“Cortaram nossos galhos, mas não arrancaram nossas raízes, por isso somos a resistência Mura”. Com essa certeza e manifestação de forca e coragem, indígenas do povo Mura realizaram, nos dias 30 e 31 de outubro e 1° de novembro, o VII Encontro do Povo Mura, na Aldeia Moyray, município de Autazes (AM).
O encontro teve como objetivos reafirmar e fortalecer a resistência do povo Mura em defesa de seus territórios e na luta pela demarcação de suas terras. Na ocasião, socializaram e debateram sobre as violações cometidas pela empresa Potássio do Brasil ao instalar seu empreendimento de mineração em território Mura sem consultar as comunidades, e pelo Conselho Indígena Mura (CIM), que tem se colocado institucionalmente a favor do empreendimento, mas sem a representatividade integral do povo Mura. O momento também objetivou a promoção de um diálogo mais aproximado com as diferentes organizações e lideranças do povo Mura que vivem secularmente na região do baixo rio Madeira.
Também houve destaques sobre a importância da preservação da cultura Mura, do ambiente dessa região que compõe o bioma amazônico e as políticas públicas de educação e saúde indígena nas aldeias.
Os participantes manifestaram preocupação com as pressões e ameaças sofridas por lideranças Mura
O evento contou com a participação de mais de 300 lideranças Mura dos munícipios de Autazes, Careiro da Várzea, Borba, Silves, Nova Olinda do Norte, Rio Preto da Eva, Beruri, Itacoatiara, Manaquiri, de organizações indígenas de diferentes povos do estado do Amazonas, instituições indigenistas, de estudantes universitários e órgãos governamentais.
No debate sobre a posição do CIM, os participantes manifestaram preocupação com as pressões e ameaças sofridas por lideranças Mura, como já denunciado ao MPF e à imprensa.
“É preocupante que lideranças indígenas sejam pressionadas e ameaçadas por empresas ou governos interessados em explorar seus territórios. Além disso, é inaceitável que o Conselho Indígena Mura, que deveria defender os direitos dos povos indígenas, esteja atuando em favor de interesses empresariais que ameaçam a vida e a cultura dessas comunidades. O CIM era para defender as causas indígenas e não causas da mineração”, disse a professora Amélia Mura, da Aldeia Murutinga, propondo a criação de novas organizações de representação dos Mura, “ou até mesmo uma federação”, sugeriu.
“Eu acompanho essa questão da mineração desde o ano de 2009. Há pressão, ameaças feitas, hoje lutamos contra a organização CIM”
Rony Braga Mura, da aldeia Murutinga ressalta: “eu acompanho essa questão da mineração desde o ano de 2009. Há pressão, ameaças feitas, hoje lutamos contra a organização CIM, nos desligamos devido termos vergonha de ser representado por essa organização”, lamentou.
Depoimentos como esses, da professora Amélia e de Rony, despertaram debate entre os participantes sobre um possível desligamento do CIM “por vergonha” de serem representados por uma organização que não defende seus direitos ao território e de proteção ao mesmo. A situação mostra a necessidade de uma reflexão profunda sobre os processos de representatividade e liderança dentro das comunidades. Também avaliaram que é preciso garantir a autonomia e a participação efetiva dos povos indígenas nas decisões que afetam suas vidas e seus territórios, e isso passa pela capacitação e formação de lideranças comprometidas com a defesa dos direitos humanos e da natureza.
A coordenação do CIM afirma que o povo Mura quer a mineração porque ela vai trazer desenvolvimento do povo, portanto “os Mura aceitam a continuidade do Projeto Potássio em Autazes”. Mas, as várias manifestações do povo Mura que vive nas diversas localidades da região são unânimes em dizer, reafirmando o que já vem denunciando na imprensa nos últimos anos, que essa posição não representam suas opiniões e reafirmaram que a maioria do povo não está de acordo com o empreendimento minerário em seu território.
“É preciso que as pessoas se sintam amparadas judicialmente, mas principalmente que tenham representantes legítimos que correspondam com suas necessidades enquanto coletivo”
Em um breve histórico sobre o povo Mura, o professor de história, William Mura, mostrou as ilegalidades que a empresa Potássio do Brasil vem fazendo ao longo dos anos, e que essas ilegalidades chegaram “ao ponto de dividir o povo e corromper lideranças”, constatou indignado.
Visto que a atual coordenação do CIM não tem representado os direitos dos povos indígenas, os participantes abriram a discussão voltada para a criação de uma nova organização, e que, dessa vez, realmente represente os anseios, necessidades e direitos do povo Mura.
