“A Amazônia é nossa”. O mote governamental para justificar a chamada integração da região amazônica e a sua exploração a partir do discurso de desenvolvimento foi o fio condutor da exposição do bispo emérito da prelazia do Xingu/PA e coordenador da Rede Eclesial Pan-Amazônica/REPAM-Brasil, dom Erwin Kräutler, na aula inaugural da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte/MG, no último mês de março. Na ocasião, falou da Amazônia como “um desafio para a Igreja e a humanidade” e elencou dez grandes desafios para a Igreja na Amazônia que ele espera que sejam debatidos na próxima Assembleia do Sínodo dos Bispos, entre os dias 6 e 27 de outubro.
Domo Erwin abordou a internacionalização da Amazônia, citando fatos históricos que estavam ou ainda estão justificados na fixação da região como elemento importante para a manutenção da soberania nacional, mas que vem, ao longo dos anos, gerando destruição e mortes à natureza e aos povos.
“Considero de certo modo até grotesco esse mote frente às empresas estrangeiras que se estabeleceram com o aval dos diversos governos brasileiros. Há muito tempo se sentem donas da Amazônia e exploram solo e subsolo e a mão-de-obra barata. A maior parte das atividades econômicas está voltada para interesses de países que têm legislação muitíssimo mais severa que a nossa em relação à preservação do meio ambiente”, disse dom Erwin.
Os processos de colonização, as grandes obras como construções de rodovias nunca terminadas, a exploração de recursos hídricos, energéticos e minerais e ausência de reforma agrária que afetam a vida dos povos originários e dos migrantes que saíram de outras regiões do país para recomeçar suas vidas na região da Amazônia Legal. São todos elementos analisados por dom Erwin para contextualizar as preocupações, aflições e dores dos habitantes e que motivam a atuação profética da Igreja na região.
Ao contrário da visão do agronegócio e de seus aliados de que nenhuma terra deve estar fora do mercado, a voz que ecoa de quem está ao lado dos povos amazônicos diz: “Toda a terra a favor da Vida e da Paz!”. Visualiza-se assim dois projetos em confronto: “um a favor da Terra para a Vida, o outro a favor da Terra para Negócio. Nossa luta há de se intensificar para que a Vida seja vitoriosa!”.
Dom Erwin também ressaltou a caminhada da Igreja na região que, a partir do primeiro encontro dos bispos da Amazônia, ainda em 1954, já se vislumbrava o que o papa hoje deseja com o Sínodo. “Medellín (1968) tentou latino-americanizar as constituições e decretos daquele evento histórico [Concílio Vaticano II], o Encontro dos Bispos da Amazônia em Santarém procurou amazonizar Medellín. Desde 1954 os bispos da Amazônia se reuniram periodicamente, mas o Documento de Santarém engendrou uma nova primavera para toda a Amazônia. Já aí os bispos falaram de ‘uma Igreja com rosto amazônico’. Deixaram-se inspirar pela palavra do Papa Paulo VI ‘Cristo aponta para a Amazônia’”.
Sobre o Sínodo para a Amazônia, cujo tema é “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, dom Erwin explicitou, para além de toda a contextualização presente no conteúdo da aula inaugural, alguns dos grandes desafios para a Igreja na Amazônia, os quais ele faz votos “de que sejam realmente discutidos em outubro deste ano na aula sinodal no Vaticano”:
- A valorização de leigas e leigos a serviço (ministério) de suas comunidades sem clericalizá-los.
- O papel da mulher como evangelizadora não só na família, mas também nas comunidades e vigorosa defensora dos direitos humanos, com acesso ao diaconato;
- O carisma das ordens e congregações religiosas e sua inserção nas comunidades amazônicas;
- A busca de alternativas para enfrentar a ausência da Eucaristia em milhares e milhares de comunidades, quiçá descobrindo ao lado do tradicional um outro modelo de presbítero (não reservado apenas aos homens);
- O revigoramento das Comunidades Eclesiais de base como primeiro e fundamental núcleo das dioceses e prelazias;
- A inculturação dos sacramentos na vida dos povos originários e integração de expressões culturais autóctones na Liturgia;
- A conscientização e sensibilização de toda a sociedade brasileira em relação à defesa da Amazônia diante da voracidade de empresas que golpeiam e arrasam esse macro-bioma;
- A implementação da Encíclica “Laudato Sì” nas comunidades amazônicas;
- Um incentivo especial à pastoral urbana frente ao inchaço das cidades e o êxodo rural;
- O escasso uso de meios modernos de comunicação ou a ausência de equipamentos apropriados nas dioceses e prelazias.
Confira a exposição de dom Erwin na íntegra.
Amazônia: um desafio para a Igreja e a humanidade
Aula Inaugural na Faculdade Jesuíta – FAJE
em Belo Horizonte
Dom Erwin Kräutler
Bispo em. do Xingu
Coordenador da REPAM-Brasil
O título escolhido para esta Aula Inaugural me faz recordar a palavra do Papa Francisco aos bispos do Brasil por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em 2013 no Rio de Janeiro. Chamou a Amazônia de “teste decisivo, banco de prova para a Igreja e a sociedade brasileiras“[1] A defesa da Amazônia na realidade não é apenas um teste decisivo para o Brasil, mas para toda a humanidade, porém de modo especial para o continente sul-americano.
