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Antes de mim a minha nação, antes de qualquer paixão a minha bandeira. Porque o povo que não preserva a sua identidade e não guarda a memória dos seus mortos não sabe de onde veio e nem para onde vai. (Acampamento Terra Livre, 2019)

Por Jama Peres Pereira, Joice Alberto de Souza e Lislyn Peres de Almeida. L

Hoje no Brasil temos em torno de 305 povos indígenas e cerca de 200 línguas indígenas  ainda vivas. Segundo o dados  IBGE de 2022, o número de indígenas residentes no Brasil era de 1.693.535 pessoas, o que representava 0,83% da população total do país. Em 2010, o IBGE contou 896.917 mil indígenas, ou 0,47% do total de residentes no território nacional. Isso significa que esse contingente teve uma ampliação de 88,82% desde o Censo Demográfico anterior. 

O primeiro ataque violento à nossa existência foi a chegada dos não indígenas dentro dos nossos territórios, não respeitando esse espaço enquanto corpo de conhecimento, de múltiplas práticas e vivências. O contato e invasão dos nossos territórios é considerado por nós como um dos maiores ataques violentos sofridos pelos nossos corpos-territórios. Portanto, desde 1500 sofremos ataques sistemáticos. O contato com essa violência aconteceu sob diferentes formatos e pretextos, seja com a mentira de salvação da alma que nos discriminou de forma silenciosa, até deixar de falar as línguas indígenas nesse processo. 

O apagamento das identidades e línguas indígenas, desde o início sempre bem planejada. Segundo Garcia, 2017,p. 24. Em meados do século XVIII, o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, elaborou uma série de medidas visando integrar as populações indígenas da América à sociedade colonial portuguesa. O Diretório tinha como objetivo principal a completa integração dos índios à sociedade portuguesa, buscando não apenas o fim das discriminações sobre estes, mas a extinção das diferenças entre índios e brancos. Dessa forma, projetava um futuro no qual não seria possível distinguir uns dos outros, seja em termos físicos, por meio da miscigenação biológica, seja em termos comportamentais, por intermédio de uma série de dispositivos de homogeneização cultural.

No século XVIII, no entanto, além das populações indígenas, vários outros segmentos sociais não utilizavam o português para se comunicar, mas sim a língua geral tupi. Segundo Ângela Domingues, o uso da língua portuguesa seria empregado como um critério nas disputas de fronteira entre Portugal e Espanha, baseadas no princípio do uti possidetis.7 A língua portuguesa teria, então, dois papéis principais: interferiria na identidade dos índios, tentando transformá-los em portugueses, o que, por sua vez, comprovaria a efetiva ocupação lusitana daquelas terras.

A perspectiva de impor aos indígenas o uso da língua portuguesa, no entanto, tinha um objetivo bem claro neste período: buscava transformá-los em vassalos iguais aos demais colonos. Isto se fazia necessário num momento no qual foram intensificados os conflitos territoriais entre Portugal e Espanha, acarretando a necessidade de o Rei de Portugal possuir um contingente populacional suficiente para habitar as suas fronteiras, garantindo assim a permanência dos seus domínios.

Segundo Ângela Domingues, o uso da língua portuguesa seria empregado como um critério nas disputas de fronteira entre Portugal e Espanha. A língua portuguesa teria, então, dois papéis principais: interferiria na identidade dos índios, tentando transformá-los em portugueses, o que, por sua vez, comprovaria a efetiva ocupação lusitana daquelas terras.

O apagamento gerou grandes consequências as mortes de línguas e identidades dos povos indígenas. aqui retrato o atual momento sobre o reavivamento das línguas indígenas que estamos vendo acontecer  no nordeste, o avivamento da Língua espírito, Kariri Xokó, Potiguara, Pankararu, e outras línguas indígenas de todo país. no círculo vivo   do Toré, evocamos e fazemos avivar as línguas adormecidas  e silenciadas, consequência da posição de igrejas cristãs, que muitas vezes se dizem “salvadoras de almas”, que nos discriminou de forma silenciosa, até deixar de falar as línguas indígenas nesse processo, acabaram  ferindo nosso corpo- território a nossa sagrada ancestralidade.

Os indígenas, que carregam os saberes ancestrais, somos responsáveis pelo cuidado com nossos corpos, preparando o corpo-território com chás, banhos de ervas, emplastos, benzimentos. Também na educação sobre modos sociais de ser indígena, contando as histórias que trazem narrativas de aprender com o hábito da escuta, do desenvolvimento da criança na interação do aprender fazendo as práticas cotidianas da casa/comunidade indígena. Entendemos que o cuidado é um processo educativo na vida indígena. 

