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Kayapó. O sobrenome adicionado, por ele mesmo, em sua identidade, assegura ao artista Diego Patrick Souza Godinho, 30, natural de Santarém do Pará –PA, a certeza de que as suas origens serão eternizadas, graças às boas lembranças que carrega consigo da avó, dona Argemira Godinho, de heranças ancestrais pertencentes ao povo Kayapó. “Passei a me alimentar de memórias e minha avó foi o ponto central que me fez mergulhar nesse debate de retomada de direito, então comecei a usar este nome para garantir que nossas histórias não sejam diluídas no esquecimento. Claro que respeitosamente aos Kayapós aldeados e lideranças, nunca pensei nesse nome como promoção pessoal, mas, para garantir que a história de uma família pelo direito de ser, perpetue. Claro que buscar a proximidade com o povo é o próximo passo. Isso vai me levar a conexões mais profundas”, afirma.

Diego Kayapó é o autor da identidade visual do IV Encontro de Santarém, da Igreja Católica, a realizar-se de 6 a 9 de junho próximos. Em entrevista à REPAM, ele falou sobre suas origens, a paixão pela arte e suas inspirações para o desenho que identificará o Encontro sobre os 50 anos do Documento de Santarém.

Seu sobrenome Cayapó…poderia falar um pouco sobre ele?

Tomei esse nome em meados de 2019 quando relembrando contextos da vida de minha avó, Dona Argemira Godinho, me veio à memória que me fazia admirar grandemente a coragem que sempre fez dela uma mulher de fibra e atuante em sociedade. Suas origens do Povo Kayapó nunca foram esquecidas e ela dizia com muito orgulho ser indígena em tempos em que preconceito e racismo contra povos originários era ainda mais forte do que nos dias atuais. Ser indígena era sinônimo de atraso na mentalidade de muita gente e ainda é, mesmo com o advento do fluxo de informação em massa pela internet. Como decidi buscar na ancestralidade uma fonte fecunda para meu processo artístico e comecei a me deparar com a importância do repasse de valores e saberes que garantem a perpetuação do ser amazônico, logo me inclinei para temas mais profundos sobre a natureza das pessoas, suas ascendências e isso me levou naturalmente a questionar minhas origens, me fazendo lembrar de histórias dos mais velhos. Passei a me alimentar de memórias e minha avó foi o ponto central que me fez mergulhar nesse debate de retomada de direito, então iniciei o uso deste nome para garantir que nossas histórias não sejam diluídas no esquecimento. Claro que respeitosamente aos Kayapós aldeados e lideranças, nunca pensei nesse nome como promoção pessoal, mas, para garantir que a história de uma família pelo direito de ser, perpetue. Claro que buscar a proximidade com o povo é o próximo passo. Isso vai me levar a conexões mais profundas.


Primeiro desenho feito por Kaiapó aos 5 anos de idade.

Quando começou a pintar?

Muito cedo. Minha primeira obra (à esquerda) foi executada aos cinco anos de idade. Meu avô João Godinho estava tecendo sua malhadeira e ao lado dele eu estava desenhando com giz uma canoa atracada no cais de um pequeno rio onde ao fundo se via uma grande floresta e uma pequena casa de madeira. Essas foram minhas referências de Amazônia desde curumim (que quer dizer, “menino”). Este trabalho está íntegro ainda hoje, emoldurado sob a tutela da minha prima Karla Godinho na cidade de Itaituba.

O que a arte significa para você?

A arte é uma expressão da alma! Ela não tem regra nem limite e todas as pessoas deveriam tentar por que ela nos permite imaginar ou refletir, trabalhar o pensamento ou mesmo iludir-se. Ela é expansiva e deve estar presente em todos os lugares. A arte pode ser o retrato do que é belo, singelo, delicado ou mesmo do que é feio como as guerras, as injustiças. Ela pode ser uma arte questionadora, um confronto de ideias. Ela pode, para além da expressão de técnicas, ter uma função factual na sociedade.

Quando você está pintando o que te inspira?

Me inspiro em muitas coisas. Na verdade, não há uma regra que possa ser seguida. É uma coisa do momento que se vive e do lugar onde se está. Eu vivo esta dinâmica da relação com a floresta e com urbanidade, dos problemas sociais, do avanço do agronegócio, garimpo em terras ancestrais, desmatamento, pecuária. Todos estes assuntos podem me levar a produzir uma arte de confronto para com tudo que está acontecendo em nossos territórios. Me inspiro na cosmologia do homem da floresta para com a natureza, ele humaniza tudo. Tudo tem mãe, tudo tem pai e isso serve para entendermos esta filosofia cabocla, indígena, de que precisamos ter o cuidado para com a natureza em sua plenitude, pois nela somos apenas um elo que compõe a teia da vida, com uma função tão importante quanto o vento que sopra nas montanhas, ou quanto a chuva que cai na superfície. Minhas inspirações partem desta vivência. Se alguma coisa ameaça a vida de rios, lagos e igarapés, ecossistemas e tudo que considero importante me sinto inclinado para a arte. Pode ser que a arte em si não possa contra a barbárie mas tenha um papel educativo e de tomada de consciência.