Amazônia é a maior bacia hidrográfica do mundo com 20% da água doce não congelada do planeta. É de uma biodiversidade gigantesca que até hoje não foi suficientemente pesquisada e catalogada. Mais ainda. A floresta tem uma função reguladora do clima, absorvendo o gás carbônico, grande responsável pelo aquecimento global. Impressiona-nos particularmente o fenômeno dos assim chamados Rios Voadores, uma espécie de curso d’água invisível que circula pela atmosfera. Trata-se da umidade gerada pela Amazônia e que se dispersa por todo o continente sul-americano. As principais regiões de destino são o Centro-Oeste, Sudeste e o Sul do Brasil, de forma que alguns pesquisadores afirmam que, sem essa umidade, o ambiente dessas regiões vai se transformar em algo parecido com um deserto. A origem dos rios voadores acontece da seguinte forma: as árvores da Floresta Amazônica “bombeiam” as águas das chuvas de volta para a atmosfera. A água das chuvas que fica retida nas copas das árvores evapora e permanece na atmosfera em forma de umidade.[2]
No sul e sudeste do Brasil e nos gabinetes de Brasília se defende até a exaustão o slogan “A Amazônia é nossa”. Talvez seja ainda consequência de uma montagem em um fictício livro escolar que teria circulado nos Estados Unidos em que no mapa da América do Sul a Amazônia aparece como um enorme espaço branco. A confusão chegou a tal ponto que a Embaixada do Brasil em Washington teve que se manifestar afirmando que se tratava de uma fraude. Mas nas cabeças de uns e outros esse fantasma continua a existir até hoje.
“A Amazônia é nossa”
Considero de certo modo até grotesco esse mote frente às empresas estrangeiras que se estabeleceram com o aval dos diversos governos brasileiros. Há muito tempo se sentem donas da Amazônia e exploram solo e subsolo e a mão-de-obra barata. A maior parte das atividades econômicas está voltada para interesses de países que têm legislação muitíssimo mais severa que a nossa em relação à preservação do meio ambiente.
Paradigmático é o caso de Barcarena no Pará, a 100 km de Belém. Bauxita é transformada em alumina. O custo ambiental e energético é altíssimo de modo que a legislação ambiental de nenhum dos países para onde o produto final está sendo exportado permitiria tão enormes riscos para a população e o meio ambiente. Depois de um vazamento das barragens de rejeitos de bauxita da refinaria norueguesa Hydro Alunorte entre 16 e 17 de fevereiro de 2018 um laudo do Instituto Evandro Chagas (22.2.2018) confirmava a contaminação em diversas áreas de Barcarena. Na Noruega um acidente deste tipo redundaria no imediato fechamento da refinaria e condenação da empresa a pagar todos os prejuízos. Na Amazônia a empresa primeiro nega o acidente, depois toma apenas conhecimento do laudo e promete uma posterior análise. Arrasam o meio ambiente, contaminam as águas, prejudicam gravemente a população, mas nada de significativo acontece. Os lucros não podem minguar ou ser aplicados em providências para maior segurança. O povo é que se dane!
Outro exemplo para comprovar a “internacionalização” da Amazônia é a tão badalada Zona Franca de Manaus, criada já em 1957 e abençoado dez anos depois pela ditadura militar com o intuito de estimular o desenvolvimento econômico da Amazônia Ocidental. Os verdadeiros beneficiados são, sem dúvida, empresas estrangeiras. O que a Amazônia realmente ganha não é tão expressivo e até bastante questionável haja vista o êxodo rural e consequente inchaço da capital amazonense com todos os problemas que derivam de seu crescimento desordenado.
Depois da construção das barragens e da Hidrelétrica Belo Monte, próxima à cidade de Altamira no Pará, e suas consequências irreversíveis sobre a população e o meio ambiente, paira agora sobre o Xingu outra desgraça. Em comparação com essa nova investida inescrupulosa a Hidrelétrica é café pequeno. Uma mineradora canadense quer instalar o maior sistema de extração de ouro a céu aberto. O Brasil está entregando o seu ouro a uma empresa estrangeira em troca de “royalties”. Já cercaram uma área significativa na Volta Grande do Xingu. Será um pedaço do Canadá no Xingu. Se o projeto realmente chegar a concretizar-se ameaçará de modo dramático os moradores indígenas e ribeirinhos, afetará sensivelmente o ecossistema da região e destruirá de uma vez os sítios arqueológicos ali existentes. O cianeto usado para extrair o ouro do solo ou das rochas é altamente tóxico, mas Belo Sun fala “em total segurança” de seus empreendimentos. O que significa total segurança aprendemos em Mariana e agora há pouco tempo em Brumadinho. Sabemos muito bem que as consequências de um desastre serão irreversíveis e jamais haverá recuperação das águas e das áreas atingidas no Xingu. Mas para quê uma firma estrangeira, interessada somente em extrair 60 toneladas de ouro num período de doze anos, vai preocupar-se com o que vem depois? Canadá fica com o ouro e o Brasil com mais uma região e águas envenenadas. Que absurdo! Pergunto ao ministro-general Augusto Heleno[3] se um projeto dessa envergadura não afeta a soberania de nosso País?
“A Amazônia é nossa”
Na visão geopolítica do governo militar da ditadura o medo de um dia perdermos a Amazônia não sei para quem fez o primeiro presidente da Ditadura Militar Humberto de Alencar Castelo Branco 1966, em tempos de “Brasil Grande”, cunhar o famoso slogan nacionalista “Integrar para não entregar”. E o fruto desse pavor de alguém nos roubar a Amazônia está por trás da construção da Rodovia Transamazônica. A partir da década de 70 a Amazônia tornou-se palco de grandes migrações. A construção de imensas estradas que cortam as selvas até então intocadas, provocou uma corrida de milhares de famílias do nordeste à Amazônia. Sobrevoando o nordeste, o presidente General Medici teria exclamado com os olhos voltados para o norte, “Terra sem homens para homens sem terra”, mirando das alturas os nordestinos duramente castigados pela seca. A reportagem da Folha de São Paulo em 10 de outubro de 1970, com o título “Medici implanta na selva marco inicial da Transamazônica”, é emblemática para aquela época. Diz a reportagem: “O general Medici presidiu ontem no município de Altamira, no Estado do Pará, a solenidade de implantação, em plena selva, do marco inicial da construção da grande rodovia Transamazônica, que cortará toda a Amazônia, no sentido Leste-Oeste, numa extensão de mais de 3.000 quilômetros e interligará esta região com o Nordeste. O presidente emocionado assistiu à derrubada de uma arvore de 50 metros de altura, no traçado da futura rodovia, e descerrou a placa comemorativa (…) incrustada no tronco de uma grande castanheira com cerca de dois metros de diâmetro, na qual estava inscrito: “Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o Sr. Presidente da República dá início à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde”.