É importante dizer que o corpo indígena é político e ele não está separado do território. Então, quando quando nós lutamos pela demarcação de terras, estamos também lutando pela continuidade da nossa existência enquanto o corpo indígena daquele território. Quando o movimento das mulheres indígenas articula de forma mais sistemática os diálogos, fica evidente que o nosso corpo também é um território de conhecimento, carregado de ancestralidade, carregado de uma educação indígena que traz essa diversidade e especificidade das ciências indígenas. Isso é pensado sempre de forma coletiva, pois uma indígena falar em sua língua, por exemplo, é dar continuidade ao conhecimento milenar das ancestrais. Trazer o protagonismo de voz das mulheres indígenas não é só algo individual daquela que está falando, é também diálogo com vários corpos políticos e vários territórios de vários biomas.

Em 2023 o Projeto de Língua que foi autorizado pela câmara, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados o primeiro Projeto de Lei (PL) com texto traduzido para duas línguas indígenas, Guarani-Kaiowá e Akwen. A iniciativa veio da deputada federal mineira, Célia Xakriabá (PSOL-MG). O  PL 4381/23 versa sobre procedimentos a serem adotados para combater a violência contra as mulheres indígenas em delegacias e/ou órgãos de acolhimento. Além disso, foi sugerida a criação de uma rede de apoio multidisciplinar voltada ao segmento, neste caso vemos a atuação direta das Mulheres indígenas.

Historicamente, mulheres indígenas construíram trajetórias muito importantes para o reconhecimento e valorização deste papel que desenvolvemos. Por isso, a necessidade de trazer a memória narrativa e colaboração direta das indígenas, com nossas formas de tecer a história dos povos indígenas no Brasil no mobilizar e articular. A partir da ocupação de outros espaços, destacamos as indígenas mães no espaço da universidade, Esta presença resistência fez e faz a diferença. A professora de Wapichana Joice Alberto é um exemplo, “fiquei muito feliz por ser a primeira da família a entrar em uma universidade e provar que, independentemente de nossa origem, podemos estar onde quisermos. E assim surgiu essa oportunidade para me formar na área que eu estava atuando.

São muitas situações violentas que atravessam as existências dos corpos-territórios das mulheres indígenas, muitas delas vinculadas ao racismo e ao machismo. O simples fato de não dominar a língua portuguesa já é motivo para processos de exclusão e discriminação, a simples presença de nossos corpos em espaços diversos já nos torna vítimas de olhares preconceituosos, especialmente quando estamos com nos- sas pinturas de jenipapo e urucum. Joice continua minha língua materna foi a língua wapichana: “aprendi a língua portuguesa aos 8 anos de idade quando comecei a frequentar uma escola, sendo que aos 7 anos fiquei reprovada no 1º ano porque na época era a 1ª série, por não entender nada sobre a língua portuguesa. Eu não entendia o professor e nem o professor entendia o que eu falava”. 

No enfrentamento à violência racista, temos construído estratégias de visibilidade para nossas presenças. é caso da nossa iniciativa desde 2021 “LITERATURA INDÍGENA WAPICHANA E INCLUSÃO” Estamos trabalhando para a difusão da literatura indígena Wapichana, transformando em materiais inclusivos para os deficientes Surdos na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS),para que possam ter acesso às narrativas dos povos originários .Produzimos  materiais  Inovador  de Literaturas indígena Wapichana para surdos, uma pequena equipe composta por profissionais indígenas, escritora, tradutora, contador de histórias (tem um papel muito importante na cultura Wapichana). Temos ocupado espaços na publicidade e nas redes sociais, trazendo a diversidade de povos no Brasil e mostrando nossos rostos, corpos e vozes. Pautamos o governo para que nossas línguas sejam reconhecidas como cooficiais, bem como construímos diálogo e acompanhamos a execução de políticas públicas.

A educação indígena parte das nossas sabedorias ancestrais e com pedagogias que partem do fazer cuidado, do fazer comunitário, Joice reitera que: sua Educação cultural “Obtive uma educação indígena incrível dos meus avós, para onde eles iam, me levavam com eles, saiam para pescar, para caçar, para fazer suas atividades diárias e lá estava eu com eles sempre analisando e aprendendo tudo o que eles faziam. Na minha época não tínhamos tempo para brincar, pois a vovó não deixava, deve ser por isso que hoje sei de muitas coisas. Eu ia pra escola com a roupa que eu tinha, eu não precisava de roupa ou sapato novo para ir à escola, o que importava era o aprendizado. Aprendi a fazer farinha e caxiri aos 11 anos de idade.

