Declaração de Dom Roque Pasloschi durante a Assembleia dos Bispos da Amazônia, em maio de 2021.
O Conselho Indigenista Missionário vem agradecer imensamente a parceria dos irmãos bispos da Amazônia a este Conselho e aos Povos lndígenas na sua luta pelo Bem Viver. O cenário político indigenista vivido no Brasil é de retrocesso, com o agravamento das violações de direitos humanos dos Povos Indígenas, principalmente no que se refere a regularização dos seus territórios.
Neste período de pandemia do Novo Coronavírus, tivemos que nos retirar das aldeias, do convívio presencial com os indígenas para preservar as vidas dos nossos irmãos indígenas. A falta da nossa presença tem sido bastante sentida por nós e pelos indígenas. O Conselho Indigenista Missionário tem como missão essa presença solidária e comprometida.
A pandemia, que já vitimou mais de 430 mil vidas de brasileiros e brasileiras, chegou às aldeias vitimando, até o momento, mais de mil indígenas com a Covid-19, e mais de 50 mil infectados com o Coronavírus. Os indígenas, com muita tristeza, têm relatado a perca de verdadeiras bibliotecas vivas, com a morte dos mais velhos. A tragédia não foi maior porque os indígenas tomaram a iniciativa de fechar o acesso aos territórios. Além da pandemia, os indígenas enfrentam a omissão e a falta de diálogo do atual governo. Os ataques de setores anti-indígenas aliados nos três poderes do estado brasileiro têm sido uma constante. Nas falas e nas ações do presidente da República com relação aos indígenas destacam-se a ignorância, o preconceito, a discriminação, a violência. Ele tem dito que “não existe povo indígena no Brasil”, que “não demarca um centímetro de terra indígena”, que os “índios em seus territórios são como animais no zoológico”, que para “serem humanos têm que se integrar à sociedade” e suas terras devem ser exploradas economicamente por empresas. Em discurso na ONU, ele disse que as “queimadas eram culpa dos indígenas e caboclos da Amazônia”. Portanto, a eleição de 2018, fortaleceu a bancada ruralista e evangélica fundamentalista, assumindo vários postos de comando no governo, como a Funai, o Ministério da Justiça, Incra, Ibama, ICMBio, Fundação Palmares e tantos outros, com pessoas de posicionamento antagônico aos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais. A Funai e o Ministério da Justiça têm papel fundamental na condução dos procedimentos administrativos de demarcação das terras indígenas, o que não está ocorrendo, nestes últimos dois anos nenhum processo administrativo de regularização dos territórios foi iniciado e os que estavam em curso foram paralisados em benefício de setores anti-indígenas.
Ao realizar o Sínodo para a Amazônia, o Santo Padre chama a atenção para a importância da Região, o seu bioma e principalmente o seu povo originário e tradicional. A riqueza e a necessidade de preservar este ambiente para o futuro da vida no planeta. Infelizmente, no nosso Relatório de Violência com os dados de 2019, constatamos uma realidade perversa e preocupante, onde intensificaram-se as expropriações de terras indígenas, forjadas na invasão, na grilagem, no loteamento, de forma rápida e agressiva contra os povos originários e tradicionais na Amazônia e em todo o território nacional. Essa concepção perversa de governar tem causado uma destruição inestimável, impactando a vida dos povos indígenas e a proteção do meio ambiente.
A região Amazônica, composta por nove estados (AM, AP, AC, TO, MT, PA, RO, RR, MA), representa cerca de 60% da população indígena no Brasil, que tem sido fundamental para a preservação do ecossistema e da cultura amazônica. Essa região está sendo visada pelo capital para expandir a exploração de minérios, madeira, grãos, gado e energia de forma predatória, sem as devidas consultas à população e sem qualquer preocupação com a preservação da Amazônia. Existe o agravante que a maior parte dos governadores e prefeitos da Região Amazônica são a base de apoio do atual presidente.