Para contribuir com esse debate, que teve como tema orientador “os aspectos do processo de mineração em terras indígenas e criação da organização da resistência”, foi convidado o assessor jurídico dos indígenas Mura que resistem à entrada do empreendimento em seu território, Dr. Rafael Campos.
O assessor falou das formalidades e da legitimidade sobre a criação de uma organização onde as pessoas se sintam realmente representadas: “é preciso que as pessoas se sintam amparadas judicialmente, mas principalmente que tenham representantes legítimos que correspondam com suas necessidades enquanto coletivo”, orientou. Ele também falou sobre a importância das parcerias de instituições e órgãos de governo que atuam junto aos povos, apoiando as comunidades com informações precisas e corretas para defesa dos direitos indígenas.
Resistência pela vida
“Graças aos nossos ancestrais, à oração dos nossos anciões, ainda não tombou nenhuma liderança indígena aqui. Mas o que está esperando a justiça? Esperar que um de nós tombe para tomar providência? É isso que está faltando? Mais derramamento de sangue? ”, cobrou indignado Herton Mura, assessor técnico da Organização de Lideranças Indígenas de Careiro da Várzea (Olimcv).
Os indígenas participantes do VII Encontro do Povo Mura afirmaram que vão continuar resistindo e não permitirão que empreendimentos de qualquer natureza se estabeleça “em sua casa”. É pela continuidade de suas vidas e existência, pela demarcação do território que ocupam há mais de 200 anos. Com essa certeza seguem o lema “resistir para existir” e o debate seguiu com depoimentos sobre o conceito e o significado da palavra “resistir”.
“Resistência para mim é a sobrevivência do nosso povo, é defender o nosso território”
Edson Mura, coordenador da Olimcv defendeu que resistir é uma questão de sobrevivência, pois é o que os povos originários vêm fazendo desde que os colonizadores chegaram. “Resistência para mim é a sobrevivência do nosso povo, é defender o nosso território, porque a gente, como povo originário, depende do nosso território, depende dos nossos rios, dos nossos peixes. Então, isso para mim é válido. Isso é resistência. Resistir para existir, como diz o nosso lema, o povo Mura, não só Mura, mas de todos os povos”.
Para Milena Mura, presidente da Organização das Mulheres Mura, resistência é “luta pelos nossos direitos, direitos das mulheres, direitos dos jovens, direitos dos anciãos, direito a defender o nosso território, a mãe natureza. Hoje tudo isso significa resistência. Cortaram nossos galhos, mas nunca irão arrancar nossas raízes”, afirmou convicta.
“Tudo aquilo que nós podemos fazer para que a gente possa ser reconhecida como uma origem do nosso Brasil. Eu como indígena posso falar sobre resistência nessas questões em que o meio ambiente está sendo agredido e está nos atingindo, tanto nas nossas calhas de rio, como também nas nossas terras. Estamos perdendo a nossa casa, o nosso alimento, o nosso futuro, o usufruto que a Mãe Terra pode nos oferecer”, afirmou o técnico em enfermagem Geraldo Mura, da Aldeia Santo Antônio, de Careiro da Várzea.
“Hoje o que nós estamos lutando vai ficar para os nossos filhos, para os nossos netos e aqueles que vêm depois de nós, que vão nos suceder”
Com palavras de gratidão pela força da resistência demonstrada no evento, Naldo Mura, presidente do Instituto Indígena Mura Ajuricaba, lembra que a luta é para garantir o futuro das novas gerações. “Hoje o que nós estamos lutando vai ficar para os nossos filhos, para os nossos netos e aqueles que vêm depois de nós, que vão nos suceder. Mas sou grato porque estamos reunidos com o povo de vários municípios aqui no nosso município de Autazes. Eu sou grato por essa resistência, resistência significa viver, melhoria do nosso povo, saúde, sobrevivência de nossos filhos e netos viverem por muitos anos”, disse esperançoso o líder do Instituto que leva o nome de outro líder – Ajuricaba – que resistiu à invasão portuguesa, em Manaus.
O professor indígena e presidente da Organização dos Professores Indígenas Mura (Opim), Mariomar Mura, resiste para que, no futuro, a cultura Mura permaneça viva. “Nós estamos lutando para que, no futuro, nossos filhos, nossos netos, bisnetos tenham o seu território, tenham sua terra para plantar, para trabalhar sua cultura material e imaterial, porque para nós, povos indígenas, a importância do nosso território é a coisa maior que nós temos, o nosso bem patrimonial maior”, assegura.