Passei pelo ritual do wiku, na qual o vovô rezava e depois me ferrava para ser trabalhadora e corajosa. Outro ritual que vivi foi o corte com gilete para ser estudioso e inteligente. E ele falava que não era para contar a ninguém sobre esse ritual. E assim fui crescendo e aprendendo os valores da vida. Comíamos um tal de tik que podem ser encontrados no pé de najá derrubado, uns bichinhos tipo muxiu e depois tínhamos que morder várias pimentas rezadas. Pois, de acordo com meu avô, se não mordêssemos o tik ia acabar com os nossos dentes. Eu também gostava muito de pescar”. 

O que o dar sustentabilidade para a Educação Escolar Indígena, com a nossa presença das indígenas, exercendo o papel do cuidado com a nossa filha escola. Ainda há uma longa caminhada para desconstruirmos a valorização e a imposição do Estado nas escolas indígenas, das ciências e disciplinas não-indígenas frente à ciência e pedagogia indígena, mas seguimos nos fortalecendo na construção de novos caminhos possíveis.

É nesse contexto que muitas mulheres indígenas, têm atuado na formação de professoras e professores indígenas que vão trabalhar na sala de aula, com a proposta de atuar na educação escolar no contexto do seu próprio povo como é o caso da professora Joice.

Desafios na atuação na Educação indígena na Região Serra da Lua

Escola indígena em Nova Olinda do Norte, no Amazonas. Foto: Divulgação

Segundo a professora Joice: “Logo no início da carreira como professora de língua indígena, tive vários desafios como falta de material didático, mas isso foi em 2015 e de lá para cá muitas coisas mudaram, hoje temos bastante materiais produzidos pelos professores de língua, valorizando assim as línguas indígenas. Hoje temos muitos professores indígenas formados para atuar nas escolas indígenas, mas ainda falta muito para colocar em prática uma educação escolar intercultural, específica e diferenciada. É preciso que todos andem de mãos dadas e que um ajude o outro, para que se pratique realmente uma educação diferenciada. As escolas indígenas ainda não têm muita autonomia, em relação ao sistema da educação escolar. Muitas vezes ainda nos obrigam a fazer as coisas do jeito que eles querem. Mas não é isso que as comunidades indígenas querem. Hoje lutamos em defesa da valorização cultural, da valorização das línguas, temos sim professores indígenas formados, mas precisamos de mais capacitação para melhorar o ensino e aprendizagem dos alunos na escola. Mas isso também depende de cada professor, o mesmo deve investir no seu conhecimento, fazendo cursos, trabalhando na prática junto com a comunidade, produzindo material didático adequado para seus alunos. 

Atualmente tivemos alguns avanços a passos lentos em relação a uma educação intercultural, específica e diferenciada. Hoje temos a autonomia de construir nossos próprios PPPs das nossas escolas indígenas, de elaborar o currículo para nossas escolas, mas nem sempre o sistema aceita aquilo que estamos colocando para a nossa educação escolar indígena.

A interculturalidade nas escolas indígenas nos diferencia das escolas não indígenas, porque temos características próprias, trabalhamos respeitando a cultura, a língua, as tradições do nosso povo. Ou seja, respeitamos as maneiras tradicionais que os anciões repassam seus conhecimentos aos mais jovens da comunidade.

O professor tem a autonomia de construir seu próprio material didático baseado nos conhecimentos indígenas de seu povo, sem ter que ficar reproduzindo os conteúdos que possuem os livros didáticos. Mas essa prática vai de cada professor, só basta a questão do interesse em produzir esse material voltado às escolas indígenas. 

Se dependermos das políticas públicas para construir esses materiais, enquanto aguardamos que façam isso por nós, as nossas línguas vão se perder e os conhecimentos dos mais velhos vão embora sem ser registrados.  Se antes a escola era colocada como uma instituição que tirava as línguas e a cultura de um povo, hoje ela é a parte essencial para que essa valorização seja feita. E isso não depende só de mim, depende do aluno, do professor e das lideranças de uma dada comunidade.

Apesar dos poucos avanços obtidos em relação à educação escolar indígena, ainda temos muito a remar, ainda há muito a ser feito para que aconteça de fato uma interculturalidade equilibrada. Enquanto isso, nós povos indígenas temos que fazer nossa parte, continuando a transmitir os nossos conhecimentos de geração em geração, sempre respeitando a relação do natural e sobrenatural, através das histórias de vida, dos contos e da oralidade. Porque a interculturalidade nas escolas nos garante o direito de pertencer a um povo, ela garante e fortalece os nossos saberes tradicionais e permite a contextualização dos nossos conhecimentos indígenas com os conhecimentos escolares.

