Entrevista publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos
Depois do Sínodo para a Amazônia, em 2019, e da criação da Conferência Eclesial da Amazônia (Ceama), em 2021, instituiu-se uma comissão em vista da criação de um rito amazônico.
Em face da novidade que tal feito representa na história da Igreja, a entrevista a seguir compõe um quadro inicial de reflexões sobre a questão.
A conversa é com o monge beneditino Marcelo Barros, teólogo, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais, autor de 57 livros em português, 16 em italiano, alguns escritos na Itália e vários traduzidos em outros idiomas.
A entrevista é de Daniel Carvalho da Silva, doutorando em Ciências da Religião, enviada pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em nível de doutorado, Daniel pesquisa o presente tema e compõe a referida comissão.
Nota do entrevistado: as respostas não foram pensadas em vistas de uma publicação, que requer maior reflexão, mas sim respondendo às perguntas de um amigo.
Eis a entrevista.
1 – Querido irmão Marcelo Barros, é conhecida a importância dos beneditinos para o Movimento Litúrgico no mundo. Bastaria recordar grandes nomes como Guéranger, Beauduin e Casel, que precederam e, em boa medida, sugeriram caminhos à reforma conciliar empreendida pelo Vaticano II na década de 1960. Ademais, também em solo brasileiro, as pesquisas e o labor de beneditinos como Ione Buyst e Clemente Isnard deram contribuições enormes para a recepção e a efetivação dos postulados da Sacrosanctum Concilium e da restauração dos rituais que a sucederam.
Conhecemos, além disso, seu empenho pessoal em favor de uma liturgia mais popular e vinculada à vida real e concreta das comunidades. Podemos citar sua colaboração para organizar, a partir das formações propostas para os encontros intereclesiais das CEBs, um grupo de pesquisa e assessoria em liturgia que tornasse acessível aos leigos e leigas o conhecimento do tesouro da tradição litúrgica cristã: a Rede Celebra.
Antes, você já havia, ao lado de outros como Penha Carpanedo, Reginaldo Veloso e Michel de Taizé, apresentado à Igreja do Brasil uma versão popular da Liturgia das Horas: o Oficio Divino das Comunidades. Tudo isso demonstra, de modo macro, o zelo que a tradição beneditina tem de, nas palavras do Papa, “mais manter vivo o fogo, do que conservar as cinzas” (Querida Amazonia, n. 66); e, de modo micro, evidencia seu labor pessoal sempre comprometido com a encarnação de uma liturgia viva no chão da vida do povo de Deus.
Diante do exposto, acreditamos que você não esteja alheio aos acontecimentos que criaram as condições para que, no presente momento, haja uma comissão, vinculada à Conferência Eclesial da Amazônia – criada pelo Papa Francisco em 2020 – com o intuito de apresentar à Igreja romana a proposta de um rito amazônico. Sem nos delongar ainda em detalhes deste processo, coisa que faremos posteriormente, gostaríamos que respondesse a duas perguntas:
A – Quais suas impressões sobre a proposta de um rito inculturado amazônico?
Minha primeira impressão é que esta proposta de um rito amazônico ainda seja de uma minoria de padres e agentes de pastoral. O povo não entrou ainda nessa discussão e a maioria dos padres, bispos e agentes de pastoral, ao contrário, se identifica com a cultura europeia (romana) e de 1990 para cá se tornou mais romano e gosta mais do devocionalismo barroco dos séculos XVIII e XIX que, a partir da nova teologia e eclesiologia do Concílio Vaticano II, a geração dos anos 60 jogou na lata de lixo da história. A partir dos anos 90, os padres e grupos de movimentos integralistas e de direita que João Paulo II apoiou e estimulou encheram as paróquias com esses penduricalhos piedosos absolutamente inconsistentes no plano da teologia e da fé, mas que hoje são a menina dos olhos da pastoral em muitas dioceses e paróquias. Com esta realidade, não vejo como propor um rito amazônico. Nem o rito romano do Concílio Vaticano II eles seguem.