O Agente Indígena de Saúde (AIS) da Aldeia Soares, Sergio Freitas, concorda com esse significado. “A resistência para nós, povos indígenas, é uma luta pela vida, pelo território, pela nossa ancestralidade, pelo nosso futuro, pelas nossas crianças, pelos nossos jovens, por toda a população que precisa de território, de saúde, de educação”, ratifica.
A presença de tantas lideranças Mura e de representantes de outros povos indígenas do Amazonas mostrou que a resistência Mura inspira outras lutas em defesa dos direitos humanos e da natureza, e deve ser apoiada por toda a sociedade que se preocupa com um futuro sustentável e justo.
Ao se pronunciar, o indígena Aldenir Apurinã, representando seu povo do município de Manaquiri (AM), disse que a resistência Mura fortalece toda a luta indígena. “Muito das nossas histórias estão sendo destruídas. Lutamos para que isso não aconteça mais, que a gente possa resistir. Essa empresa que está querendo entrar no município de Autazes, eles querem é destruir [a natureza e os povos]. A gente sabe que isso daí pode causar muitos danos municipais, estaduais e até internacionais. E hoje nós estamos aqui na resistência e queremos que os outros parentes venham junto pra nos fortalecer cada dia, cada segundo”, conclamou.
A resistência permanece
A luta pela demarcação das terras indígenas é fundamental para a garantia dos direitos dos povos indígenas e para a preservação da floresta amazônica, que é um patrimônio natural e cultural do Brasil e do mundo. É por essa importância toda que empresas como a Potássio do Brasil devem ser responsabilizadas pelos danos ambientais e sociais que vem causando com seus empreendimentos na região amazônica e é preciso repensar modelos de desenvolvimento que não coloquem em risco a vida e o bem-estar das comunidades indígenas e tradicionais, concluem os participantes do encontro.
Nesse sentido, a resistência do povo Mura é também pela preservação da Amazônia e de todo o planeta. É preciso que a sociedade como um todo apoie a luta dos povos indígenas, respeitando suas tradições e seu conhecimento ancestral e reconhecendo a importância de manter a biodiversidade e os ecossistemas da região amazônica.
Diga a juventude que avance
No Encontro, a participação da juventude foi fundamental para se discutir a continuidade da luta dos povos indígenas, especialmente no contexto atual de intensificação das ameaças e violações aos seus direitos. A juventude traz uma energia renovada e um olhar crítico sobre os desafios enfrentados pelas comunidades indígenas, contribuindo para a construção de estratégias de resistência e para a valorização da cultura e dos saberes tradicionais. Além disso, a participação ativa da juventude nos Encontros dos povos indígenas é um sinal importante de que as lideranças estão conseguindo incentivar a mobilização e a organização das novas gerações em defesa de seus direitos e de sua identidade cultural.
Essa convicção vem se consolidando em eventos em defesa dos direitos indígenas nos últimos anos. O Acampamento Terra Livre (ATL), realizado todos os anos em Brasília, expressa a unidade da resistência dos povos indígenas brasileiros e tem mostrado a amplitude da participação da juventude indígena, como apresenta a reportagem do site Sumaúma sobre o ATL de 2023.
No VII Encontro do Povo Mura não foi diferente. A participação da juventude Mura foi expressiva e atuante por meio da Juventude Indígena Mura (JIM), que reúne jovens de todas as comunidades da região.
A JIM criou a Rede de Comunicadores e Comunicadoras Mura, que atuaram, pela primeira vez, durante o Encontro
Com o propósito de “divulgar as histórias e realidades vividas pelos povos indígenas”, a JIM criou a Rede de Comunicadores e Comunicadoras Mura, que atuaram, pela primeira vez, durante o Encontro. As lideranças mais velhas reconheceram e agradeceram a participação da juventude Mura. O professor e vice tuxaua da aldeia Moyray destaca a participação da juventude.
“Totalmente diferente dos outros encontros, tivemos muita participação dos jovens, e principalmente o avanço da criação da Rede de Comunicadores e Comunicadoras Indígenas. Com certeza, todos os assuntos debatidos, dialogados com os órgãos federais, indígenas e indigenistas, vão ser bem divulgados para nossos parentes e para a sociedade”, disse o tuxaua orgulhoso.
“Foi para melhorar a condicionalidade de como se encontra o nosso povo hoje e a união do nosso povo que vive em diferentes municípios [da região]. Então, foi atingida a nossa expectativa sobre o VII Encontro, principalmente porque a juventude mostrou a sua força. Nós já podemos vislumbrar que novas lideranças estão surgindo” concluiu manifestando esperanças.