos de consulta precisariam ser construídos para cada caso concreto, é obrigação do Estado brasileiro essa proteção”, assegura o procurador.
Frente a atual conjuntura, “evitar qualquer ato administrativos me parece um avanço significativo frente a este Congresso. O Brasil deveria ter uma postura mais ativa com os países vizinhos em relação a proteção dos povos indígenas, para que haja proteção dos territórios dos povos isolados, ou não”, avalia Ubiratan.
A negação da presença dos povos isolados se configura como uma verdadeira política de governo que permite aos Estados nacionais se desobrigarem a proteger estes povos, ao mesmo tempo que abrem espaço para a ação dos interesses contrários que invadem os seus territórios. Violentam os seus modos de vida e colocam em risco de existência as suas vidas.
O evento paralelo faz parte de uma série de contribuição de lideranças indígenas, suas organizações e organizações indigenistas junto à 21ª sessão do Fórum Permanente das Nações Unidas para as Questões Indígenas (UNPFII 21), que está sendo realizado em Nova York, Estados Unidos, de 25 de abril a 6 de maio, deste ano.
Com o tema “Povos indígenas, negócios, autonomia e os princípios de direitos humanos da devida diligência, incluindo o consentimento livre, prévio e informado”, a sessão de 2022 do Fórum Permanente será aberta à participação presencial e online.
Participam do Fórum representantes da Aty Guasu – a grande Assembleia Guarani e Kaiowá, a Associação do Povo Karipuna, do povo Mura, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Rede Iglesias e Mineria e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam).
POR ADI SPEZIA
Assessora de Comunicação do CIMI
REPAM-Brasil com informações do CIMI