Tomam o ritual das rubricas do Concílio (rito de Paulo VI) e os textos do atual Missal Romano, mas os celebram com o espírito do Concílio de Trento e até pior porque misturado com as devoções barrocas que depois do Vaticano II a Igreja já tinha deixado. Um amigo padre me contou que na paróquia na qual ele chegou agora como colaborador, em cada missa, há pelo menos dez coroinhas vestidos com túnica vermelha, crianças de até cinco ou seis anos de idade e que têm cursos para coroinha, como se curvar diante do padre, como passar diante do altar, como segurar o livro e assim por diante. Por acaso, um padre que preside este ritual ridículo de corte medieval estaria interessado em um rito amazônico que expresse a vida, as dores e esperanças do povo de hoje?
A base de um rito é a cultura da comunidade que celebra. O Sínodo da Amazônia propôs uma “amazonização” da Igreja. Sem isso, que sentido teria um rito amazônico? Ora, o que vemos na maioria das dioceses e paróquias, mesmo na Amazônia mais profunda, é uma romanização cada vez maior. O Papa Francisco propõe a Sinodalidade, que supõe igrejas locais com rosto próprio. Onde estão essas igrejas?
Quantos padres negros ou indígenas pensam que devem ser mais romanos do que os nascidos na Itália? Acho que a única base possível de um rito amazonense seria a conversão cultural e ecológica das igrejas na Amazônia.
A formação de um rito não pode ser improvisada nem surgir de uma pesquisa acadêmica. O rito é como os sinais de comunhão em uma sociedade. Vem do costume, da tradição e podem ser colhidos, sistematizados e organizados, mas brota de um processo. Nesse sentido, teríamos de prestar atenção aos ritos populares das diversas culturas amazônicas. Uma liturgia se compõe de gestos, de ritos feitos com objetos e palavras que os acompanham. A atual liturgia romana se compõe de um imenso conjunto de ritos, alguns vindos das sinagogas judaicas dos primeiros séculos do cristianismo; outros, da antiga religião imperial romana, que o cristianismo quis substituir. Isso nos permite pensar que seria importante acolher gestos, ritos e símbolos das atuais culturas amazônicas, de origem cristã ou não.
B – De seu ponto de vista, qual a legitimidade/plausibilidade e/ou a justificativa para se incorporar, em um rito amazônico, expressões rituais da experiência de fé e das tradições religiosas dos povos da região?
Como já disse, a Liturgia das Igrejas (romana, orientais e outras) sempre fez isso. O rito da prostração veio de ritos pagãos, o rito da adoração da Cruz, na Sexta-feira Santa, é cópia da proskénese usada no mundo antigo oriental pelos rituais da corte para o imperador. O nosso tão conhecido cântico mariano do tempo da Páscoa, Regina Coeli, veio de um cântico à Rainha dos Céus, deusa celta dos séculos V e VI. Os paramentos que até hoje os padres usam nas missas e celebrações são todos dos cônsules romanos usados no Senado antigo e que os sacerdotes da religião imperial, por serem equiparados a cônsules, tinham o direito de usar (casula e estola). Então, com o mesmo sentido, poderiam ser incorporados à liturgia símbolos como o eketé (boina de tradições negras) ou o colar de penas ou de palhas de alguns povos indígenas. Só que antes de decidir isso, a questão básica é qual a compreensão teológica dos ministérios litúrgicos temos hoje e como expressar isso visualmente? Queremos de fato identificar o celebrante da missa com um pajé indígena ou com um babalorixá afro? Como aproveitar símbolos assim, mas que valorizem a circularidade da Eucaristia com seus ministérios múltiplos e plurais (toda a assembleia ministerial)?