A rodovia que hoje ostenta a nobre sigla de BR-230 foi planejada para conectar numa extensão de 8 mil quilômetros o Nordeste e Norte como o Peru e Equador. Na realidade ficou em 4.223 quilômetros e até hoje continua em sua maior parte sem asfalto e praticamente intransitável durante o “inverno”[4]. As promessas de concluir a Transamazônica e assim aliviar o sofrimento do povo que vive ao longo da rodovia e suas vicinais e dos motoristas que às vezes passam dias com os caminhões atolados em algum trecho, já duram quase 50 anos e nada ou pouco acontece. Uma verdadeira calamidade.
Com a abertura dessa artéria que corta a selva milenar de leste a oeste a destruição da floresta estava programada. Por incrível que pareça, derrubar e queimar a mata tornou-se sinônimo de progresso e desenvolvimento. E para lá foram os nordestinos fugindo da seca, atraídos por promessas mirabolantes do governo. Mas poucos, apenas 15%, permaneceram. Os outros desanimaram e abandonaram a nova “terra prometida” e voltaram num pau de arara ao nordeste da caatinga e das secas periódicas, ou então refugiaram-se nas cidades que da noite para o dia incharam, duplicando e triplicando o número de seus habitantes.
A chamada segunda colonização, também incentivada pelo governo, trouxe famílias do sudeste, do centro e do sul do Brasil a esta nova fronteira. Vieram em busca de terras para a agricultura ou criação de gado.
Muitos dos pioneiros, sujeitos às mais diversas doenças, como à malária, ao esgotamento físico, sem assistência médica, sem escola, sem estradas vicinais transitáveis para o escoamento do produto, desanimaram e venderam a preço ínfimo seu lote a fazendeiros que concentraram assim terras já tituladas, degradando os pequenos lavradores à condição de peões, de agregados ou fazendo-os trabalhar “à meia” nos lotes dos quais até pouco tempo eram donos com título definitivo. Os lotes familiares de 100 hectares diminuíram e cederam lugar a grandes fazendas. O dinheiro auferido pela venda do lote deu para sustentar a família só por pouco tempo. Alguns, de repente sem eira nem beira, tentaram a sorte nos garimpos. Se lá não acharam ouro, à malária encontraram com certeza. Em consequência de doenças, muitos morreram “de morte morrida”, outros tantos, pela violência que reina nos garimpos, “de morte matada”. Não existe nenhuma estatística.
Décadas passaram, desde então. Os que permaneceram na Transamazônica e se tornaram detentores de maiores extensões de terra, em parte até conseguiram bons resultados. No atual município de Medicilândia[5] de terra roxa surgiram vastos canaviais em substituição à floresta tropical. No entanto, o drama do Pacal (1983), durante o qual fui preso pela Polícia Militar, por ordem do então Governador Jader Barbalho, entrou na história como a grande rebelião dos canavieiros contra os maus tratos, a falta de pagamento da safra entregue e a quebra da Usina de Açúcar e Álcool Abraham Lincoln. Os canaviais desapareceram. Os colonos, pequenos e médios fazendeiros, começaram a investir na pecuária ou então, o que trouxe bem melhores resultados, no cacau. Lentamente emergiu uma classe média rural, mas sempre sujeita à oscilação dos preços no mercado internacional.
Nos últimos decênios surgiu uma nova categoria de conquistadores da Amazônia. São os famigerados grileiros que usurpam terras da União e há casos em que através de manobras escusas mandaram confeccionar títulos definitivos de propriedade. Dispõem como nos velhos tempos do cangaço de forças paramilitares para defender os seus interesses. Usam de suas influências político-financeiras para manter-se em grandes áreas. Querem apropriar-se também de terras pertencentes a famílias de agricultores, destinadas a projetos de desenvolvimento sustentável. Não respeitam nada e ninguém e avançam sem escrúpulos. As famílias dos pequenos agricultores que nas décadas 80 e 90 chegaram em busca de um pedaço de chão para plantar e colher e sustentar suas famílias sempre estiveram e estão na mira desses pseudo-proprietários.
Nas décadas passadas centenas de homens e mulheres perderam a vida de modo violento sem nenhuma investigação, sem nenhuma apuração do crime. São homens e mulheres enterrados como indigentes. Há cemitérios na Amazônia com cruzes sem nomes, há cemitérios clandestinos sem cruzes! A mata cresce por cima das sepulturas e esconde o sangue derramado. A Justiça, se não é conivente, é ausente!
