Notícia

Por Rosa M. Martins

REPAM-Brasil

Um decreto em defesa do Meio Ambiente e dos Povos Amazônicos da região de Itacoatiara (AM) foi publicado na última quinta-feira, 5 de maio, pelo bispo da Prelazia de Itacoatiara, Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, sdv.

O decreto de cunho pastoral, catequético e profético determina ao clero, aos fiéis, às pastorais, movimentos e vida religiosa consagrada a não aceitação de recursos ou quaisquer benefícios de políticos e empresas que investem em empreendimentos que colocam em risco a vida da floresta e de seus povos naquele território. “Não tem como estarmos na Amazônia, – a Prelazia de Itacoatiara estar vivenciando o pós-Sínodo, em tempos de Laudato Si’ do Papa Francisco,  por interesse e até necessidade financeira -, usarmos dinheiro de madeireiros, empresas de exploração de petróleo e gás, de pesca ou de qualquer outra natureza, que incentivam ou colaboram para promover a destruição do meio ambiente, o desmatamento, a poluição dos rios. Do ponto de vista do Evangelho isso não faz sentido”, disse Dom Ionilton em entrevista concedida à Assessoria de Comunicação da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil).

 

Leia a íntegra da entrevista:

Dom Ionilton, como o senhor chegou a esta decisão tão importante, de não receber nada que venha das mãos manchadas pela exploração, morte da floresta e dos povos amazônicos na sua Prelazia? Poderia falar sobre o processo até chegar ao decreto?

Nós chegamos a essa decisão movidos principalmente pelo Sínodo para a Amazônia. Desde quando começamos a trabalhar o pré-Sínodo com o Instrumento de Trabalho, o próprio Sínodo, o seu Documento Final e a Carta Encíclica Querida Amazônia, é que vínhamos dando essa orientação ao nosso clero e diáconos, e por seu intermédio, às lideranças das comunidades, das pastorais. Antes do Sínodo, já havíamos combinado que não iríamos mais receber recursos de madeireiras presentes na área da Prelazia. Fomos reforçando a ideia de que não receberíamos doações também de empresas de pesca e, agora mais recentemente, de empresas de exploração de petróleo e gás. Foi se confirmando em nós a certeza de que não faz sentido falarmos no Sínodo, acolhê-lo, tentar vivê-lo, se não cortarmos relações, principalmente, no que diz respeito ao apoio financeiro proveniente daquelas empresas e pessoas que continuam devastando a Floresta Amazônica, poluindo os rios, causando graves problemas para os povos originários, para os quilombolas, pescadores, ribeirinhos e pequenos agricultores. Esse processo acontecia de maneira orientativa nas reuniões do clero. E eu tomei a decisão de fazer isso por meio de um decreto para dar um caráter oficial. Até aí os padres podiam dizer “é só uma orientação”, “não há uma determinação”. O decreto determina oficialmente que nós, nas paróquias, nas comunidades, nos grupos, nos organismos, nas pastorais, nos movimentos da Igreja, na área da Prelazia, não aceitaremos esse dinheiro nem buscaremos e esse tipo de apoio financeiro. Este ano de eleição foi outra razão que me motivou a recorrer ao decreto, porque candidatos e candidatas aparecem, como já apareceram, e oferecem emendas parlamentares, fazendo com que alguma comunidade acabe por reconhecer o benefício daquele político como suposta ajuda à Igreja, e dessa forma, venha receber votos por meio/em troca desse dinheiro. Na verdade, já é dinheiro nosso, é recurso público, mas, infelizmente, nesse sistema político que temos, isso acaba se tornando uma forma de enganar o povo, dando a entender que deputados têm dinheiro para usá-lo trazendo benefícios para a sua base eleitoral.  E isso é uma forma explícita e evidente de promoção da pessoa do político. Por isso resolvemos suspender, sobretudo nesse tempo de eleição, o recebimento, a aceitação de ajuda de qualquer político que já exerce cargo público e de qualquer político que esteja pretendendo concorrer a algum cargo público.