2 – Em 2019, a Igreja Católica realizou, em Roma, um Sínodo Extraordinário para a região pan-amazônica com o intuito de repensar a evangelização e a proteção ecológica integral naquele território. Como sabemos, a região envolve um total de nove países, entre os quais o Brasil ocupa a maior parcela territorial. Os acentos impulsionados pelo Papa Francisco parecem compor um grande projeto eclesiológico. Ao que tudo indica, o pontífice vislumbra uma Igreja sinodal, com ênfase na colegialidade, na diversidade ministerial e na inculturação, sensível às diferentes realidades culturais e à possibilidade de diferentes povos celebrarem no contexto de seus costumes e ritos próprios, o Mistério Pascal de Cristo.
Na Exortação Apostólica Querida Amazonia (n. 82) há uma nota de rodapé sobre o requerimento de um rito litúrgico próprio para a realidade amazônica. É verdade, no entanto, que a Amazônia não é uniforme. Ao contrário, há, em todo o território, uma multiplicidade considerável de povos, línguas e culturas. Tal fator se coloca como um hiato à proposição de um rito amazônico que, por ser único, desconsidera as particularidades de cada etnia ou população regional. Mediante tal fato, indagamos:
A – A pluralidade ritual vivida pelas 23 igrejas orientais que, de modo autônomo (sui iuris), compõem a Igreja Católica Romana e os vários ritos latinos (ambrosiano, moçarábico, galicano, zairense…) que convivem com o rito romano na igreja do ocidente podem inspirar caminhos à inculturação litúrgica na Amazônia?
Sim, poderia. O rito básico e de raiz seria o da tradição latina, mas com elementos próprios das culturas diversas da Pan-Amazônia. Poderia haver rituais específicos para povos indígenas ou comunidades negras e pode haver ritos mais para a realidade urbana (multifacetada) com elementos de diversas culturas, à escolha da comunidade, como elementos da cultura ribeirinha – ou das comunidades de lavradores – ou de periferia urbana e assim por diante. De certa forma, atualmente encontros de CEBs já fazem um pouco isso. Usam símbolos ligados à Pastoral da Terra, outros ligados aos operários, outros a outras realidades…
B – Tornar a Igreja Católica na região pan-amazônica uma igreja com direito próprio (sui iuris) seria uma alternativa? Isso poderia permitir a convivência de ritos diversos assimilados por diferentes povos indígenas? Quais avanços poderiam ser garantidos? Quais retrocessos poderia significar?
A Sinodalidade proposta pelo papa Francisco só terá êxito se as Igrejas locais assumirem uma eclesiologia de comunhão que lhes dê alguma autonomia disciplinar, litúrgica e mesmo teológica. É claro que o importante é não se isolar e se abrir ao outro, ao diferente.
C – Como a ecologia e a espiritualidade holística podem ser assimiladas, redescobertas ou valorizadas pela tradição litúrgica católica em contexto amazônico?
Na liturgia romana, os ritos de exorcismo foram muito influenciados por antigos ritos pagãos que, nas espiritualidades originárias do nosso povo, se chamam de “descarrego”, limpeza, etc. A sacralidade da Terra, da Água, das sementes crioulas e de outros elementos seriam os novos sacramentais ou mesmo sacramentos do Amor Divino a serem desenvolvidos pelas liturgias cristãs inseridas nas culturas amazônicas. Seria o caso de retomar a veneração das árvores sagradas como as que deram origem a cultos pré-javistas e estão na Bíblia como o “carvalho de Mambré”, a sarça ardente do Êxodo 3 e assim por diante. Aqui em Pernambuco, os índígenas Xucuru consideram a serra do Ororubá um território sagrado e inclusive como reino dos Encantados. E sobre a Serra do Ororubá construíram um santuário à Nossa Senhora da Montanha, a Mãe Tanaim…
D – Sabemos que, desde quando trabalhou com dom Hélder Câmara, você tem se empenhado em prol do ecumenismo e do macroecumenismo. Quais conselhos o seu conhecimento nesta seara permite dar aos que devem propor um ritual católico amazônico, considerando a pluralidade de experiências religiosas dos tantos povos que habitam o território em questão?