A mártir internacionalmente mais conhecida é a Irmã Dorothy Mae Stang. Procurou viver a primeira bem-aventurança no Evangelho de São Lucas “Bem-aventurados vós os pobres” (Lc 6,20) e depois de uma vida toda consagrada a Deus e a seu povo, experimentou ainda a última: “Bem-aventurados sereis quando vos odiarem, vos expulsarem e injuriarem…”. Chegou a ser declarada “persona non grata” pela Câmara Municipal de Anapu. No entanto, depois ver toda a repercussão do assassinato que chamou a atenção do mundo ao município, a mesma câmara declarou o dia de sua morte feriado municipal. Quando, em 1982, Irmã Dorothy se ofereceu para trabalhar na Prelazia do Xingu foram os pobres que a atraíam. “Quero trabalhar entre os mais pobres” disse quando me apresentou o seu “projeto de vida”. Não acreditei muito nessa disposição de uma irmã norte-americana, mas indiquei para ela uma das regiões mais pobres, a Transamazônica-Leste[6]. Ela não fez apenas “incursões” esporádicas para o meio dos pobres. Vivia entre os pobres, do jeito dos pobres, ela mesma pobre. Sua opção não tinha nada de romântico. É muito duro viver como ela viveu! Mas assim ela conquistou a confiança dos pobres. Passou a pertencer à família dos pobres até que num sábado, dia 12 de fevereiro de 2005, às sete e meia da manhã, se concretizaram as ameaças que há tempo circularam em Altamira e Anapu. Ninguém acreditou que fossem consumar-se. Consumaram-se. Depois de 23 anos de doação abnegada e dedicação generosa ao povo pobre da Transamazônica, em sua morte irmanou-se ainda mais com os pobres. Deu sua máxima prova de amor: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos” (Jo 15,23).
Outro martírio não menos chocante é a morte de Dema. É menos conhecido, talvez porque não era missionário oriundo de outro país, mas um simples capixaba. Ademir Alfeu Federicci, casado com Maria da Penha, pai de família. Como dirigente de comunidade e sindicalista sempre defendeu os direitos do pequeno agricultor e lutou por dias melhores para o homem e a mulher do campo. Denunciou a exploração ilegal de madeira na área indígena Arara da Rodovia Transamazônica. No dia 23 de agosto de 2001, Dema, escreveu uma carta em apoio ao trabalho de investigação da Polícia Federal denunciando os grileiros da SUDAM[7]. Dois dias depois, na madrugada do dia 25 de agosto de 2001, foi brutalmente executado em sua casa. Caiu aos pés de Maria da Penha, sua mulher. Deu apenas para balbuciar: “Maria, tome conta de nossos filhos!”
A Reforma Agrária tão apregoada pelos governos passados nunca avançou e a concentração da propriedade fundiária sempre cresceu e continua aumentando. Os planos econômicos voltados para o campo brasileiro nunca atenderam às expectativas para um novo modelo agrícola. Os sucessivos governos priorizaram sempre o modelo agroexportador e discriminaram a agricultura familiar camponesa, responsável pela produção de alimentos em nosso país.
“A Amazônia é nossa”, não dos indígenas.
O governo e grandes interesses econômicos estão se movendo para anular os direitos dos povos autóctones que habitam a Amazônia há mais de doze mil anos. De um lado estão os povos indígenas com suas organizações e seus aliados: os movimentos sociais do campo e da cidade, o Grito dos Excluídos, as dioceses da Igreja Católica e especialmente o Cimi que atuam junto aos povos indígenas, as entidades de defesa dos Direitos Humanos e os direitos indígenas inscritos no Capítulo “Dos Índios” Art. 231 e 232 da Constituição Federal do Brasil de 1988[8] e ainda, em relação às demarcações de áreas indígenas, no Ato das Disposições Transitórias o Art. 67[9].
Do outro lado batalham contra os direitos indígenas os invasores, o agronegócio, grandes empresas de mineração, firmas madeireiras e outros interessados em açambarcar terras indígenas. O atual governo não faz nenhum segredo de sua intenção de revisar as demarcações de áreas indígenas homologadas por presidentes anteriores. Eleito havia poucos dias, Bolsonaro já vociferou em frontal agressão aos parâmetros constitucionais: “No que depende de mim não tem mais demarcação de terra indígena!”[10] Para conseguir o seu intento o novo presidente quer sensibilizar toda a sociedade nacional. Entra em voga mais uma vez a já surrada argumentação “Muita terra para pouco índio”. De repente a geografia da Europa se torna referência para comparar terras indígenas com países do velho continente. Esse governo busca abertamente desconstruir os direitos indígenas na Amazônia como em todo o país, assim como os direitos dos quilombolas, ribeirinhos e demais comunidades tradicionais,.
Na realidade, o que está em jogo é o fato da Constituição Brasileira sustentar a existência de terras fora do mercado capitalista. E é exatamente contra esta visão ancorada na Constituição Federal que o agronegócio e seus aliados se insurgem. Sua palavra de ordem é: “Nenhuma terra fora do mercado!” Nós junto com os indígenas afirmamos o contrário: “Toda a terra a favor da Vida e da Paz!”. São dois projetos em confronto: um a favor da Terra para a Vida, o outro a favor da Terra para Negócio. Nossa luta há de se intensificar para que a Vida seja vitoriosa!
Desde a chegada dos portugueses até 1822 Brasil com os nomes de Ilha de Vera Cruz e depois Terra de Santa Cruz foi colônia de Lisboa. Mesmo depois da proclamação da independência a sorte da Amazônia não mudou significativamente e até hoje o relacionamento do resto do Brasil com a Amazônia está caracterizado por uma visão colonial. Para a metrópole Brasília, o sudeste e o sul do País, Amazônia é “província” madeireira, mineradora, última fronteira agrícola para expandir o agronegócio até os confins deste delicado e complexo ecossistema, único desta magnitude em todo o planeta.
De umas décadas para cá a “província“ recebeu mais um rótulo, Sem dúvida o mais desastroso, pois implicará na sua destruição programada, haja vista o número de hidrelétricas projetadas para os próximos anos. A Amazônia é declarada a província “energética“ do País. Sob a alegação de captar energia limpa se esconde a verdade de que florestas sucumbem, mais áreas são inundadas, milhares de famílias expulsas de suas terras ancestrais, mais aldeias indígenas diretamente afetadas.