As comunidades e o clero da sua Prelazia estão preparados para acolher e cumprir este decreto?

Dom Ionilton em Assembleia do Regional Norte 1

Eu não posso garantir que 100% estejam preparados para cumpri-lo, mas é um caminho que precisamos começar a seguir. Temos conversado muito sobre isso, principalmente com o clero, que exerce a função de liderança nas diversas paróquias, com organismos, grupos e movimentos; portanto, é ele que fará com que o decreto seja conhecido, reconhecido, acolhido e praticado, mas sei que temos algumas dificuldades. Emitir o decreto se deve ao fato de que, como orientação nas reuniões do clero não vínhamos conseguindo êxito, havendo membros do clero que ainda deixavam de lado essa orientação e recebiam ajuda desse grupo de pessoas anteriormente citadas.  O decreto, acredito, é também um instrumento de formação, é uma catequese, está ligado, me permita dizer, aos princípios da Doutrina Social da Igreja e aos valores da fé cristã, e como disse no próprio decreto, citando a Palavra de Deus, quando Paulo, na Carta aos Romanos nos convida a ‘andar honestamente como em pleno dia’ (Rm 13,13). Não tem como estarmos na Amazônia, a Prelazia de Itacoatiara estar vivenciando o pós-Sínodo nos seus quase três anos, em tempos de Laudato Si´ do Papa Francisco, e não considerarmos isso e, por interesse e até mesmo necessidade financeira, recebermos e usarmos dinheiro de madeireiros, empresas de exploração de petróleo e gás, de pesca ou de qualquer outra natureza que incentivam ou colaboram para promover a destruição do Meio Ambiente, o desmatamento, a poluição dos rios. Isso não faz sentido evangelicamente falando. E mais. Contradiz o Evangelho de Jesus Cristo que anunciamos e pregamos….

Quais são os principais desafios que o senhor encontra na sua Prelazia relativos ao cuidado da Casa Comum, que poderão tê-lo impulsionado a escrever este decreto?

A primeira razão é a conscientização. No conjunto das pessoas que participam das nossas comunidades, paróquias, que atuam nos grupos, nas pastorais e movimentos, a consciência ecológica, a aceitação do apelo do Papa Francisco na Laudato Si´ para nos tornarmos defensores do Meio Ambiente, ouvir o grito da Terra e dos pobres, é algo ainda pequeno e frágil, que está em processo. Talvez o decreto venha contribuir para se crescer nessa consciência, porque as pessoas certamente se sentirão impelidas a refletir sobre as razões dessa decisão da Prelazia. Os ‘considerandos’ mencionados no decreto, partindo da Querida Amazônia, do Papa Francisco, nos dão uma formação, uma catequese bem clara de que não é possível sermos Igreja na Amazônia e ao mesmo tempo andarmos de mãos dadas, de braços dados com quem destrói a Amazônia.  Esse é o princípio. O nosso grande desafio é crescer na consciência ecológica, repetidamente citada por Francisco. Há o desmatamento, que, graças a Deus, ainda não é grande aqui, mas existe a empresa de exploração de gás –proprietária de uma bacia vendida pelo Governo Federal – que cobre quatro municípios que estão na Prelazia, para fazer a extração de gás em terra firme. Mas nos chegam notícias de que será feita a extração de gás também no leito dos rios e lagos, e isso nos preocupa muito; a pesca é o principal meio  ou fonte de sustentação das pessoas que vivem às margens do rios, que chamamos de ribeirinhos, e que podem correr o risco de ficar sem o “peixe nosso de cada dia” porque vem uma empresa de pesca, com barcos e equipamentos potentes, faz a varredura dos rios e leva o peixe todo; o que seria pesca para trinta dias e para cem pescadores, um barco, em uma noite,  é capaz de levar. Precisamos enfrentar esses desafios, e não conseguiremos enfrentá-los se recebemos dinheiro e outras “bondades” dessas empresas que vêm fazer exploração predatória, inclusive de forma clandestina, na calada da noite, no “escondimento”. O próprio turismo ecológico também poderá ficar gravemente afetado, pois essas empresas não pensam no meio ambiente, no cuidado com a natureza, nas pessoas que vivem à margem dos lagos onde esse turismo é explorado. E o turista vem para usufruir da beleza desse ambiente. A exploração de gás nos rios e lagos espanta os peixes, mexe com a estrutura dos rios fazendo com que haja movimento inadequado do terreno que está nas laterais dos rios, assim contribuindo para a destruição das margens e afetando profundamente toda forma de vida presente nas águas de rios e lagos.