No Sínodo da Amazônia, os documentos reconheciam que, se olhamos corretamente a realidade amazônica, a fé cristã (principalmente o catolicismo) é uma expressão minoritária da fé. Esse fato nos apela mais ainda para fazer do diálogo um verdadeiro caminho de espiritualidade, um diálogo que busque como propõe Francisco em Querida Amazonia, aprender do outro e acolher o que Deus nos diz através da outra cultura, religião e espiritualidade. A primeira expressão de espiritualidade amazônica foi o xamanismo em suas diversas formas. Este nasceu como um modo de cuidar das pessoas. São ritos que consistem em consultas de cura e ritos que buscam reequilibrar as energias do corpo e da mente, a partir da comunhão com a Mãe-Terra, as águas e a natureza que nos envolve. É preciso que nossas liturgias aprendam a incorporar isso não copiando ou reproduzindo os ritos xamânicos, mas valorizando-os e quem sabe integrando-os no nosso contexto litúrgico e pastoral sem “convertê-los” em ritos ou arremedo de ritos nossos, só para serem nossos.
3 – Os historiadores e antropólogos, para descrever a assimilação e a relação entre duas ou mais culturas, geralmente empregam conceitos como: enculturação, hibridização ou hibridismo cultural, interculturalidade, multiculturalismo… E cada conceito enfatiza um aspecto de como a cultura (ou fronteira étnica) de um povo forasteiro vai se diluindo ou sendo assimilada pela cultura do povo local.
O catolicismo tem se referido a este processo por meio do termo inculturação, que parece ter sido proferido pela primeira vez pelo cardeal Jaime Lachica Sin, então arcebispo de Manila, Filipinas, por ocasião do Sínodo sobre a Catequese, em 1977. O Papa João Paulo II, na Carta Encíclica Slavorum apostoli (n. 21), afirmou que inculturação diz respeito à “encarnação do Evangelho nas culturas autóctones e, ao mesmo tempo, a introdução dessas culturas na vida da Igreja”.
Tais processos, mesmo que nomeados por diferentes conceitos, resguardam, certamente, elementos positivos, já que os encontros sempre enriquecem os que dialogam, mas também ocasionam elementos negativos, como a violência, a subjugação da cultura do outro e até a tentativa de aniquilação.
Pedro Ribeiro de Oliveira, em capítulo publicado em 1986 no livro Inculturação e libertação, organizado pela CNBB e pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), fala do lugar social do missionário e utiliza como exemplo as missões salesianas entre os indígenas Xavante. Sua conclusão é a de que a ação dos missionários contribuiu para que os territórios xavantes fossem demarcados e, por conseguinte, evitou um genocídio, tal como ocorreu com outros povos indígenas brasileiros. Por outro lado, a ação catequizadora dos salesianos interferiu em questões culturais de espaço, tempo, identidade, autoridade, casamento, família e propriedade privada, o que resultou num etnocídio (termo de Pierre Clastres para descrever o assassinato do espírito de um povo).
Dom Pedro Casaldáliga, na introdução da Missa da Terra Sem Males, afirma: “Quem não respeita uma Cultura, quem age etnocentricamente, ‘escraviza’, sim” e acrescenta que “O Evangelho é Fé, não cultura”. Muitas perguntas se apresentam diante de tais premissas e gostaríamos de saber sua opinião sobre os seguintes aspectos:
A – Ainda é possível falar em inculturação para se referir a uma pretensa harmonização entre ritos indígenas e cristãos? Ou haveria conceitos melhores para designar o processo de criação (ou evidenciação) de um rito amazônico?