A Igreja na “Amazônia é nossa?”
A história de Igreja na Amazônia difere muito da história da Igreja em outras partes do Brasil. A metade da superfície do Brasil durante séculos foi esquecida pelas dioceses do centro, sudeste e sul do Brasil. Mesmo assim ela foi pioneira em deixar-se entusiasmar pelo Espírito do Concílio Vaticano Segundo. Medellín (1968) tentou latino-americanizar as constituições e decretos daquele evento histórico, o Encontro dos Bispos da Amazônia em Santarém procurou amazonizar Medellín. Desde 1954 os bispos da Amazônia se reuniram periodicamente, mas o Documento de Santarém engendrou uma nova primavera para toda a Amazônia. Já aí os bispos falaram de “uma Igreja com rosto amazônico”. Deixaram-se inspirar pela palavra do Papa Paulo VI “Cristo aponta para a Amazônia”.[11]
De 24 a 30 de maio de 1972, realizou-se em Santarém, Pará, o Encontro inter-regional dos Bispos da Amazônia, que constituiu um marco na caminhada da Igreja nesta imensa região. As “Linhas prioritárias da Pastoral da Amazônia” constituíram uma virada copernicana da ação pastoral e evangelizadora. Os bispos renunciaram a todo e qualquer triunfalismo. Recomendou-se a todas as dioceses e prelazia que descam de qualquer trono para a nossa Igreja realmente tornar-se uma Igreja “pé no chão”. Iniciaram o documento com as palavras: “Recolhendo a experiência e os anseios das bases” a Igreja da Amazônica escolhe duas diretrizes básicas:
- a Encarnação na realidade, pelo conhecimento e pela convivência com o povo, na simplicidade, e
- a Evangelização libertadora.
Essas diretrizes orientaram a opção por quatro prioridades:
1- A formação de agentes de pastoral;
2- As comunidades cristãs de base, primeiro e fundamental núcleo Eclesial;
3- A pastoral indigenista;
4- Estradas e outras frentes pioneiras.
No encontro de Manaus (1974) acrescentou-se mais uma prioridade: a juventude.
Foi um verdadeiro Pentecostes. Cristalizou-se sempre mais um “novo jeito de ser Igreja” que exigia dos bispos, padres e religiosas também um novo jeito de exercer sua missão na simplicidade e na partilha, na dimensão samaritana e profética, na opção pelos pobres e na solidariedade com os excluídos, nas celebrações vivas e participativas que unem fé e vida, no engajamento generoso de mulheres e homens, jovens e adultos, nas diversas pastorais.
Começou a realizar-se a intenção do Concílio que colocou na sua Constituição Dogmática “Lumen Gentium” o “Povo de Deus” antes da “hierarquia”[12] Leigas e leigos deixaram de ser meros consumidores do que o clero apresentou e ofereceu. Assumiram sua responsabilidade batismal e crismal de colaborar na edificação do Reino de Deus na Amazônia.
Perguntamo-nos hoje, o que seria da Igreja na Amazônia sem esse engajamento do laicato principalmente das mulheres. Na Prelazia do Xingu pelo menos dois terços das comunidades são dirigidas por mulheres. Tenho certeza de que em outras dioceses e prelazias não é diferente.
Em termos de padres e bispos a Igreja na Amazônia, o clero até pouco tempo atrás, veio da Europa ou América do Norte. Na época da assim chamada Romanização da Amazônia que começou na segunda parte do século 19, a Amazônia foi “loteada” e entregue à atividade missionária de ordens e congregações que tiveram suas sedes em outros continentes.
Nem a CNBB, fundada em 1954, se importava muito com a situação do norte do Brasil, já que foi considerada área missionária. Até que levou um susto quando em janeiro de 1972 Dom Aloisio Lorscheider, presidente da CNBB, Dom Avelar Brandão Vilela, vice-presidente, e Dom Ivo Lorscheiter, secretário-geral, visitaram a Amazônia e se deram conta da situação precária da Igreja na Amazônia, em todos os sentidos. Surgiu o projeto “Igrejas Irmãs” para despertar a solidariedade entre as dioceses ou regionais. O saudoso Dom Estêvão Cardoso Avelar (+ 3.12.2009)[13], em entrevista coletiva à Imprensa comunicou que o episcopado brasileiro incentivaria um programa de ajuda mútua entre as dioceses brasileiras: “Aquelas que têm maiores recursos colaboram com as menos favorecidas. Todas as dioceses, ainda que pobres, sempre podem contribuir em favor de outras mais pobres.” [14]
Foi uma iniciativa louvável, mas o que as Igrejas da Amazônia esperavam apenas parcialmente se realizou. A euforia inicial logo mais abrandou. Bem que Dom Paulo Moretto, então Bispo de Caxias do Sul, alertou: “Quando a ajuda missionária não é cultivada por um relacionamento fraterno, mútuo e gratúito, o esquecimento e a fadiga vão tomando o lugar da solidariedade. Sobra um fio de vida, mas já não há vitalidade. Se a ajuda missionária for adiada até o dia em que todas as comunidades locais de uma diocese são atendidas como merecem, então seguramente não chegará nunca o momento de uma real e generosa colaboração”[15].
Desde essa advertência de dom Paulo Moretto já se passaram vinte anos. Com a quase total ausência de vocações missionárias nas ordens e congregações com sede na Europa ou na América do Norte, os bispos da Amazônia começaram finalmente investir mais em vocações autóctones e esse empenho conseguiu mudar significativamente a percentagem do clero diocesano em relação ao clero proveniente de outros países. Mas, devido as grandes migrações para a Amazônia e, com isso, o vertiginoso crescimento populacional, o número de presbíteros é pra lá de insuficiente. Interessante é constatar que nas cidades ribeirinhas mais antigas o número de católicos se mantém em até mais de 70%, enquanto nas paróquias fundadas mais recentemente, integradas majoritariamente por migrantes, a presença de comunidades evangélicas se torna cada vez mais significativa e em alguns casos ultrapassa a metade da população.