Essa é uma atitude evangélica. Como se relaciona a Boa-Nova de Jesus de Nazaré com este decreto?

A Boa-Nova de Jesus é, todos sabemos, que todos “tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Ela nos aponta a beleza da obra de Deus, na Criação, quando Jesus nos pede para olharmos para os lírios dos campos. A Boa-Nova de Jesus nos leva a um compromisso com os mais pobres, mais sofridos, excluídos, marginalizados. O decreto, embora não diga isto explicitamente, quer ser exatamente isso: primeiramente um serviço à vida – não vamos contribuir com quem gera morte recebendo seu dinheiro. Receber dinheiro de quem gera morte para trabalhar a evangelização é absolutamente contraditório, por isso o decreto. Jesus faz uma opção clara pelos pobres, sem meias palavras. O decreto que fizemos na Prelazia é uma tentativa, explícita no texto, de dizer que estamos do lado dos mais pobres: dos ribeirinhos, dos pescadores, dos pequenos agricultores que são muitas vezes vítimas justamente das madeireiras, das empresas de gás e petróleo e das que exploram a pesca comercial e o turismo ecológico. Evangelicamente é a serviço da vida que devemos sempre trabalhar, em defesa da própria natureza, essa obra magnífica de Deus que está aqui em nossa Amazônia com sua exuberante floresta, seus rios, seus lagos, seus igarapés.

O que significa para o senhor ser bispo e ser bispo na Amazônia?

Ser bispo é um convite para um serviço maior do que já fazia antes como religioso Vocacionista e padre. Tanto é que eu escolhi como lema episcopal a frase de Jesus que está em Lucas 22,27: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve”. Ser bispo aqui na Amazônia é uma alegria. Não conhecia a região, passei a conhecê-la quando nomeado bispo de Itacoatiara. Lia, estudava, conhecia teoricamente. Depois, como bispo, vindo morar aqui, e trabalhando em outros cinco municípios, como Silvos, Itapiranga, Quatro Mãos, Urucará, Urucurituba, quase 60 mil quilômetros quadrados, muitos rios, lagos, igarapés, fui, assim, aprendendo a ser bispo aqui na Amazônia. Veio a graça (de Deus) do Sínodo que nos levou a fazer o aprofundamento desde nosso jeito de ser Igreja aqui na Amazônia, e que valeu muito para mim, fazendo o aprendizado da escuta, no pré-Sínodo, durante o Sínodo, em Roma, com a presença do Papa Francisco, e o pós-Sínodo, por meio da Encíclica Querida Amazônia e de outras orientações que vão surgindo aqui no nosso Regional Norte 1, da CNBB. Portanto, ser bispo na Amazônia é uma missão e um serviço em nome da Igreja para cuidar do bioma amazônico, para preservá-lo, e para cuidar dos povos originários, indígenas – estes não muito presentes na área territorial da Prelazia –, dos negros (temos aqui um quilombo que é uma presença marcante) e os ribeirinhos, que constitui a maior parte da população das nossas cidades, municípios, às margens dos rios. É por estas pessoas que devo estar aqui para trabalhar. Sinto-me muito agradecido a Deus pela escolha que a Igreja fez, incumbindo-me a missão de ser bispo, e porque Deus e a Igreja me escolheram para ser bispo aqui na Amazônia.  Isso é uma grande alegria, e ao mesmo tempo, um compromisso com a vida. A vida da natureza e dos povos que vivem aqui nesta querida Amazônia.

