*Professora Márcia Oliveira

A Amazônia, vasto território de riquezas e biodiversidade, é também uma terra sem lei para milhares de vítimas do tráfico de pessoas. As fronteiras permeáveis e negligenciadas tornaram-se corredores seguros para redes criminosas que exploram mulheres, crianças e adolescentes, muitas delas de origem indígena. A ausência de políticas públicas eficazes, a falta de vigilância e a interrupção de planos de enfrentamento ao tráfico humano desde 2016 apenas agravaram o problema.
Os dados são alarmantes. Apenas em 2024, pesquisas universitárias na região amazônica indicaram a ocorrência de quase mil casos relacionados ao tráfico de pessoas. Um número subestimado, pois a maioria das vítimas sequer reconhece sua condição ou tem medo de denunciar. O Estado, que deveria proteger, torna-se um cúmplice silencioso por omissão.
Os casos recentes são brutais. Quatro adolescentes, entre 15 e 17 anos, foram resgatadas de um esquema de exploração sexual em Letem, na Guiana. Três delas eram de Boa Vista, Roraima, e uma de Santa Catarina. A investigação mostrou que essas meninas foram traficadas para atender a elites econômicas da região. Se não fosse a denúncia da mãe de uma das meninas e a parceria entre a Polícia Federal brasileira e a Agência de Enfrentamento ao Tráfico da Guiana, talvez nunca tivessem sido encontradas.
A situação é ainda mais dramática nas comunidades indígenas. Em visita à fronteira Brasil-Venezuela, representantes da Comissão Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da CNBB encontraram crianças sendo aliciadas para trabalho análogo à escravidão em garimpos clandestinos. Meninas indígenas estão sendo levadas de cidades como Iramutã e Bonfim para serviço sexual em garimpos do lado guianense, agora ocupados por brasileiros que migraram da Terra Indígena Yanomami após ações de repressão ao garimpo ilegal.
Ocorrem festas em que aliciadores levam crianças e adolescentes do Uiramutã para serem ali oferecidas nessas festas, que são oferecidas aos garimpeiros. Então, são grandes empresas que patrocinam esses eventos de lazer, e que fazem a circulação, promovem, ou bancam, patrocinam a circulação dessas crianças e adolescentes para servirem de atração nesses festejos para os garimpeiros.
Há um mercado que tem demandado essa categoria de pessoas e as redes têm se esforçado para abranger essas pessoas e engatá-las nos processos de tráfico humano e de exploração sexual comercial.
O tráfico de pessoas na Amazônia não é um acaso. Ele se alimenta da conivência estatal, da desarticulação entre países fronteiriços e da ausência de planos de enfrentamento que garantam prevenção, repressão e assistência às vítimas. A Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal têm desempenhado um papel fundamental, mas seus esforços são limitados diante da imensidão do problema e da falta de apoio estrutural.
Se o Brasil quer, de fato, combater o tráfico humano, precisa retomar e ampliar suas políticas de enfrentamento, garantir a vigilância efetiva de suas fronteiras e estreitar as parcerias internacionais para a repressão dessas redes. O silêncio do Estado é um grito de impunidade para os criminosos e uma sentença de abandono para milhares de vítimas.
O tráfico de pessoas nas fronteiras da Amazônia não é apenas um problema local; é uma questão que exige uma abordagem global, com a colaboração de todos os países envolvidos e com a mobilização de toda a sociedade. A inação ou a resposta insuficiente a esse grave problema é, em si, uma forma de perpetuar a exploração, a violência e a escravização de pessoas, muitas das quais pertencem às populações mais vulneráveis da sociedade. A geopolítica de fronteiras, portanto, não pode ser usada como justificativa para a omissão ou a negligência. O combate ao tráfico de pessoas precisa ser uma prioridade política, social e humana.
Não podemos mais fingir que não vemos. A Amazônia é o coração do Brasil, mas suas veias estão pulsando tráfico humano, exploração e dor. Quem vai responder por isso?
*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em gênero, identidade e cidadania; Cientista social, licenciada em Sociologia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônia (REPAM-Brasil) e da Cáritas Brasileira.