“Que o nome do Quiosque seja Tropicália, aprofunda, para mim, a dor de constatar que um refugiado da violência encontra violência no Brasil. (…) E fere a memória de Rogério Duprat, Torquato Neto, Nara Leão, Guilherme Araújo… Sobretudo a de Hélio Oiticica, que criou o termo. Tenho certeza de que a família Oiticica está comigo nessa amarga revolta. O Brasil não pode ser o que há de mesquinho e desumano em sua formação”, escreveu Caetano Veloso em sua página no twitter no dia de ontem.

À indignação de Caetano Veloso somam-se milhares de outras manifestações, no Brasil e no mundo, revoltadas com o covarde assassinato do jovem refugiado congolês Moïse Kabagambe e colocam em debate a situação dos migrantes e refugiados no Brasil que entre 2011 e 2020 acolheu 57 mil refugiados dos quais 1.050 congoleses.

Os dados são do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), instituição ligada diretamente ao ACNUR, agência da Organização das Nações Unidas (ONU) que atua para assegurar e proteger os direitos das pessoas em situação de refúgio em todo o mundo.

De acordo com as diretrizes da ACNUR “um refugiado tem direito a buscar e receber refúgio em um lugar seguro. Contudo, a proteção internacional abrange mais do que a segurança física. Os refugiados devem usufruir, pelo menos, dos mesmos direitos e da mesma assistência básica que qualquer outro estrangeiro residindo legalmente no país, incluindo liberdade de expressão e de movimento, e proteção contra tortura e tratamento degradante. De igual modo, os direitos econômicos e sociais que se aplicam aos refugiados são os mesmos que se aplicam a outros indivíduos. Pessoas refugiadas devem ter acesso à assistência médica. Pessoas refugiadas adultas devem ter direito a trabalhar. Nenhuma criança refugiada deve ser privada de escolaridade. Os refugiados também têm responsabilidade e obrigações, entre elas a de respeitar as leis do país que os acolhem”.

A agência internacional assegura que “em certas circunstâncias, quando não há recursos governamentais disponíveis para atender demandas imediatas, organizações internacionais como o ACNUR prestam assistência. Isso pode incluir subsídios financeiros, alimentos, abrigo e infraestrutura básica. Com projetos como atividades de geração de renda e programas de capacitação profissional, o ACNUR faz todos os esforços para garantir que as pessoas refugiadas se tornem autosuficientes o mais rápido possível”.

Essa intervenção direta com a mobilização de recursos internacionais para atender os migrantes e refugiados tem sido comprovada no processo de acolhimento aos venezuelanos na Amazônia e nos países vizinhos desde meados de 2017 num conjunto de ações que envolvem acolhimento, interiorização e integração/inclusão dos migrantes. São considerados refugiados, garantidos por lei, os migrantes de países em situação de crise humanitária ou que apresentam grave e generalizada violação de direitos humanos, como guerras, bem como aqueles que sofrem perseguições políticas, étnicas ou religiosas.

Desde em 1991, através da Portaria Interministerial nº 394 do Ministério da Justiça, o Brasil assume definitivamente a proteção aos refugiados. Em 1997, foi editada a Lei nº 9.474, em parceria com o ACNUR, considerada pela ONU uma das mais modernas e abrangentes, elogiada por adotar um conceito ampliado para designar os direitos das pessoas refugiadas.

De acordo com a Lei 9.474, refugiadas são todas as pessoas “que por perseguição de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opiniões públicas ou generalizadas violações de direitos humanos, são obrigados a deixar seu país de origem e, ao se encontrarem fora do seu país, não podem ou não querem retornar para ele”.

De acordo com a Lei nº 9.474/1997, o Conare é o principal órgão de proteção e atendimento “que delibera sobre as solicitações de refúgio no Brasil” e está encarregado de: “Analisar o pedido e reconhecer a condição de refugiado; Decidir sobre o término, pela força da lei, do reconhecimento da condição de refugiado; Determinar a perda da condição de refugiado; Orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados; Aprovar instruções normativas esclarecedoras para a execução da Lei nº 9.474/1997”.

Em termos de legislação, o Brasil realmente é um país à frente dos direitos dos migrantes e refugiados. Entretanto, na prática, não tem conseguido estabelecer uma sociedade de acolhimento e inclusão dos migrantes e refugiados a exemplo do que ocorreu com o jovem Moïse brutalmente espancado até a morte por motivo banal. A vida de muitos migrantes e refugiados está ameaçada no Brasil. E mais ainda se estas pessoas forem negras ou indígenas.

Em nota, a embaixada do Congo no Brasil cobra respostas e providências sobre o assassinato de mais quatro congoleses nos últimos anos. Desde 2010, diversos haitianos foram assassinados no Brasil, vítimas de racismo e xenofobia. A maioria dos crimes ficam silenciados e comprometem a proposta de acolhimento tão bonita e elogiada na sua forma textual, longe de representar garantia de direitos aos mirantes e refugiados no Brasil.

O assassinato de Moïse deixa claro que não se trata apenas de acolher os migrantes e refugiados. É preciso garantir políticas de atenção e integração/inclusão dessas pessoas num processo contínuo de promoção humana que considere o protagonismo dos migrantes e refugiados.

A indignação provocada pelo assassinato de Moïse sirva de motivação para colocar em debate as obrigações legais que o país assume ao tornar-se signatário de acordos internacionais que prometem assegurar a vida ameaçada nos países de origem dos migrantes e refugiados.

Esse debate é necessário porque, desde o início da pandemia, sem debater com a sociedade, o Brasil tem publicado inúmeras portarias (mais de 30 até o momento) que restringem a entrada de migrantes no país, ainda que tenham direito à solicitação de refúgio. Com esse endurecimento no trato aos migrantes e refugiados, o Brasil tem se igualado a países como Estados Unidos e aqueles da União Europeia.

Mesmo com tantos brasileiros fora do país, 4,2 milhões, segundo o Itamaraty, o Brasil não tem debatido com a sociedade a questão migratória. Que a morte de Moïse Kabagambe seja uma motivação a essa discussão necessária e urgente. Que sua morte não seja em vão. Que se faça justiça! Moïse, presente!!

Fonte: Márcia Oliveira/ Amazonas Atual 

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