Costuma cantar, ouvir música ou outra coisa enquanto pinta?

Sim, além de artista visual, sou músico. Ouço música bastante. Isso está muito presente na minha vida, assim como escrever poemas, crônicas, tocar um instrumento e estudar.

Como surgiu a ideia do desenho do IV Encontro de Santarém?

A ideia do desenho do IV encontro de Santarém partiu da memória da própria Igreja que já havia feito outras edições e queria manter a mesma linha de imagem que já havia sido usada em outros momentos. Claro que com a ideia já construída pude fazer uma nova composição a partir do diálogo inicial com o nosso amigo Ércio Santos, que norteou os elementos adicionais para o novo cartaz, cujo resultado foi alcançado de maneira conjunta, com base nos esforços e debates ao longo da execução do trabalho. A ideia do rio permaneceria, dos canoeiros e da cruz também.

Qual o lugar da mulher nessa arte?

Fiz primeiramente uma versão que tinha a mulher como um elemento gráfico em destaque no cartaz, depois, uma segunda versão com um canoeiro na proa e uma mulher na polpa controlando o motor. Essa ideia me veio a partir de uma imagem que me surgiu na memória de ressignificar o conceito muito comum em nossa região: os ribeirinhos, quase sempre homens, no comando das embarcações, seja na pescaria ou no transporte. É claro que há muito desta troca de comando na vida real em que o homem atua como piloto e a mulher na polpa e vice-versa. O guia da canoa nesta interpretação é a mulher, o homem exerce um papel mais de contemplação do horizonte ou como queiram interpretar, apenas guiando para onde não encalhar, mas, juntos, os dois navegam para um mesmo rumo e nem sempre os trajetos são fáceis, as vezes é preciso cautela no remo.

São visíveis na arte árvores, vitral, sol, prédios, casa de madeira…

As árvores no horizonte em formas geométricas foram feitas assim para aludir a arte do Sínodo da Amazônia que é um Vitral. Essa mesma textura pode ser observada nas águas embaixo da canoa.

Um sol gigante marca a imagem, lembrando que a luz brilha para todos, e ela representa a energia da vida. Na imagem se pode ver prédios altos, fazendo alusão que as cidades da Amazônia, especialmente as metrópoles, seguem seu curso de transformação, são chagas abertas, mas, ainda assim, fazem parte do contexto amazônico e abrigam a maior concentração da população na Amazônia Legal, com problemas graves sociais e disparidade entre ricos e pobres. Cidades como Santarém já seguem esse caminho de mudança provocada pela especulação imobiliária. Precisamos pensar cidades melhores para superar os desafios do futuro e este futuro é agora. Além da representação da cidade há também uma casinha de madeira em alusão a esses contextos mais ordinários da vida na Amazônia para além da urbanidade. É típica representação das zonas alagadas da terra firme, expressões do contexto de vida dos interiores.

Poderia falar um pouco sobre como ia se relacionando com cada elemento que tem no desenho? As folhas, a mulher, o homem, a água… O que eles significam para você e por que te inspiram?

A ideia foi revelar uma arte que pudesse dialogar com a realidade da vida na Amazônia. E a presença da Igreja é representada pela cruz, ícone do Cristo crucificado. Essa cruz nos lembra que um Homem morreu por nós pelos pecados de todo o mundo.

Você acredita que a pintura, a arte tem um significado fechado ou é amplo, no sentido de que quem interpreta pode acrescentar ou tirar elementos enquanto a interpreta?

Pintura da avó, dona Argemira Godinho (in memorian) conhecida como dona Miró. Pintado em janeiro de 2021. Foto: Arquivo Pessoal

Acho que a arte não está fechada, ela pode ser interpretada de muitas maneiras, não necessariamente precisa ser óbvia, mas precisa despertar a estranheza e o debate em sociedade. Pode ser reinventada, reinterpretada, performática, conceitual. Não existe uma regra! Arte é isso! Não há problema algum de interpretações ou ajustes de elementos. A beleza dela está nas transformações que possa sofrer, não é estática. Talvez daqui a 100 anos os conceitos do mundo a tenham mudado grandemente pelo movimento em sociedade e daí novas reinterpretações possam ser feitas. Ou podem ser feitas no tempo de agora.

De que maneira este desenho pode inspirar o IV Encontro. Ao oferecê-lo à Igreja, que sonhos vão junto?

O desenho feito para este ano pode certamente inspirar novos movimentos para o desenvolvimento, aperfeiçoamento de novos conceitos no sentido do IV Encontro da Igreja na Amazônia. Fico feliz por ter sido um instrumento que pudesse realizar esse projeto identitário da imagem, mas, sei da responsabilidade, e vale lembrar, uma grande responsabilidade na criação de uma imagem que as pessoas olharão e refletirão por meio dela. Até o próximo grande evento, os reflexos desta proposta já estarão postos no campo das ideias e isso é bom para o debate conjunto, para uma caminhada ao amadurecimento dos pensamentos. Acredito na força provocadora que a imagem deste ano vai imprimir nas pessoas.

 

POR ROSA M. MARTINS

REPAM – BRASIL

 

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