Outra reunião dos bispos da Amazônia teve até repercussão internacional. Foi o encontro de Icoaraci de 1990[16]. Os bispos queriam partilhar “uma preocupação que nos atinge a todos: a destruição do meio ambiente na Amazônia”. Chamam de “semeadores de morte” os que “agridem de forma violenta e irracional a natureza, destruindo as florestas, envenenando os rios, poluindo a atmosfera e matando povos inteiros”. Questionam os grandes projetos “que causam danos irreparáveis”, madeireiras e mineradoras, barragens e hidrelétricas, a construção de novas estradas que tem como “efeito imediato uma migração incontrolável e uma corrida desenfreada às terras disponíveis”. “A sangria da Amazônia já chega ao extremo e a criação de Deus geme no estertor da morte” deploram os bispos no documento “Em defesa da Vida na Amazônia”[17]. Sentem sua responsabilidade profética de vir a público e denunciar tanto os males que afligem a região como os responsáveis por estes males e os mecanismos que podem redundar em um irremediável desastre ecológico com conseqüências que tornam-se “catastróficas para todo o ecosistema e ultrapassam, sem dúvida, as fronteiras do Brasil e do Continente”. O documento é uma inequívoca denúncia, mas, ao mesmo tempo, uma vigorosa profissão de fé no Deus da Vida que “não fez a morte nem tem prazer em destruir os viventes” (Sb 1,13).
Os bispos da Amazônia – é o mínimo que se pode afirmar – foram os primeiros da Igreja do Brasil a demonstrar sensibilidade ecológica e tornaram-se pioneiros na defesa do meio-ambiente. Esse apelo repercutiu nos dias 23 e 24 de maio de 1990 em Assis (Itália) como proposta de um Manifesto Ecológico chamado de “Grito da Igreja em defesa da vida na Amazônia“. Toda essa problematica é também um dos objetivos do Sínodo para a Pan-Amazônia.
“A Amazônia é nossa” – Um Sínodo para a Pan-Amazônia.
No domingo, 15 de outubro de 2017, o papa Francisco se dirigiu aos fiéis e peregrinos reunidos na Praça de São Pedro no Vaticano e anunciou a convocação de uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazônia: “Atendendo o desejo de algumas Conferências Episcopais da América Latina, assim como ouvindo a voz de muitos pastores e fiéis de várias partes do mundo, decidi convocar uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica. O Sínodo será em Roma, em outubro de 2019. O objetivo principal desta convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da crise da Floresta Amazônica, pulmão de capital importância para nosso planeta”.
Desde então as comunidades da Amazônia se reuniram para responder a um questionário distribuído largamente junto com um texto introdutório que seguiu o esquema VER – DISCERNIR – AGIR. O papa não quis apenas uma análise científica de conjuntura, mas insistiu que o povo falasse, expressasse e à viva voz suas “alegrias e esperanças, tristezas e angustias”[18]. O tradicional VER se torna mais um ESCUTAR. Na recente Constituição Apostólica “Episcopalis Communio” o Papa Francisco requer que o Sínodo dos Bispos seja “um instrumento privilegiado de escuta do Povo de Deus”.[19]
O papa quer saber o que o Povo de Deus pensa sobre “as ameaças e dificuldades para a vida, o território e a cultura; sobre as aspirações e desafios dos povos amazônicos em relação à Igreja e ao mundo; que esperança oferece a presença da Igreja às comunidades amazônicas para a vida, o território e a cultura; como a comunidade cristã pode responder ante a situações de injustiça, pobreza, desigualdade, violências (droga, exploração sexual, discriminação dos povos indígenas, migrantes etc.) e de exclusão.”
Apenas 70 % das comunidades na Amazônia brasileira têm a graça de participar da celebração eucarística três a quatro vezes ao ano. A Eucaristia, em vez de ser “a fonte e o ápice de toda a vida cristã”[20] se torna um ato litúrgico de exceção, “coisa de padre”, quando ele aparece algumas poucas vezes durante o ano. Por isso o Conselho Pré-Sinodal, de que tenho o privilégio de fazer parte, formulou a pergunta ao povo de Deus: “Um dos grandes desafios pastorais da Amazônia é a impossibilidade de celebrar a Eucaristia com frequência e em todos os lugares. Como responder a essa situação?”
Outra importante questão para o Papa é o papel dos leigos, especialmente das mulheres. Por isso os questionamentos: Como reconhecer e valorizar o papel dos leigos nos diferentes âmbitos pastorais (nos campos catequéticos, litúrgicos e sociais)? A participação das mulheres em nossas comunidades é de suma importância. Como reconhecer e valorizar essa participação no horizonte dos novos caminhos?”[21]
O resultado dos inúmeros encontros de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, povo do campo e da cidade, até evangélicos, foi sintetizado primeiro por região e depois em nível de toda a Amazônia. A síntese das sínteses foi enviada para a Secretaria Geral do Sínodo no Vaticano. O povo falou realmente e deu sua opinião sobre o papel da Igreja nesta macrorregião. E essas contribuições das diversas comunidades são a base para a elaboração do Manual de Trabalho que servirá ao próprio Sínodo em outubro deste ano.
Todo esse movimento nas comunidades cristãs ficou mais ou menos despercebido fora da Amazônia. Além das Igrejas Particulares na Amazônia, o Sínodo não parecia ser tema interessante para o Brasil como um todo. Havia até gente que se perguntava: Para quê um Sínodo só para uma região? Essa falta de interesse em outras partes do país de repente cessou devido a uma onda de reações e questionamentos em nível nacional e internacional.