O Sínodo para a Amazônia, em 2019, foi convocado para propor “Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. E a responsabilidade de encontrar esses caminhos é de todo o Povo de Deus. Nos “novos caminhos” se encontrarão habitantes autóctones empenhados em ajudar os seus bispos, como pediu o Papa Francisco, em seu discurso de Puerto Maldonado (19/01/2018), ao falar em “plasmar uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena” (Fr.PM). Assumir um rosto amazônico na Igreja local significa descolonizar a Igreja. Se agora falamos de um “rosto amazônico” e um “rosto indígena” da Igreja, admitimos que até agora obrigamos essa região a ter um outro rosto, um rosto romano ou uma máscara europeia. Os rostos da Amazônia têm feições culturais e sociais – uns nos lembram da beleza da criação e de Jesus ressuscitado, em outros reconhecemos “as feições sofredoras do Cristo” (DP-31). O Sínodo para a Amazônia coloca, com novo rigor, os desafios da assunção da realidade sociocultural e da inculturação na pauta pastoral de hoje.
E é por isso que precisamos estar atentos às feições sofredoras de nossos irmãos e irmãs indígenas da região Amazônica, que enfrentam diversos problemas específicos de cada povo, mas inúmeros comuns a todos eles, como a não regularização dos territórios indígenas. Como consequência, enfrentam invasões de seus territórios (incentivadas pelo atual governo federal) por garimpeiros, madeireiros, desmatadores, fazendeiros de gado e agronegócio, entre tantos outros, gerando toda espécie de violências e violações de direitos humanos e da natureza. Somam-se os incêndios, poluição das águas dos rios, contaminação de peixes, contaminação das pessoas e dos animais; assassinatos, violência sexual, pandemia, desassistência.
– No Amazonas, são aproximadamente 63 povos, totalizando cerca de 80.000 indígenas. No Vale do Javari/AM, onde existe a maior população de Povos Isolados do mundo, as invasões são uma constante numa dinâmica de verdadeiro genocídio. Outro grave conflito foi resultante da tentativa de um grupo de turistas, que eram policiais militares, de entrar no rio Abacaxis, em plena pandemia e sem o devido licenciamento dos órgãos ambientais, para a prática de pesca esportiva. Os indígenas denunciam torturas, execuções, prisões ilegais e destruição de patrimônio, praticadas pelos policiais militares, além do terror espalhado na região.
– Em Roraima, existem 11 povos, em torno de 55.000 indígenas, distribuídos em 35 Terras Indígenas. No território do Povo Yanomami, as invasões de garimpeiros chegam a mais de 15 mil. Os casos de violência, doenças várias, contaminação dos rios e das pessoas, desnutrição, surtos de malária, entre outros, aumentaram sobremaneira neste período de pandemia. Nesta semana, ocorreu grave situação de violência dos garimpeiros contra os Yanomami, um ataque a várias comunidades utilizando armas de fogo, agravando o clima de terror que recai sob este povo, o ato de violência foi noticiado nacional e internacionalmente. E importante salientar que, acionada as forças de segurança pública, está também foi atacada pelo grupo armado. A Funai, questionada sobre a sua responsabilidade na proteção ao Povo e território Yanomami, soltou uma nota em que se refere a um “suposto conflito”.
– Em Rondônia, há cerca de 29 povos e aproximadamente 17.000 indígenas. As invasões e grilagem do território Uru-Eu-Wau-Wau e no território Karipuna são extremamente graves, principalmente nesta pandemia, obrigando os indígenas Isolados a saírem em busca de alimentos, afastando-se de áreas seguras e colocando-se em riscos vários.
– No Mato Grosso, há cerca 43 povos e em torno de 42.000 indígenas. Os territórios Xavante e Kayapó são constantemente invadidos por garimpeiros e madeireiros. A TI Maraiwatsédé, do povo Xavante, tem sido assediada por políticos e fazendeiros locais, com ameaças várias. Posseiros da região ameaçam e pressionam os indígenas na intenção de invadir o território.