A Missiologia (compreensão do que é a Missão) depende da Eclesiologia (nossa concepção de Igreja) e mesmo de Deus. O desafio é imenso e pede para passarmos de uma missão expressa em termos de conquista ou de levar a fé cristã aos outros para uma compreensão de testemunho do Reino de Deus e missão como diálogo e comunhão. No discurso sobre a missão (Mt 10), Jesus compara a missão não com o semeador que planta (como a parábola da semente) e sim com a colheita: Rogai ao Pai para que mande operários para a colheita. Se a missão é colheita, significa que antes dos missionários, a semente e a planta já existem, independentemente da missão. O que a missão tem de fazer é reconhecer o que já está plantado e colher ou seja valorizar e juntar. Nos evangelhos, a imagem da colheita, como também a da pesca tem como sentido juntar – reunir os peixes na rede ou as sementes na cesta.
No começo, a inculturação parecia supor um evangelho para além da cultura. Seria uma alma que entra em vários corpos (as culturas). Ora, essa concepção ainda mantém certa visão arrogante ou etnocêntrica como se houvesse um evangelho puro a ser inculturado. Ora o que se insere nas culturas já vem de outra cultura. Não é como uma luz que ilumina os diversos ambientes. O apóstolo Paulo não inculturou um evangelho desencarnado na cultura greco-romana. O que ele fez foi assumir a cultura semita que era a sua (ele escreveu: eu era judeu da tribo de Benjamim e fiel à lei) e fê-la dialogar com a cultura grega. Então, não foi tanto uma inculturação e sim um ato de interculturalidade ou intercâmbio de culturas. Claro que se eu traduzo um texto do francês para português, o importante é que se compreenda bem o português. Então, a inserção de uma cultura na outra é em função desta última…
O conceito hoje mais atual vem da Antropologia e das Ciências Sociais – de Anibal Quijano, e se chama decolonialidade. Isso pede de nós.
1º – Ser capaz de perceber a colonialidade da velha teologia e de tantos elementos da liturgia – decorrentes da cultura greco-romana que nada tem a ver nem com o evangelho de Jesus, nem com nossa realidade de hoje (na América Latina ou na Amazônia).
2º – Elaborar um pensamento anticolonial e até pós-colonial que nos liberte da colonialidade subjacente ao modelo hegemônico tradicional.
3º – Já libertados, ir além do pós-colonial e ser capaz de repensar a realidade a partir de nossas culturas.
Vamos dar um exemplo:
1º – É preciso ver que a liturgia romana ainda respira uma compreensão da eucaristia como culto sacrificial, feito por um sacerdote (mesmo se há comunidade) e a um Deus que gosta de sacrifícios (mesmo se a teologia tenta disfarçar falando do caráter próprio e único do sacrifício de Jesus, etc.).
2º – É preciso aprofundar como a comensalidade de Jesus nos evangelhos vai no sentido oposto a uma eucaristia seletiva – segregadora – feita para os puros que podem comungar porque não estão em pecado e celebrado por um ministro ordenado que acredita que Jesus o ordenou para transformar o pão em corpo de Cristo na missa.
3º – A partir das nossas culturas restituir à Ceia de Jesus o seu caráter de refeição de amor e inclusão na qual o Corpo de Cristo é a comunidade e o pão é como dizia Agostinho: símbolo do que nós somos: corpo de Cristo e a partir disso pensar um rito familiar, circular, festivo e libertador.
B – O Papa João Paulo II e dom Pedro Casaldáliga parecem compreender a relação entre fé e cultura de modos diferentes. Como você percebe essa diferença? Como compreender a máxima de Casaldáliga “O Evangelho é Fé, não cultura”? Como essa compreensão poderia se efetivar na prática pastoral?
O papa João Paulo II acreditava na possibilidade de refazer uma neocristandade e o seu projeto de “nova evangelização”, assim como a centralização do poder no Vaticano expressava isso. Pedro Casaldáliga sempre pensou a fé como profecia e não como religião ritual do poder.