O que é que aconteceu? Quem gerou toda essa tão imprevista virada? Quem ajudou o Sínodo para a Amazônia tornar-se assunto de primeira página de jornais e de manchetes nos noticiários dos diversos canais de televisão? Foi o excelentíssimo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) general Augusto Heleno com seu pavor de que toda essa movimentação nas comunidades amazônicas poderia afetar a “soberania” nacional[22]. O GSI acordou tarde para “neutralizar isso aí”. Naquelas alturas, as respostas aos quesitos já estavam a caminho do Vaticano. Agora, fazer o quê? Fogo no telhado da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). O governo não hesitou em expor-se ao ridículo quando pediu uma intervenção do Governo Italiano no Sínodo[23]. Pondera o ministro-chefe do GSI: “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”.
O Sínodo será ao mesmo tempo a implementação da Encíclica “Laudato Sì” que fala explicitamente: “Há lugares que requerem um cuidado particular pela sua enorme importância para o ecossistema mundial, ou que constituem significativas reservas de água assegurando assim outras formas de vida” (37). “Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazônia e a bacia fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorar” (38).
A “Laudato Sì” não esqueceu os povos aborigenes. Escreve o Papa Francisco: “É indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projetos que afetam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem econômico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativistas e agropecuários que não dão a devida atenção à degradação da natureza e da cultura” (146).
Nunca, na história dos Sínodos os povos originários receberam uma atenção e afeição tão peculiares. No Sínodo para a Amazônia os indígenas sairão do “apartheid” a que desde há séculos foram banidos pela sociedade majoritária. Deixarão de ser considerados “supérfluos” e “descartáveis”[24]. Ocuparão de repente a atenção especial de um Sínodo dos Bispos em nível mundial.
O Sínodo será celebrado no Vaticano para assim manifestar que os temas tratados não são apenas assuntos que interessam aos países que compõem a Amazônia, mas abrangem o mundo inteiro.
Naturalmente o Sínodo não tratará apenas da questão indígena embora os povos indígenas devam receber um enfoque especial por causa da ameaça de extinção que paira sobre muitos deles por causa do desrespeito às suas terras ancestrais. Em 8 de março de 2018 o papa Francisco precisou o conteúdo do Sínodo “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integral”.
A convocação do Sínodo para a Amazônia tem seus “antecedentes”. O papa mesmo fala do “desejo de algumas Conferências Episcopais da América Latina”. Sem dúvida se refere como essas palavras também ao pedido dos 53 bispos presentes no II Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal[25] coordenado pela Comissão Episcopal para a Amazônia. Aí os bispos da Amazônia brasileira redigiram uma carta solicitando explicitamente a convocação de um Sínodo para a Amazônia.
Em seu discurso aos povos indígenas por ocasião de sua visita a Puerto Maldonado, Peru, em 19 de janeiro de 2018 o Papa mais uma vez explicou o que o Sínodo para a Amazônia irá tratar. Lamentou mais uma vez que “os povos da Amazônia nunca foram tão ameaçados nos seus territórios como agora” e desenvolveu os temas que constam da convocação feita em 15 de outubro de 2017. O que o papa quer, é dar à Igreja que está na Amazônia “um rosto amazônico” lembrando assim o intento dos bispos da Amazônia formulado já no Encontro de 1972 em Santarém.
Elenco alguns dos grandes desafios para a Igreja na Amazônia. Faço votos de que sejam realmente discutidos em outubro deste ano na aula sinodal no Vaticano:
- A valorização de leigas e leigos a serviço (ministério) de suas comunidades sem clericalizá-los.
- O papel da mulher como evangelizadora não só na família mas também nas comunidades e vigorosa defensora dos direitos humanos, com acesso ao diaconato;
- O carisma das ordens e congregações religiosas e sua inserção nas comunidades amazônicas;
- A busca de alternativas para enfrentar a ausência da Eucaristia em milhares e milhares de comunidades, quiçá descobrindo ao lado do tradicional um outro modelo de presbítero (não reservado apenas aos homens);
- O revigoramento das Comunidades Eclesiais de base como primeiro e fundamental núcleo das dioceses e prelazias;
- A inculturação dos sacramentos na vida dos povos originários e integração de expressões culturais autóctones na Liturgia;
- A conscientização e sensibilização de toda a sociedade brasileira em relação à defesa da Amazônia diante da voracidade de empresas que golpeiam e arrasam esse macro-bioma;
- A implementação da Encíclica “Laudato Sì” nas comunidades amazônicas;
- Um incentivo especial à pastoral urbana frente ao inchaço das cidades e o êxodo rural;
- O escasso uso de meios modernos de comunicação ou a ausência de equipamentos apropriados nas dioceses e prelazias.
Diante desses e outros desafios reitero o pedido do Papa aos bispos no Rio de Janeiro durante a Jornada Mundial da Juventude: “Nisto lhes peço, por favor, que sejam corajosos e tenham parrhesia[26]! No modo ‘porteño’ (de Buenos Aires) de falar, lhes diria que ‘sean corajudos’!”[27]
Belo Horizonte, 11 de março de 2019
[1] JMJ-Rio de Janeiro, Papa Francisco, Encontro com o episcopado brasileiro, 27.7.2013.
[2] cfr. Rodolfo Ferreira Alves Pena da Universidade Federal do Paraná em: https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/geografia/rios-voadores.htm
[3] Ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do Governo Bolsonaro.
[4] Na Amazônia a época das chuvas, entre os meses de novembro/dezembro até abril/maio, é chamado de inverno.