– No Pará, existem cerca de 55 povos e aproximadamente 60.000 indígenas, e é onde está se dando uma das maiores tragédias do país. Os territórios dos Povos Munduruku, Kayapó e Arara vêm sendo sistematicamente invadidos por garimpeiros incentivados por agentes do governo como ministro de estado, prefeitos, deputados, senadores em busca do ouro. Os invasores utilizam o mercúrio no processo da garimpagem, que tem contaminado principalmente o Povo Munduruku e o Povo Kayapó. Os indígenas têm denunciado até em âmbito internacional a invasão dos seus territórios, a contaminação das águas dos rios e da sua base alimentar que são os peixes, provocando graves doenças. Toda a geração atual e futura do povo Munduruku está em risco. Os relatos sobre indígenas isolados da terra indígena (TI) Ituna Itatá são de pesquisadores e de outros indígenas que vivem nas proximidades da região, que virou foco de pressões de grileiros na última década com a construção da hidrelétrica de Belo Monte e com o projeto da mineradora Belo Sun. Segundo a ONG Rede Xingu +, 79% da perda de mata na Ituna Itatá ocorreu nos últimos dois anos e, nesse ritmo, não haverá mais floresta na região em 2024 e, consequentemente, o extermínio dos Isolados.
– No Acre, existem em torno de 13 povos e aproximadamente 20.000 indígenas. Além das questões enfrentadas por todos os povos amazônicos, preocupa o avanço do agronegócio, especificamente a criação de gado, como vem ocorrendo na Terra Indígena Valparaíso, do povo Apurinã, em Boca do Acre/Amazonas. As lideranças que denunciam sofrem ameaças e os órgãos ambientais e de proteção fazem “vistas grossas”. A insegurança em relação aos direitos territoriais tem aumentado. Territórios demarcados estão sendo loteados com o CAR (Cadastro Ambiental Rural) e os povos não sabem a quem recorrer para identificar os invasores e pelo histórico de financeirização da natureza, com projetos REDD, o CAR em sobreposição aos territórios indígenas vislumbra essa possibilidade. Preocupante também o crescente aparecimento de povos isolados nas regiões de fronteira com o Peru. Esses povos continuam em vulnerabilidade com o avanço do garimpo e de madeireiras no país vizinho e que se alastra também em território brasileiro.
– No Amapá, são cerca de 5 povos e em torno de 8.000 indígenas. Destaca-se como situação grave, principalmente em período de pandemia, a falta de atendimento adequado à saúde. Os indígenas relatam que desde que foi extinto o programa Mais Médicos, o atendimento à saúde foi precarizado. A realidade dos indígenas que vivem na TI Parque do Tumucumaque, em Macapá, é preocupante. Com acesso exclusivamente por via aérea e agravado com a pandemia, a região é a mais abandonada no estado. Fome e invasão de seus territórios têm sido os maiores problemas enfrentados.
– No Tocantins, há presença de 10 povos e cerca de 6.000 indígenas. Os povos da região têm enfrentado os impactos pelos empreendimentos de grandes projetos, como o de irrigação na bacia hidrográfica do rio Formoso. O uso indiscriminado da água pelos produtores alterou a vazão dos rios, causou acentuada degradação ambiental, destruiu matas ciliares e a fauna local, peixes e animais silvestres. Os pequenos córregos na região hoje estão secos, e os indígenas têm tido dificuldade de acessar água potável.
– No Maranhão, são cerca de 11 povos e de aproximadamente 40.000 indígenas. Na luta pela defesa de seus territórios e contra os invasores, os Guajajara têm visto várias de suas lideranças tombarem, como Zezico e Paulo Paulino. A violência na região é assustadora e também tem sido denunciada em âmbito nacional e internacional.
Diante desse cenário de destruição e morte, o presidente da República junto com os seus ministros, tem se reunido com os setores do garimpo e do agronegócio para apoiar as invasões e articular ações do executivo e medidas legislativas contra os povos indígenas.