A profecia costuma vir seguida de cruz. Isso o apavora, por vezes? Quero dizer: às vezes sente medo, mesmo profetizando com entusiasmo?

‘Se calarem a voz dos profetas as pedras falarão’. A profecia, quase sempre, na dimensão da denúncia, vem acompanhada da cruz. Se isto me apavora… Apavorar, diria que não, mas sou consciente de que quando exercemos a dimensão profética do nosso batismo, no âmbito da denúncia, incomodamos, como Jesus incomodou, como os profetas do Antigo Testamento incomodaram. Não tem como querer assumir a dimensão profética do batismo e viver na sombra e água fresca, não é? E não querer ser mal-entendido! E eu sou consciente e essa consciência fui adquirindo na minha caminhada, como religioso Vocacionista, e continua assim. Eu não posso, por causa da cruz que poderá vir, da perseguição, da calúnia, das fake news que possam surgir, dizer que não vou fazer nada porque se eu fizer dirão alguma coisa, contestarão, etc. Não. Tenho essa consciência de que não posso me calar. Tenho presente aquela passagem do Evangelho em que os fariseus foram reclamar com Jesus de que os Apóstolos estavam gritando (durante entrada dele em Jerusalém) e ele lhes diz: “se eles se calarem, as pedras clamarão” (Lc 19,40). Eu sempre digo que as pedras não devem falar porque pedra não foi feita para falar. Quem tem que falar somos nós os humanos, Deus nos dotou com esse dom que uso agora, a fala. Somos nós batizados que temos que falar, exercer a dimensão profética do batismo: anunciar o Reino de Deus e denunciar tudo aquilo que é contrário a ele. Portanto, queremos continuar enfrentando este desafio na dimensão da denúncia quando isso se faz necessário, sem ódio, mas também sem medo, como dizia padre Zezinho há muito tempo atrás.

Quais poderão ser as consequências deste decreto para o senhor, para a sua Prelazia e para a Amazônia? Suas expectativas

É um decreto da Prelazia. O que estou dizendo não valerá para a Amazônia como um todo. Para a Prelazia, a minha expectativa é, em primeiro lugar, que o clero o acolha, o divulgue e viva o que foi determinado: não receber recursos financeiros em espécie, de mineradoras, empresas de pesca, gás e petróleo, e que este processo ajude as pessoas, as comunidades, as pastorais, os organismos, os grupos, os movimentos, a nossa Igreja aqui na Prelazia a tomar consciência de que temos que ser coerentes. Nós não podemos fazer de conta. O que o Papa Francisco diz na Encíclica Querida Amazônia, n. 25, é uma denúncia profética: “nós não podemos excluir que membros da Igreja tenham feito parte das redes de corrupção, por vezes aceitando manter silêncio em troca de ajudas econômicas para as obras eclesiais”. A minha expectativa com esse decreto é que tomemos essa consciência: a Igreja tem que ter o compromisso de encontrar fontes limpas de recursos para manter suas atividades. O Papa Francisco, na sequência do n. 25, em Querida Amazônia, faz uma pergunta que não coloquei no texto do decreto, e que diz: “De onde vem o recurso e para onde vai o recurso da Igreja?” Essa pergunta é basilar e temos que nos perguntar. E minha expectativa é que bispo, padres, diáconos, irmãos e irmãs da vida consagrada, pensemos sobre isso: de onde está vindo o dinheiro que nós estamos utilizando para fazer o que estamos fazendo, qual é a fonte, qual é a origem? É um dinheiro limpo, honesto? Ou paira alguma dúvida? Pairando alguma dúvida, pare-se de receber. Essa é a orientação. Queremos criar essa consciência de que somos cuidadores da Casa Comum. Não podemos deixar que o poder econômico, o capital, o lucro devastem a Amazônia, e diria, com a bênção da Igreja, ou das Igrejas.

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