A Rede Eclesial Pan-Amazônica/REPAM-Brasil realizou, na última quarta-feira, 13, a segunda edição do Papo em Rede – diálogos que geram transformação. A roda de conversas abordou como tema “Amazônia e os desafios sociopolíticos contemporâneos”. Com abertura feita pelo arcebispo de Porto Velho/RO, dom Roque Paloschi, que é presidente do Conselho Indigenista Missionário/Cimi, o evento recebeu como expositores convidados o procurador regional da República Felício Pontes Júnior e os assessores da REPAM-Brasil Moema Miranda e padre Dário Bossi.

No contexto dos desafios sociopolíticos contemporâneos, no qual dois modelos de desenvolvimento se contrapõem, dividem opiniões e exigem certos posicionamentos, dom Roque Paloschi enfatizou que “Deus está ao lado dos pobres”.

Nas exposições, o procurador Felício Pontes abordou a conjuntura jurídica ligada à questão indígena após a Medida Provisória 870, que, segundo ele, “esquartejou” a Fundação Nacional do Índio/Funai. Moema Miranda situou a conjuntura atual em uma época de reconfiguração sociopolítica. Padre Dário Bossi guiou uma compreensão da lógica política de gestão dos territórios a partir do crime ambiental da Vale, em Brumadinho/MG e buscou compreender o que chamou de “arquitetura do crime” na realidade da mineração.

Funai esquartejada
O procurador federal Felício Pontes Júnior sustentou que as populações mais caras à Igreja, à REPAM e ao Ministério Público, como indígenas, ribeirinhos, trabalhadores rurais, populações tradicionais em geral, seringueiros e apanhadores de açaí, foram atingidas com a série de transformações geradas com o primeiro ato do governo de Jair Bolsonaro.

“Uma dessas medidas do Governo Federal era a reformulação da Funai: eles tiraram a Funai do Ministério da Justiça e a “esquartejaram”. Colocaram uma parte para um lado, uma parte para o outro e, aquilo que nos é mais caro dentro da Funai é o que eu chamaria de direito alicerce dos povos indígenas, o direito à terra. Ele sustenta todos os demais direitos em relação aos povos indígenas. Eles estão acostumados a dizer que a terra é mãe”, criticou Felício.

Como resposta ao ato governamental, também denunciada como “violação a uma Política de Estado”, considerando a demarcação à cargo dos ruralistas no Ministério da Agricultura, Felício apresentou o “Manual de Jurisprudência dos Direitos Indígenas”, que deve ser lançado nas próximas semanas pelo Ministério Público Federal. O livro apresenta uma série de decisões de diferentes instâncias do Poder Judiciário e também internacionais favoráveis aos povos indígenas frente às violações de seus direitos constitucionais.

Conjuntura histórica atual
Moema Miranda fez uma exposição conjuntural sobre o “momento da história do mundo em que nós estamos”, no qual um conjunto de direitos “conquistados através de lutas de formas de organização e disputa de diversos povos começam a ser sistematicamente violados”.

Além da perda de direitos no Brasil, em toda a América Latina e na África, apresenta-se a narrativa histórica que aponta para um período apocalítico. Neste sentido, parte da grande discussão e da linha de reconfiguração de poderes analisados por Moema diz respeito à “disputa pelo sagrado e uma manipulação das imagens de Deus a favor de determinadas políticas, que são políticas em geral antidemocráticas”, em uma “negação que muitas vezes se vale de um discurso justificado na defesa de valores cristãos e uma disputa de gestão do sagrado como a gente não tinha visto ainda desde a cristandade”.

A assessora da REPAM-Brasil também comentou sobre o “tempo da escassez programada” no qual a humanidade está inserida e ainda a reconfiguração da política norte-americana para o hemisfério sul, por conta da Eurásia cada vez mais forte.

É neste ponto que o Brasil se insere, conforme documento do Exército norte-americano que aponta o Brasil como um parceiro essencial na garantia de uma segurança na região. “Quando os generais falam de soberania, falam em relação à Igreja, mas não falam em soberania em relação ao Exército Americano”, destacou Moema.

No contexto religioso, há a disputa pela Teologia da Prosperidade: “o que está em jogo não é mais se você é católico ou se você é protestante. Mas se você é neopentecostal ou não, porque o neopentecostalismo cria uma conexão direta com a lógica da prosperidade e, portanto, da assimilação, da aceitação, na inclusão individual na economia de mercado, que faz uma ruptura por completo do que é a lógica da Igreja. Não é à toa que o papa Francisco é o grande demônio do capital”, afirmou.

Arquitetura dos crimes ambientais
Padre Dário Bossi, que faz parte da Rede Igrejas e Mineração, apresentou uma compreensão da lógica política de gestão dos territórios a partir do crime ambiental da Vale, em Brumadinho. Falando em “arquitetura do crime”, o religioso comboniano expôs sobre o que está por traz de um controle dos territórios “em função do saque”.

Na disputa de ideias, o papa Francisco denuncia que “esta economia mata”. De outro, as grandes empresas dizem que “o modelo é sustentável e nos garante desenvolvimento, progresso, as tecnologias dão segurança e retorno à sociedade”. No meio disso, há quem fica em cima do muro, observa o padre, colocando a Igreja também como passível a estar nesta condição.

“Brumadinho três anos depois de Mariana, mostra quem tem razão”, aponta padre Dário, que também citou o sistema de mitos levados à sociedade por meio das propagandas da Vale, por exemplo. “Esse sistema de mitos desmoronou, mas também tem se reconstruído”.

A arquitetura dos crimes ambientais se mantém de pé e é capaz de ser reconstruída em tão pouco tempo a partir de duas colunas, segundo Dário. A primeira é a aliança entre as empresas e os Estados, o capital e o poder político. A segunda é o controle do mercado.

Neste segundo elemento, padre Dário contou que há uma relação ente o período que os minérios têm maior valor e as quedas de barragens. Uma pesquisa identificou que a frequência das quedas de barragens ocorre entre 25 e 29 meses depois do boom das commodities. Outra indicação relacionada ao domínio do mercado é o cálculo das conveniências.

“Em Carajás, um dos problemas é o atropelamento pelos trens de animais e pessoas. Nos últimos 15 anos foram mais de 40 pessoas mortas. A Vale tem estudos que calculam os riscos, os gastos indenizações e os custos de imagem”, revelou.

São outras ameaças ao meio ambiente no contexto atual, segundo padre Dário a ampliação dos limites de extração mineral e a ampliação de fronteiras dos locais de prática mineradora, como as regiões de fronteira e as terras indígenas, estas últimas com 25% já prospectadas por empresas que aguardam a liberação para adquiri-las.

Após a abertura para as partilhas, os participantes e convidados puderam aprofundar as implicações jurídico-constitucionais no novo contexto político do Brasil para as realidades dos povos tradicionais, a presença do Brasil em acordos internacionais de Direitos Humanos, o papel do Poder Judiciário na garantia dos preceitos constitucionais no contexto dos povos e da preservação do meio ambiente, além das implicações pastorais na indicação da escolha “de lado” no contexto polarizado também no campo da fé.

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