[5] Município fundado em 1988 na Rodovia Transamazônica, emancipado do Município de Prainha PA. Na altura do Km 90 daquela rodovia foi implantada em 1973 uma agrovila dentro do Plano de Intergração Nacional. Hoje é Medicilândia.
[6] A área em que a Irmã Dorothy viveu tornou-se o município de Anapu apenas em 1995.
[7] Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM – foi fundada em 1966 pelo Presidente Castelo Branco para substituir a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia – SPEVEA. A partir de 1998 foram liberadas enormes somas para projetos na Rodovia Transamazônica. O desvio de quase 150 milhões nunca foi levado a julgamento. Em 24 de agosto 2001 o Presidente Fernando Henrique Cardoso a extinguiu.
[8] Art.231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
- 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos Índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos costumes e tradições.
- 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos Índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
- 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
- 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
- 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
- 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto as benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
- 7º Não se aplica as terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º.
Art.232 – Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindoo Ministério Público em todos os atos do processo.
[9] ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS: Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
[10] Folha de São Paulo, Secção Poder, Artigo de Sarah Mota Resende, 5.11.2018.
[11] “Em mensagem que se dignou enviar ao povo brasileiro, em outubro do ano passado nosso Pontífice e Amigo, Paulo VI colheu nos lábios de Maria o feliz preceito das bodas de Caná: ‘Fazei tudo o que ele vos disser’ e perguntou: ‘Que é que eles nos diz agora? Ele, aponta para Amazônia’.” (Documento de Santarém, 1972, Conclusões, n. 51).
[12] A constituição dogmática “Lumen Gentium” fala no Capitulo II (n. 9 a 17) de “O Povo de Deus” e somente depois no Capítulo III (n. 18 a 29) da “Constituição hierárquica da Igreja” para em seguida no Capítulo IV (n. 30 a 38) novamente tratar dos Leigos.
[13] Na época bispo-prelado de Marabá, PA, posteriormente de 1978 a 1992 bispo de Uberlândia, MG.
[14] Cfr. Comunicado Mensal n. 400 de 31 de maio de 1986. p. 709: “Corresponsabilidade entre as Igrejas”.
[15] Depoimento de Dom Nei Paulo Moretto na 36ª Assembleia da CNBB, dia 30 de abril de 1998.
[16] Os bispos dos Regionais Norte I e Norte II reuniram-se na Casa Monte Tabor em Icoaraci, um dos oito distritos da Capital Paraense Belém de 13 a 15 de fevereiro 1990.
[17] Comunicado Mensal da CNBB, n. 438, janeiro/fevereiro de 1990, p.100 ss.
[18] Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” sobre a Igreja no Mundo de Hoje, n.1.
[19] Papa Francisco, Constituição Apostólica “Episcopalis Communio” sobre o Sínodo dos Bispos, de 15 de setembro de 2018: “O Bispo que vive no meio dos seus fiéis mantém os ouvidos abertos para escutar “o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2, 7) e a “voz das ovelhas”, também através daqueles organismos diocesanos que têm a tarefa de aconselhar o Bispo, promovendo um diálogo leal e construtivo. Também o Sínodo dos Bispos deve tornar-se cada vez mais um instrumento privilegiado de escuta do Povo de Deus: ‘Para os Padres sinodais, pedimos, do Espírito Santo, antes de mais nada o dom da escuta: escuta de Deus, até ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo, até respirar nele a vontade de Deus que nos chama’” (n. 5 e 6).
[20] Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática “Lumen Gentium” sobre a Igreja, n.11.
[21] Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral, Documento Preparatório, Cidade do Vaticano, 2018.
[22] “Não vou me meter na Amazônia colombiana, eles fazem o que eles quiserem. Na Amazônia peruana eles fazem o que eles quiserem, desde que o que for feito não afete a integridade ecológica da nossa Amazônia”, disse o general no velório do jornalista Ricardo Boechat, em São Paulo. “O Brasil não dá palpite no deserto do Saara, na Floresta da Ardenas, no Alasca, cada país cuida da sua soberania. Eu estou preocupado que o sínodo não entre em assuntos que são afetos a soberania.” Cfr. Money Times, Política, 12.2.2019.
[23] “Como parte de uma estratégia para combater a ação do que chama de “clero progressista”, o Palácio do Planalto recorrerá à relação diplomática com a Itália, que vive um bom momento desde o esforço do presidente Jair Bolsonaro para garantir a prisão de Cesare Battisti. A equipe de auxiliares de Bolsonaro tentará convencer o governo italiano a interceder junto à Santa Sé para evitar ataques diretos à política ambiental e social do governo brasileiro durante o Sínodo sobre Amazônia, que será promovido pelo papa Francisco, em Roma, em outubro.” Tânia Monteiro em O Estado de São Paulo, 11 de fevereiro 2019.
[24] cfr. Documento de Aparecida, n. 65.
[25] Belém, Icoaraci, 4 a 16 de novembro de 2016.
[26] O termo “parrhesia“ é usado no Novo Testamento principalmente nos Atos dos Apóstolos, mas tem sua origem na antiga literatura grega, de modo especial em Eurípides. É composto por “” + “e” que significa literalmente “toda a palavra”. Parrhesia é assim a decisão corajosa de dizer “tudo”, “toda a verdade” sem reter ou esconder nada. Há várias traduções. Somente todas juntas conseguem dar o verdadeiro sentido da palavra “parrhesia”: intrepidez, ousadia, firmeza, audácia, destemor, coragem, fidúcia, confiança, paixão, ardor, fervor. Cfr. At 4,13; 4,29; 4,31; 9,27; 13,46; 14,3; 19,8; 26,26; 28,31.
[27] JMJ-Rio de Janeiro, Papa Francisco, Encontro com o episcopado brasileiro, 27.7.2013.