C – Em relação ao genocídio e ao etnocídio: as irmãzinhas de Jesus viveram mais de 50 anos entre os indígenas Tapirapé sem nunca querer convertê-los ao cristianismo. E, no entanto, também evitaram seu genocídio. Por um lado, parece prevalecer a defesa da vida, que é missão primordial dos cristãos. Por outro, parece impor-se um necessário anúncio do Evangelho em vistas da conversão do povo missionado, talvez como exigência do aspecto salvacionista do cristianismo. Essa prática parece resultar em um etnocídio (morte da cultura autóctone). Existiria um ponto de equilíbrio entre essas duas posições eclesiais? Como equacioná-las? Nesse sentido, um rito inculturado amazônico poderia contribuir em quê?
Em 1991, o Vaticano publicou o Documento Anúncio e Diálogo no qual a Congregação das Missões e o Secretariado para o Diálogo Inter-religioso trabalham esse tema que você provoca: como se articula esses dois elementos e ali se diz que mesmo quando o anúncio for necessário, deve se fazer a partir do diálogo.
Penso que a boa nova que Jesus mandou anunciar e que ele mesmo anunciou não foi a Igreja Católica e nem qualquer religião ou doutrina. Foi a vinda do reino de Deus. Isso vai além do elemento religioso. Acho que o modelo de missão das irmãzinhas foi renovador justamente porque nunca assumiu a fé como anúncio religioso. No caso dos Xavantes, os salesianos ajudaram no processo de demarcação das terras, mas depois de um mal provocado por décadas pelas missões que tiraram os índios de suas terras e suas culturas. Depois da desgraça ocorrida, os atuais missionários ajudaram.
Não concordo com a noção de equilíbrio como se se pudesse dizer: a gente desrespeita a cultura mas só até certo ponto. A gente impõe nossa cultura, mas só até certo limite. Não. Não é uma questão de equilíbrio. Os povos originários têm absoluto direito a serem respeitados em suas culturas e merecem que valorizemos suas religiões e espiritualidades, como são. Ponto.
O que os missionários podem e devem fazer é possibilitar que os indígenas que já são cristãos ou os que por sua iniciativa quiserem ser cristãos possam ser cristãos como indígenas. Não precisem de se tornarem europeus para serem católicos, ou anglicanos ou luteranos. Não precisem se tornar norte-americanos para serem pentecostais. Essa é a tarefa das teologias índias cristãs e das teologias negras cristãs.
D – Por fim, as contribuições dos estudos decoloniais (ou descoloniais) – que permitiram o rompimento com o mito da história única e progressiva, o questionamento cabal da ideia de raça e a rejeição da supremacia da episteme eurocêntrica – poderiam iluminar as discussões sobre um rito (ou ritos) católico não majoritariamente eurocentrado? Se sim, como?
Já respondi a essa pergunta acima. Só acrescento que não basta um estudo ou hermenêutica decolonial. O que vejo na Academia é que meus amigos que fazem estudos decoloniais aceitam fazer usando expressões e desenvolvendo uma hermenêutica totalmente ocidentais. Escrevem páginas cheias de expressões – neologismos – complicados e acadêmicos para matar o gigante usando as próprias armas do gigante. Não sei se chegarão muito longe neste caminho… É fundamental que a decolonialidade possa antes de tudo ser vivida na inserção concreta e como experiência comunitária. A partir daí sim, podemos pensar um caminho novo e diferente.
