Manaus 17.04.20 Prefeitura realiza vacinação para idosos indignas. Foto: Alex Pazuello/Semcom

Por Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca

Da Agência Pública*

Está na Amazônia a maioria das Terras Indígenas (TIs) em situação crítica para a pandemia do coronavírus no Brasil. Além de sete territórios com maior fragilidade, os estados da Amazônia Legal possuem 239 TIs com índices de vulnerabilidade intensos ou altos em relação à Covid-19.

Os dados estão em um estudo recém-publicado pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) a que a Agência Pública teve acesso.

No trabalho, demógrafos, antropólogos, geógrafos e economistas avaliaram 471 TIs em relação à vulnerabilidade à pandemia de coronavírus. O estudo levou em consideração fatores como a distância de centros com unidades de terapia intensiva (UTI), saneamento e porcentagem de idosos na população, entre outros.

 

 

Índice de vulnerabilidade em terras indígenas na Amazônia Legal

E um dos dados é alarmante: de 1.228 municípios brasileiros onde há ao menos um trecho de TIs, apenas 108 possuem algum leito de UTI.

Além das TIs, os pesquisadores avaliaram que seis Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) estão em situação crítica, todos eles nos estados da Amazônia Legal.

Um deles é o Yanomami, em Roraima, onde está a TI de mesmo nome. Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), submetida ao Ministério da Saúde, o distrito já registrou uma morte: a de um menino Yanomami de 15 anos. Alvanei Xirixana faleceu no início de abril, após seis dias internado na UTI do Hospital Geral de Roraima (HGR), em Boa Vista.

Os indígenas estão entre as populações com mais risco para a Covid-19 devido à própria vulnerabilidade social e histórica a que esses povos estão submetidos, explica Marta Azevedo, demógrafa, indigenista, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e uma das autoras do estudo. “Todos os indicadores demográficos de saúde são piores entre os indígenas. A taxa de mortalidade é mais alta entre todas as raças, a de mortalidade materna, mesmo controlando o nível socioeconômico”, afirma.

Por isso, “o ideal é que o vírus não entre nas aldeias”, declara a médica sanitarista Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu, programa de extensão da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que há mais de 50 anos atua no atendimento dos povos da bacia do rio Xingu. “É preciso interromper o acesso a essas comunidades, mas mantendo a comunicação e a criação de estratégias junto com os indígenas”, diz. Por si mesmos, os povos indígenas têm tomado medidas para evitar que o vírus os atinja: são vários os casos de etnias que têm bloqueado os acessos às aldeias, por exemplo.

 

UTI, um gargalo ainda maior para os indígenas

 

No Amazonas, indígenas precisam ser transportados até Manaus caso precisem de UTIs, onde o sistema de saúde já está em colapso. Terra indígena mais vulnerável do estado fica a cerca de 700 km da capital – Foto: Alex Pazuello/Semcom

O levantamento da Abep mostra que todas as TIs em situação mais crítica para enfrentar a Covid-19 possuem um fator em comum: estão distantes dos centros urbanos com UTIs.

Para se ter uma ideia, a TI Acapuri de Cima – a mais crítica de todo o estado do Amazonas –, habitada pelos Kokama, está a quase 700 km em linha reta da cidade de Manaus, o único município do estado que possui leitos de UTIs para tratamento dos casos mais graves da Covid-19. Atualmente, mesmo Manaus já está com o sistema de saúde em colapso: o Hospital Delphina Aziz, unidade de referência para atenção às vítimas do coronavírus, atingiu sua capacidade máxima em 10 de abril, assim como os outros três hospitais de apoio na cidade.

No estado do Amapá, não há nenhum município com UTI; em Roraima e no Acre, os leitos de tratamento intensivo existem apenas nas regiões metropolitanas das capitais.

A sobrecarga do SUS é fator de risco para os indígenas tanto quanto para a população em geral. O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), que engloba 34 DSEIs, cuida de ações de saneamento e da atenção básica de saúde nas aldeias, como o acompanhamento de pacientes com doenças crônicas. Administrado pela Sesai, ele foi instituído por lei em 1999 para que as ações e serviços de saúde voltados para os povos indígenas sejam prestados de forma diferenciada, considerando suas especificidades culturais, epidemiológicas e territoriais – e, inclusive, abrangendo os saberes tradicionais dessas comunidades.

No entanto, não é atribuição dos DSEIs o atendimento de média ou alta complexidade, que demanda profissionais especializados e recursos tecnológicos, como no caso das internações em leitos clínicos ou UTI.

Isso significa que, se um indígena apresenta suspeita de Covid-19 e seus sintomas são leves, ele pode ser tratado pela equipe de saúde de sua própria aldeia, “mas será necessário, dependendo da situação clínica desse paciente, encaminhá-lo para um serviço de referência. Ele segue então para um polo-base, onde poderá ter acesso a exames – como a testagem para o coronavírus”, explica a médica Sofia Mendonça. “Porém, se não estiver bem, tem que ir para uma unidade que atenda média e alta complexidade”, afirma.

“Esse vai ser o nó dessa epidemia”, diz a também médica Ana Lúcia Pontes. “A capacidade dos serviços de saúde é limitada, o sistema público já vinha num contexto de estrangulamento há anos com cortes de gastos, a população já enfrentava muitos problemas de desassistência, e agora, de uma vez só, tem um conjunto muito grande de pessoas necessitando dessa ajuda”, destaca a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenadora do Grupo Temático Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Por isso, há uma preocupação especial entre os povos indígenas com a disponibilidade dos leitos de UTI. “A partir do momento em que foi identificado um caso e vai precisar de atendimento pelo estado, essa é a questão. Como o município e o estado vão receber o indígena? Vai ter vaga?”, questionou a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, em entrevista online a jornalistas no começo do mês. “Se estão faltando leitos para os não indígenas, imagina para os indígenas, que estão longe.”

A inquietação da deputada tem base em números: de acordo com o Instituto Socioambiental, mais de 80% da extensão de todas as TIs do país se concentram no Norte, justamente a região que, junto com o Nordeste, dispõe dos maiores desertos de UTI no país. “É certo que isso torna os povos indígenas mais vulneráveis ainda, junto com os ribeirinhos, quilombolas e populações que vivem naquela região. Precisa-se assumir, enquanto política pública, que os indígenas são um grupo vulnerável, um grupo de risco”, argumenta Sofia Mendonça.

A insuficiência de leitos de terapia intensiva somada à velocidade com que pode evoluir o quadro clínico da Covid-19 faz com que as pesquisadoras ouvidas pela Pública chamem atenção para a importância de estabelecer estratégias específicas para a atenção aos povos indígenas. No início do mês, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) enviou cartas a todos os governadores do Brasil pedindo justamente que os planos emergenciais para atendimento dos pacientes graves de municípios e estados incluam a população indígena, “deixando explícitos os fluxos e as referências para o atendimento em tempo hábil, em articulação com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e DSEIs”.

* Esta notícia é parte da  reportagem especial feita pela Agência Pública, que pode ser acessado na íntegra em https://apublica.org/2020/04/ineditomais-de-200-terras-indigenas-na-amazonia-tem-alto-risco-para-covid-19/.

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