NotíciaTuire Kayapó durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro de 2023. Todo ano a liderança percorre mais de 1.110 quilômetros até Brasília, para participar das mobilizações e lutar pela floresta em pé 📷 Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA

Por Melillo Dinis do Nascimento
Advogado do Instituto Kabu e Assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil)

Ela me pediu para sentar em um dos recantos do Acampamento Terra Livre. Brasília. Abril de 2023. Sentamos numa espécie de roda. O Dudure estava mais falante desta vez. Eu brincava com ele e com a Tuíre. O tema de sempre. Se ele tinha medo de facão? Quem mandava em casa? Mas na verdade a brincadeira era mais para diminuir a saudade e esconder a tensão. ATL é sempre um momento duro. Mesmo a alegria de tantos reencontros e de tanta gente fina, elegante e sincera não me impede da ocupação e da preocupação. No acampamento eu estou ligado no plantão jurídico de sempre. Ossos do ofício. Ficamos ali falando das pinturas (deles) e das cicatrizes (minhas). Falamos de futuro, esta morada privilegiada da incerteza. Tiramos algumas fotos. O Dudure, apelido do seu companheiro, na verdade Takakto Kayapó, me perguntou quando eu ia ao Pará. Não sei ainda. Eu contei para eles sobre meu neto. Ela perguntou se parecia comigo. Eu disse que eu era mais bonito e ela riu muito, com os toques da fina ironia de quem sabe que somos uma edição estragada de nossos descendentes. Ficamos mais um pouco por ali. Depois, a correria de sempre.
Em 2024, depois de seu diagnóstico, falamos duas vezes por telefone. Uma outra com o Dudure. Eles estavam sempre esperando. E agora a Tuíre ancestralizou.

Tuire Kayapó durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro de 2023. Todo ano a liderança percorre mais de 1.110 quilômetros até Brasília, para participar das mobilizações e lutar pela floresta em pé 📷 Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA

Tuire Kayapó durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro de 2023. Todo ano a liderança percorre mais de 1.110 quilômetros até Brasília, para participar das mobilizações e lutar pela floresta em pé 📷 Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tuíre Kayapó era da minha família. Kayapó. Mebêngôkre. A conheci pelos jornais e pela televisão. Ela protagonizou uma cena que ficou mundialmente conhecida durante o Encontro das Nações Indígenas do Xingu de 1989, quando pressionou um facão no rosto do então presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz. Assunto: Belo Monte. Motivo: heroico, de luta e resistência! Dizem que ela parou a obra. Pelo menos por um tempo: 10 anos. Depois, os kuben decidiram atropelar a todos. Mas ficou ali. Marcado o ato de Tuíre. Tinha 19 anos. Mais nova que eu. Era muito mais forte que eu.
Estava em Redenção. O câncer a atingiu. Ela ancestralizou. Eu tinha dito que iria ao Pará, passaria por perto dela, talvez fosse na aldeia onde morava, a Gorociré, na Terra Indígena Kayapó. Que vontade de estar no Pará. Minha tia ancestralizou e eu não tive a decência de visita-la antes. Tia por conta dos intricados parentescos reais e, no meu caso, simbólico, de uma linha ancestral que tenho a alegria de chamar de minha família Kayapó.
Chorei muito quando da notícia. Guardei uns dias de luto, ao contrário de uma funda tradição de (cinco/sete) dias para todos e de pelo menos um ano para a família mais próxima, como os filhos e esposo. Enxuguei as lágrimas no domingo. Há um céu Kayapó. Rezei por ela. Eu sinto que a Tuíre vai ficar mais um tempo com a gente, pertinho e com o seu facão. Vai nos dar ainda mais força para continuar na luta. Além de seu exemplo.
Não consegui fazer um tempo maior de lembranças e de celebração. Estou ligado no plantão jurídico de sempre. Ossos do ofício. E algo me diz que a Tuíre iria querer que transformássemos o luto em luta! Não tem jeito. Somos filhos da luta. Tuíre agora é ancestral. E todos nós somos dela agora parte enquanto estivermos a lutar por melhores tempos.

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