4 – Sabemos que nas décadas subsequentes ao Concílio Vaticano II houve um tempo de muita liberdade em matéria litúrgica, talvez pela demora das publicações dos rituais revisados. No Brasil, tiveram início as romarias da terra, das águas e dos mártires da caminhada. As danças, frequentemente compunham o rito de apresentação das oferendas na missa e, noutras vezes, sugeriam a necessidade de uma entronização do lecionário ou da Bíblia, com procissão, até o ambão, antes da Liturgia da Palavra. Os textos bíblicos eram, por vezes, contados, declamados ou encenados. As mulheres proclamavam o Evangelho na missa. E as celebrações da Palavra fora da missa, na maioria das vezes, eram presididas por elas, que também coordenavam suas comunidades. Os prefácios eram, frequentemente, cantados com a repetição da assembleia, como ocorre nos benditos populares. Aliás, várias comunidades compuseram orações eucarísticas – recordo, de modo especial, um “bendito eucarístico” de autoria de dom Tomás Balduíno e de Ione Buyst, publicado na Revista de Liturgia n. 130, em 1995. Não há como esquecer ainda que o abraço da paz era demorado e festivo. Todas essas experiências, ao longo das últimas décadas, têm sido compreendidas como equívocos ou exageros que devem ser corrigidos para o bem da Liturgia. O espaço das mulheres vem sendo, aos poucos, encolhido ou ocupado pela atuação dos diáconos permanentes. O Missal Romano, não poucas vezes, foi proposto como uma regra que acaba por engessar a vivacidade das celebrações eucarísticas com o intuito de homogeneizar o modo de celebrar das comunidades católicas.
A – Diante deste panorama, como distinguir o que é o avanço da inculturação e o que é “traição” ao espírito da Liturgia?
Não creio em nenhum avanço a partir do canônico e do legalista ou da clericalização das celebrações. Não reconheço nisso nenhum avanço e nenhum valor espiritual. Para mim, neste tipo de caminho, só há mesmo retrocesso. Se o papa Francisco propõe sinodalidade, a base disso seria o direito das comunidades de celebrar do seu modo próprio e de formas mais plurais…
B – Tais experiências podem iluminar o processo de reflexão sobre a proposição de um rito inculturado amazônico? Se sim, como?
Quais experiências? As das paróquias e dioceses que voltaram atrás e negaram o caminho feito nos anos 70 e 80 não querem isso. As experiências das CEBs e das pastorais sociais em encontros e romarias da Terra sim podem ajudar. Só precisa unificar mais os ritos de acolhida e de caminhada com a eucaristia que às vezes ainda continuam muito clericais e romanas.
C – Querida Amazonia (n. 99-103) reconhece o protagonismo das mulheres nas comunidades amazônicas. Como pensar uma organização ministerial que inclua as mulheres de forma equânime?
No sul do México (diocese de Chiapas) nos anos 1990, o Vaticano tentou coibir dom Samuel Ruiz que dava o diaconato não somente a homens casados, mas ao casal e formava o casal para o ministério que era social e também litúrgico nas comunidades predominantemente indígenas.
O Sínodo da Amazônia pediu ao papa a abertura para ministérios próprios das mulheres. O papa não deu nenhum passo concreto nesse sentido. Seria necessário que os nossos bispos assumissem a atitude profética de pensar algo nessa linha. Mudanças como essas só se fazem a partir da prática e nas bases. Mesmo se na estrutura da Igreja Católica atual, não é possível pensar um ministério diaconal para as mulheres. Será que não daria para pensar como ministério comunitário ou de casal? Com ou sem ordenação própria? Como experiência inicial…
5 – Há algum tema relacionado ao que conversamos sobre o qual não mencionamos e que você gostaria de ser perguntado? Alguma sugestão sobre como caminhar em direção à efetivação concreta e frutífera de um rito inculturado amazônico?
Penso que esse é um tema que deve ser objeto de consulta a Xamãs, Médiuns, benzedeiras e outras pessoas que exercem ministérios espirituais nas comunidades.
Outra sugestão é que se comecem por experiências concretas em pequenas comunidades: comunidades religiosas e grupos de convivência que pudessem experimentar. Penso que uma primeira experiência fundamental é transformar as tais celebrações dominicais sem padre em verdadeiras celebrações de ágapes nas quais sem depender de padres, as comunidades possam fazer a memória da Páscoa de Jesus de um jeito laical, simples e livre.