Em fevereiro de 2020, o governo enviou à Câmara Federal o Projeto de Lei – PL191, para regulamentar a pesquisa e a exploração de recursos minerais, o garimpo, a extração de hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas. A possível aprovação neste ano desse projeto fez parte da negociação com a bancada ruralista para o apoio à eleição da nova mesa diretora da Câmara dos Deputados. Também está no pacote a PEC 215 e o PL 490 que visam mudar totalmente os artigos constitucionais que concebem os direitos dos povos indígenas no Brasil.
Aproveitando a pandemia “para passar a boiada”, a Funai em 2020 editou Instrução Normativa – IN/09, que possibilita a certificação de imóveis dentro de territórios indígenas ainda não regularizados. Também em 2021, a Resolução 04/21 que concebe outras normas de heteroidentificação de indígenas no Brasil. E, seguindo a toada, em 22/02, editou a Instrução Normativa Conjunta (Funai – Ibama) INC/21, que concebe o licenciamento ambiental para empreendimentos em terras indígenas.
A IN 09 já foi derrubada em 15 estados, por ações impetradas pelo Ministério Público Federal, e a Resolução 04, foi suspensa pelo STF no final de março/21, através do Ministro Luís Roberto Barroso. A INC 01, provavelmente, vai também no mesmo caminho do questionamento judicial, todas por incorrer em flagrante desrespeito aos direitos constitucionais dos povos indígenas. Com relação ao Recurso Extraordinário 1.017.365, que tem como relator o Ministro Edison Fachin, do STF – neste RE estão sendo discutidos os direitos constitucionais dos povos indígenas, a partir de duas teses: o Marco Temporal, defendido pelos ruralistas, que restringe os direitos dos povos indígenas a terem seus territórios demarcados se estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988. De outro lado, a teoria do Indigenato, que vem desde o período colonial e que é seguida na própria Constituição de 1988 que concebe aos povos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Portanto, o que está em jogo neste julgamento é o direito mais fundamental dos povos indígenas no Brasil, que é o direito à terra. Temos o objetivo de continuar a incidência no STF para que este julgamento aconteça neste ano de 2021.
Nesta situação de ataque e desrespeito aos direitos dos povos indígenas por parte dos poderes executivo e legislativo, os povos indígenas têm se amparado cada vez mais no poder judiciário. Com o apoio do MPF nas regiões, muitas ações têm sido deferidas em favor dos povos indígenas. Em 2020, o Ministro Edson Fachin deferiu liminar suspendendo as reintegrações de posse contra os povos indígenas em todo o Brasil enquanto perdurar a pandemia. Também o Ministro Luís Roberto Barroso deferiu em favor dos povos indígenas a ADPF 709, que obriga o governo a estabelecer um plano emergência para evitar e combater o contágio e os efeitos da Covid-19 e a proteção dos territórios dos povos indígenas no Brasil. É importante salientar que, no Programa Nacional de Imunização-PNI, o governo federal concebe, como grupo prioritário, a vacinação de apenas 410 mil indígenas, sendo que no Censo de 2010 foi quantificada a existência de 890 mil indígenas no Brasil.
Nesse contexto, reconhecemos e agradecemos imensamente o apoio dos Srs. Bispos da Amazônia e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que tem sido muito importante na defesa dos direitos dos povos indígenas no Brasil.
No mais, a pandemia tem nos colocado desafios na continuidade do apoio aos irmãos indígenas, mas o compromisso da missão e a solidariedade têm prevalecido; as ações emergenciais em 2020 e 2021, com as contribuições de alimentos, produtos de higiene, limpeza e proteção individual, têm ajudado a salvar vidas em todas as aldeias no Brasil.
Recebam os agradecimentos dos nossos missionários e missionárias, assessorias, funcionários, nesta missão solidária e comprometida com a luta de um povo, mas que é esperança para todo o Povo Brasileiro.
Fonte: Dom Roque Paloschi/CIMI