Somos nós indígenas, os atores principais da nossa educação escolar indígena, nós é que temos que fazer a diferença. E se falando em nossas línguas indígenas, elas são as partes principais de nossas valorizações culturais. Nós que somos professores de língua temos que ser multiplicadores e incentivadores para aquele que não puder aprender. E não ensinar a língua somente em 50 minutos de aula, assim o aluno nunca vai aprender. Porque a fala na língua deve ser praticada em todos os lugares. Porque não é à toa que os falantes aprenderam, foi usando a língua como materna, ou seja, praticando a língua desde o momento que consegue falar as primeiras palavras, através das vivências com avós ou pai falantes. Então não basta somente produzir bastante material didático e não praticar nas vivências diária”

Há o desafio, que nós estamos propondo, de promover este lugar das mulheres indígenas que fazem educação indígena, nos espaços ditos informais e também em espaços formais. Nesse caso, é a mulher indígena que forma outras educadoras e outros educadores, para que não se rendam a outro modelo de educação “de fora”. São as indígenas que mantêm a sustentabilidade da educação indígena: os costumes, a cultura, a identidade, as línguas e o todo que forma o corpo-território das e dos indígenas.

Experiências de Lizlyn Peres Professora e intérprete de Libras: Como tradutora e intérprete indígena, mergulhar no universo da tradução de narrativas de línguas indígenas para LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) é mais do que um trabalho, é uma missão que transcende fronteiras linguísticas e culturais. Minha jornada nesse campo começou enquanto eu cursava Letras Libras, quando decidi dedicar meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) à tradução de uma narrativa indígena para LIBRAS, especificamente a cativante história do Grande Kaimen.Nesse processo, fui honrada com a colaboração de dois surdos indígenas, um Wapichana e um Macuxi, cujos sinais nativos foram fundamentais para dar vida à narrativa em LIBRAS. A partir desse ponto inicial, minha trajetória se expandiu para abraçar a comunidade surda indígena em sua totalidade. No ano de 2022, tive o privilégio de participar do projeto “Literatura e Inclusão”, onde trabalhei em estreita colaboração com participantes surdos, tanto indígenas quanto não indígenas, e outros intérpretes de LIBRAS. Durante esse período enriquecedor, tive a oportunidade de colaborar com o Sr. James, que compartilhou conosco narrativas tradicionais do povo Wapichana. Com sua orientação, traduzimos para LIBRAS 10 dessas narrativas, aplicando técnicas de adaptação e integrando sinais das línguas indígenas originais.Essa experiência foi um marco significativo em minha jornada pessoal e profissional. Além de ampliar meu repertório como tradutora e intérprete, fortaleceu meu compromisso com a valorização e preservação da diversidade linguística e cultural dos povos indígenas do Brasil. Através da tradução para LIBRAS, não apenas garantimos o acesso à informação e à literatura para a comunidade surda, mas também contribuímos para a perpetuação das tradições e histórias que são o coração pulsante de nossas culturas indígenas.Tenho plena convicção de que a tradução e interpretação para LIBRAS desempenham um papel fundamental na construção de pontes entre diferentes culturas e na promoção de uma sociedade mais inclusiva e justa para todos os cidadãos brasileiros. É uma honra e um privilégio fazer parte desse movimento de conexão e respeito mútuo, independentemente das barreiras linguísticas que enfrentamos.

No entanto, nós como mulheres pesquisadora, intérpretes e tradutoras trabalhamos para valorizar a nossa língua wapichana dentro do nossos projetos sociais e coletivo com intuito de vivificar as nossas línguas. É animador observar o reavivamento das línguas indígenas no Brasil. O avivamento da língua é um processo importante para a preservação da cultura e identidade dos povos indígenas. O resgate dessas línguas contribui para fortalecer a diversidade linguística e promover o reconhecimento e respeito às comunidades indígenas.

No círculo vivo do Toré, por exemplo, há uma evocação e um avivamento das línguas indígenas. Essa prática é significativa, pois permite que as línguas sejam transmitidas e preservadas de geração em geração. Além disso, o reavivamento das línguas indígenas é uma forma de resistência cultural, pois desafia o processo histórico de apagamento e assimilação linguística imposto aos povos indígenas.É importante destacar que o reavivamento das línguas indígenas também está alinhado com iniciativas internacionais, como a Década das Línguas Indígenas proclamada pela UNESCO. Essa iniciativa visa chamar a atenção para a perda das línguas indígenas e promover ações para proteger, revitalizar e promover essas línguas. A participação da comunidade internacional nesse processo é fundamental para fortalecer os esforços de preservação e valorização das línguas indígenas.É gratificante ver que a diversidade linguística e cultural dos povos indígenas está sendo valorizada e reconhecida. O reavivamento das línguas indígenas é um passo importante na construção de uma sociedade mais inclusiva e respeitosa com a pluralidade cultural do Brasil.

 

 

 

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