Mais de seis mil lideranças indígenas rumaram para Brasília na última semana. São representantes de mais de 170 povos com suas várias línguas e culturas concentrados nos arredores da Praça dos Três Poderes. Desde o início da semana, diversas manifestações ocorreram no centro do poder político em Brasília, em frente ao Palácio do Planalto e, na noite passada, de 24 para 25 de agosto, uma vigília manteve os olhos atentos na direção do Supremo Tribunal Federal (STF).

À luz de velas ou das modernas tecnologias das lanternas de led os grupos se revezaram à noite toda com seus cantos, tambores, flautas, maracás que acompanharam ritos de espiritualidade das diversas etnias com a invocação dos ancestrais de cada povo em protesto contra a tese do marco temporal.

 tese do marco temporal contradiz o artigo 231 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que afirma que:  “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.  Na Constituição Brasileira não está pontuado o marco temporal para a garantia e o reconhecimento do direito à terra dos povos indígenas.

De acordo com o Instituto Socioambiental, o marco temporal tem sido acionado por “ruralistas e setores econômicos interessados na exploração das Terras Indígenas.  Segundo esta interpretação, considerada inconstitucional, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Alternativamente, se não estivessem na terra, precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data”.

Esta prerrogativa ignora todo o processo de expulsão a que os povos indígenas do Brasil vêm sofrendo desde a colonização. Em 2016, as diversas formas históricas de expropriação dos povos indígenas foi amplamente denunciada, dentro e fora do Brasil, através do documentário ‘Martírio’ do cineasta Vincent Carelli com participação de Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida.

Em nossa coluna de 26 de julho de 2017, informávamos que o “documentário, premiado em diversos festivais de cinema, retrata de forma realista o permanente ‘martírio’ dos índios Guarani-Kayowaa numa luta permanente pela retomada suas terras no estado do Mato Grosso do Sul. O cineasta e estudioso da questão indígena traça uma linha do tempo para explicar de forma pormenorizada a trajetória de usurpação das terras indígenas desde a colonização”.

O referido documentário é um exemplo claro de como o capitalismo vem se apropriando das terras indígenas e expulsando povos inteiros de seus territórios, e, ao mesmo tempo, apresenta a luta e a resistência destes povos pela recuperação de suas terras. Para os povos indígenas, não se trata apenas de um terreno ou uma quantidade qualquer de terra. São territórios sagrados onde estão enterrados seus ancestrais, onde cultivam plantas medicinais e onde convivem em perfeita harmonia com a natureza numa relação de interação e proteção.

O sentido de pertencimento ao território faz com que os povos indígenas, e diversos outros grupos de povos e comunidades tradicionais, se posicionem em defesa de territórios e recursos de uso coletivo que vêm sendo apropriado de forma privada por setores econômicos que excluem os pobres da participação direta de bens considerados essenciais, como o acesso a água potável.

Fazendo coro com o colega colunista Sandoval Rocha (https://amazonasatual.com.br/as-periferias-e-o-conflito-hidrico-em-manaus/) em seu texto publicado em 9 de agosto de 2021, “as periferias e o conflito hídrico em Manaus” representa outros setores da sociedade que vem pagando com a fome, a miséria e a negação de acesso a bens essenciais privatizados por governos que se posicionam em favor do grande capital e em detrimento do direito dos mais pobres.

Fatos como este de Manaus se reproduzem por toda a Amazônia e pelo Brasil inteiro e faz ecoar o grito dos povos indígenas em Brasília.

De acordo com o mesmo colega, estamos diante de “uma gestão excludente” (https://amazonasatual.com.br/uma-gestao-excludente/) na qual “é triste a cidade cuja gestão não se pauta pela valorização do bem comum, nem pelo respeito aos bens naturais, mas está atrelada aos interesses externos, vinculada às ideologias do poder, cooptada pelas articulações sofisticadas do capital”. De pleno acordo com o colega colunista deste renomado portal, engana-se quem ainda pensa que é possível humanizar o capitalismo.

Trata-se de um sistema econômico reprodutor de desigualdades sociais que afeta diretamente os mais pobres excluindo-os da participação dos lucros e riquezas gerados à custa da exploração desmedida dos/as trabalhadores/as e dos recursos naturais.

No diagnóstico apresentado no Documento Final do Sínodo da Amazônia, resultado de dois anos de estudo profundo de especialistas de toda a Pan-Amazônia e referendado pelo Papa Francisco na sua Exortação Apostólica Pós-Sinodal ‘Querida Amazônia’ (2020), a Amazônia figura como uma das regiões mais desiguais do planeta.

Salvo a experiência dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e outros povos tradicionais (ribeirinhos, seringueiros, extrativistas sustentáveis e camponeses familiares), o território tem sido marcado pela exploração de seus recursos apropriados por grupos e mercados nacionais e internacionais em detrimento da miséria da grande maioria da sua população.

Nesta perspectiva, a luta dos mais de 170 povos reunidos nesta semana em Brasília, representa a luta de todos os povos que recobram o direito ao território e ao uso de seus recursos de forma coletiva e sustentável. Os territórios indígenas representam um sistema de convivência sem destruição da natureza que acendeu nos últimos anos um sinal de alerta para todo o planeta. As mudanças climáticas repercutem no mundo inteiro e alertam para tragédias humanitárias que precisam ser evitadas.

O modo de vida dos povos indígenas, conclamado no Sínodo da Amazônia, pode ser a chave de saída da crise gerada pelas mudanças climáticas. Na Encíclica Laudato Sí (2015) o Papa Francisco reafirmava, com tantos outros cientistas que “não é possível ecologizar o capitalismo”.

Diante disso, a tese do marco tempo representa uma afronta não somente à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, mas, a todas as instituições que se posicionam em defesa dos territórios protegidos “antes que seja tarde demais” (Laudato Sí, 2015). Não somente as mais de 6 mil lideranças indígenas reunidas em Brasília, mas, instituições do mundo inteiro estão acompanhando o julgamento do STF nestes dias.

No dia de ontem, dentre centenas de outras, uma comitiva da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), com a qual também fazemos coro, esteve presente no Acampamento Pela Vida, devidamente autorizado pelo governo do DF, e prestaram sua solidariedade contra o marco temporal e em defesa da democracia e reafirmaram: demarcação, justiça e direitos já!

Simultaneamente, em todo o Brasil e em diversos outros países, diversas manifestações e protestos pacíficos estão em sintonia com os Povos Indígenas em Brasília. Em Roraima, desde o início da semana, milhares de indígenas estão reunidos na Comunidade Sabiá, na Terra Indígena São Marcos, em vigília permanente e em sintonia com a luta em Brasília. Da mesma forma, milhares de grupos indígenas e não indígenas, estão manifestando sua solidariedade, com olhos e ouvidos bem atentos, voltados para Brasília.

Fonte: Márcia Oliveira/ Amazonas Atual 

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